sexta-feira, 1 de março de 2024

Gramática da ditadura, Príncipe fungível. Wittgenstein

 

José Paulo 

 

“O monarca, ao declarar o povo sua propriedade privada se limita a expressar que o proprietário privado é rei”. (Marx.1982: 502).

Marx diz que a cultura política patrimonialista é uma plurivocidade de relação entre Príncipe, povo nacional e propriedade privada. O soberano vê o povo nacional como sua propriedade privada. A cultura política monárquica tem sua gramática patrimonialista. Contra tal gramática do ancien regime, se levanta a emancipação política, a desintegração do Estado teológico [o Príncipe ungido por Deus], e a construção do Estado político secular. Este é um problema posto na atualidade do campo político estético brasileiro.

Marx fala da tela gramatical estético/política grotesca de Rabelais, e segue:

“E que este ecletismo chegará a alcançar alturas até hoje insuspeitadas o garante a glutonaria estético política de um monarca alemão que aspira representar, senão a persona do povo, pelo menos em sua própria persona, senão para o povo, ao menos para si mesmo, todos os papéis da monarquia, a feudal e a burocrática, a absoluta e a constitucional, a autocrática e a democrática”. (Marx. 1982:499).

A conciliação barroca (Hatzfeld: 61) no Príncipe alemão antecipa o conceito de Estado de Gramsci:

Estado integral = hegemonia encouraçada de coerção. Estado ou sociedade política e sociedade civil; ditadura e hegemonia; aparelho de coerção [exército, polícia, administração, tribunais, burocracia etc.] e aparelhos de hegemonia [culturais, políticos, econômicos]; governo [Estado em um sentido estreito] e Estado integral; Estado como aparelho de poder e consenso; dominação e direção. (Buci-Gluksmann: 114)

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Marx diz:

“É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem que ser derrocado pelo poder material, porém também a teoria se converte em um poder material quando ata as massas”. (Marx.1982: 497).

Marx fala da crise catastrófica do campo político, crise da tela gramatical dos fenômenos estético/políticos. Como pensar o desatar gramatical entre o Príncipe e a multidão?

Antes de continuar, Marx é o jogador de qual jogos de linguagem? Ele joga com a gramática do campo político/estético. Assim, a crise do campo é um colapso da razão gramatical:

“Onde a nossa linguagem nos permite supor um corpo e nenhum existe, aí, gostaríamos de dizer, está um espírito”. (Wittgenstein: 202).

A definição de Príncipe vai além do grotesco do corpo realmente existente; O Príncipe existe em um espírito monárquico, soberano, o jogador soberano dos jogos de linguagens do campo político. Como se alcança a crise catastrófica do campo político da antiga gramática? Quando fica claro para a multidão que a gramática do <querer dizer> do Príncipe não é análoga à da expressão <representar-se uma coisa na mente> do soberano. Assim, a revolução social se apresenta como um direito natural dos inimigos do Príncipe. No entanto, é qualquer revolução política? Pode -se pôr qualquer coisa no lugar do soberano legítimo por hereditariedade?

Hegel:

“uma mudança pela qual o indivíduo, como efetividade especial e como conteúdo peculiar, se opõe àquela efetividade universal. Essa oposição vem a tornar-se crime quando o indivíduo suprassume essa efetividade de uma maneira apenas singular; ou vem a tornar-se um outro mundo – outro direito, outra lei e outros costumes, produzidos em lugar dos presentes – quando o indivíduo o faz de maneira universal e, portanto, para todos”. (Hegel: 194).

O indivíduo é o Príncipe da antiga gramática para o Um ou para poucos, ou da nova gramática para todos. A democracia é a gramática para todos e a ditadura o seu contrário. No entanto, o colapso da antiga gramática pressupõe, como na revolução alemã, uma classe social especial:

“Porém, na Alemanha, não há classe especial que possua a consequência, o rigor, audácia e a intransigência necessários para converter-se no representante negativo de toda a sociedade. Todas elas carecem, assim mesmo, da grandeza da alma que, sequer fosse momentaneamente, pudera identificar a alguma coisa com a alma do povo, do gênio que infunde ao poder material o entusiasmo do poder político a intrepidez revolucionária capaz de jogar na cara do inimigo as retas palavras: “Não sou nada, tenho direito a tudo”. (Marx. 1982: 500).

Para existir a gramática revolucionária é preciso nomear o Príncipe moderno:

“um nome próprio em sentido habitual, é por exemplo, a palavra <Nothung>. A espada Nothung consiste em partes numa determinada composição. Se estas partes se compõem de outra maneira, então, Nothung não existe. Mas, no entanto, a proposição <Nothung tem uma lâmina fina> tem obviamente sentido, esteja Nothung ainda inteira ou já partida. Mas se <Nothung> é o nome de um objeto, então, este objeto não existe se Nothung está partida; e assim como ao nome não corresponde nenhum objecto, então o nome deixaria de ter denotação”. (Wittgenstein. 1987: 204-205).

 Nothung é o Principe, o soberano da gramática antiga que quebrou. E há a nova gramática, pois não há vazio no campo político e sim substituição de uma tela gramatical por outra. A não ser que impere o reino da anarquia:

“Mas então ocorreria na proposição <Nothung tem uma lâmina fina> uma palavra sem qualquer denotação e por isso a proposição deixaria de ter sentido. Mas, no entanto, a proposição tem sentido; logo às palavras que nela ocorrem tem que corresponder sempre qualquer coisa. Assim, em virtude da análise do sentido, a palavra <Nathung> tem que desaparecer e em substituição têm que aparecer palavras que sejam os nomes dos objetos simples. Chamaremos a estas palavras, como é justo, os nomes autênticos”. (Wittgenstein. 1987: 205).

Na democracia representativa, trata-se de um soberano qualquer, um soberano singular autêntico, um jogador instituído por um agente público, ou seja, a soberania popular. O jogador é uma espada que poder ter a lâmina partida, pois esta pode ser substituída, o jogador é fungível. Assim, abre-se as comportas da crise catastrófica do presidencialismo/cesarista com grau zero de estética política. Então, o Principe fungível não existe como espírito da gramática do campo político, e aí, também, não existe um corpo singular que se possa pressupor como corpo político da nação. Sobretudo, a gramática do jogo de linguagem da política não ata a multidão.                    

                                                    A REVOLUÇÃO DA QUESTÃO DO ESTADO

A questão do fim do Estado está posta no campo político mundial. Com efeito, o Estado nacional aparece e desaparece no discurso político. Marx fala do Sol ilusório e Hannah Arendt do Sol como aparências de semblância (Arendt: 31). O Estado é o Sol ilusório como forma ideológica, ou melhor, como aparências de semblância. Marx fala da política e do direito como forma ideológica. (Marx. 1974: 136). A forma ideológica é um agente de produção de ilusão. Mas, o direito pode ser uma cultura objetiva como a medicina. (132-133). Já a política produz ilusão, mas é um poder administrativo do sonhar barroco acordado, como revela Calderon de La Barca.

O jovem Marx fala do Estado:

“Acaso há no mundo, por exemplo, um país que compartilhe de um modo tão simplista como a Alemanha que se chama constitucional todas as ilusões do Estado constitucional, sem compartilhar nenhuma de suas realidades?”. (Marx. 1982: 499).

O Estado é a cultura política do Sol ilusório e realidades das quais fala Gramsci. Ele é realidade material (aparelho, violência) ele é realidade virtual [que se atualiza ou não] como: dominação e hegemonia, consenso e coerção, ditadura e democracia etc. O Estado como Sol ilusório aparece como uma estrutura de ficção, e como realidade, ele é banho de sangue, carne, osso, vísceras etc. Ele é a verdade, insisto, como estrutura de ficção (Lacan: 186) no campo político/estético.  Michel Foucault e Deleuze falam do fim do Estado nacional na Europa da União Europeia. Giddens e René David falam de um Estado com quatro poderes nos EUA e Inglaterra: poder governamental, judicial, legislativo e poder administrativo do general intellect gramatical. Enfim, o Estado da tela gramatical aparece no campo político como um fenômeno estético que se exauri como sujeito gramatical político. O futuro bate à porta.   

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A tela gramatical estética regula o campo dos fenômenos políticos:

“’Mesmo quando se concebe a frase como imagem do estado de coisas possível e se diz que ela mostra a possibilidade do estado de coisas, então, no melhor dos casos, a frase pode fazer o que faz uma imagem pintada ou plástica, ou um filme; e ela, em todo caso, não pode colocar o que não se dá. Portanto, depende inteiramente de nossa gramática o que é [logicamente] dito possível e o que não é, a saber, o que ela autoriza?’”. (Wittgenstein. 1975: 148).

O que a tela gramatical estética está autorizando no campo político mundial?

 

ARENDT, Hannah. A vida do espírito. RJ: UFRJ, 1992

BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Gramsci et L’État. Paris: Fayard, 1975

HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco. SP: Perspectiva, 1988

HEGEL. Fenomenologia do Espírito. Parte 1. Petrópolis: Vozes, 1992

LACAN, Jacques. O Seminário. livro 16. De um Outro ao outro. RJ: Zahar, 2008

MARX. Os Pensadores. SP: Abril Cultural, 1974

MARX. Carlos Marx e Federico Engels. Obras Fundamentales. Volume 1. Marx. escritos da Juventude. México: Fondo de Cultura Económica., 1982

SIMMEL, Georg. Philosophie de la modernité. Paris: Payot, 1989

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. SP: Abril Cultural 1975

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado lógico-filosófico. Investigações filosóficas. Lisboa: Gulbenkian., 1987

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