José Paulo
Octavio Ianni escreveu sobre literatura e política em uma
época na qual não se conhecia o ciberespaço como estrutura de dominação através
do celular. E, no entanto, ele é de uma atualidade comovente. Convivi pessoalmente com Ianni durante 8
anos.
Seu livro “Revolução e cultura” fala de qual fenômeno? Fala
da gramática da cultura política latino-americana em uma crítica a Oliveira
Vianna. Na década de 1920, Vianna criou o campo da direita a partir da ideia de
cultura política. Ianni, cria um campo político da esquerda socialista a partir,
sobretudo, da gramática de cultura política:
“Ao polarizar movimentos culturais anteriores – ainda que
dispersos ou pouco influentes – as revoluções propiciam realizações novas, ao
mesmo tempo que dinamizam todo um trabalho intelectual com a história, a
cultura nacional, as contribuições culturais dos diferentes grupos e classes
sociais. Há desenvolvimentos culturais que emergem, ou tornam-se mais notáveis,
a partir das rupturas revolucionárias Da mesma forma que as produções
artísticas, científicas e filosóficas inserem-se nas lutas que desembocam nas
revoluções, assim também as revoluções abrem condições, às vezes totalmente
novas, para a criação intelectual <erudita>, ou acadêmica, e popular. Há
revoluções com as quais ocorre todo um florescimento cultural de base popular,
principalmente operário- camponês. (Ianni. 1983: 125-26).
Ianni começo a trabalhar com a ideia de bloco
estético/político, que ele tomou conhecimento ao ler o jovem Marx. Parte daí
para falar da gramática da cultura política do livro “Os Sertões”, de Euclides
da Cunha:
“Em 1902, no livro “Os Sertões”, Euclides da Cunha se revela
fortemente influenciado pelo darwinismo social que intelectuais, políticos e
setores das oligarquias dominantes continuavam a retirar do evolucionismo”.
(Ianni. 1983: 16-17).
A partir dessa leitura de Octavio Ianni me embaracei com
Euclides da Cunha. Em um livro meu de 2022, discuto Euclides sob a luz da
sociologia política barroca. Euclides
poderia ter criado um contra bloco estético político anti-oligárquico?
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Euclides da Cunha:
“O evangelho barroco é a vontade de constituição de uma
classe dirigente barroca como direção moral, intelectual, gramatical.
Estética”.
“O barroco de Euclides é a clareira a partir da qual o campo
da direita e o campo da esquerda se constituíram Oliveira Vianna
(renascentista) e Mário de Andrade e Oswald de Andrade, um que faz o romance
barroco modernista e o outro o teatro barroco modernista”. (Bandeira da
Silveira. 2022: cap 9).
Euclides fez a gramática do bloco estético/político para nós.
Ele faz uma cultura política de Canudos em antagonismo à cultura político do
exército da capital do país. A cultura política do exé3rcito republicano é
cesarista.
Octavio Ianni fala do cesarismo latino-americano e de sua
gramática de cultura política:
“A figura do ditador é uma das imagens mais frequentes no
pensamento latino-americano. Boa parte da produção intelectual sobre os países
da América Latina está referida ao Caudilho, Generalíssimo, Benfeitor, guia
Supremo, Primeiro9 Magistrado, Patriarca, Senhor Presidente. Em ensaios e
monografias, ou romances, contos, poesias, pinturas e esculturas, a figura do
ditador está presente. A imensa galeria de ditadores que povoam a história
desses países constitui o imenso cenário de pesquisa, fantasia ou invenção de
cientistas sociais, escritores, poetas, artistas”. (Ianni. 1983: 87).
O ditador ou tirano como fantasia ou objeto real no campo
político/estético é o César:
“Sob várias formas, a literatura reage à tirania,
trabalhando-a em todas as suas implicações. Em lugar de negá-la, ou apenas
combatê-la, examinando-a por fora, afirma-a. Trabalha a tirania por dentro,
levando-a às suas consequências necessárias e ocasionais, lógicas e insólitas,
trágicas e grotescas. Pode ser sugestivo reler alguns passos de obras nas quais
escritores latino-americanos registram, em diferentes modulações, a figura do
ditador”. (Ianni. 1983: 88).
Assim o campo político/estético cesarista latino-americano é
mais real que o próprio real: ”Nesta perspectiva, o real aparece como é:
desproporcional, descomunal, carnavalesco, grotesco”. (Ianni. 1983: 93).
Pouco se sabe sobre o tempo político da cultura política do
cesarismo do ciberespaço fazendo pendant com a forma de governo
cesarista/presidencialista/republicana nas Américas. Ora, o tempo político do
cesarismo latino-americano faz pendant como tempo das cultur4a política
ci8bernéticas. Assim:
“Dentre os vários elementos presentes na tirania, o tempo é
um dos principais. Há uma duração que lhe confere uma face mais larga de
brutalidade. O povo, índio, negro, camponês, operário, funcionário, empregado,
padecem a violência da expropriação expressa e acentuada pela duração. A
tirania sempre se apresenta como longa, sem fim (...) A eternidade da tirania
que pesa sobre o povo, fazendo-o pesar também sobre o tirano”. (Ianni. 1983:
97).
O campo político cesarista é o lugar de um Estado autoritário
permanente:
“A problemática da revolução burguesa surge com especial
ênfase quando a reflexão se concentra nas formas históricas do Estado
brasileiro. Toda pesquisa sobre o poder estatal, em si e em suas relações com a
sociedade, o cidadão, as raças e etnias, os regionalismos, ou grupos sociais e
as classes sociais, coloca e recoloca a persistência do caráter autoritário do
poder estatal. Todas as formas históricas do Estado, desde a Independência até
o presente, denotam a continuidade e reiteração das soluções autoritárias, de
cima para baixo, pelo alto, organizando o Estado segundo os interesses
oligárquicos, burgueses, imperialistas. O que se revela, ao longo da história,
é o desenvolvimento de uma espécie de contra-revolução burguesa permanente”.
(Ianni; 1985: 11).
O Estado-1988 é uma fratura como Estado descrito por Octavio
Ianni? O Estado do governo Lula é um Estado não- autoritário? Para as classes
mais baixas de pobres brancos, negros e mestiços o Estado é democrático? Ou se trata do mesmo Estado cesarista que
desintegrou Canudos?
Ianni fala do campo político populista:
“em 1945-64 a sociedade brasileira viveu uma época de
razoável progresso democrático. O povo alargou a sua participação no processo
político, em termos de eleições, representantes no legislativo, agilização de
sindicatos e partidos políticos, debates e organizações que ampliavam as
estruturas políticas intermediárias criadas pela Assembleia Nacional
Constituinte que elaborou a Constituição de 1946. É verdade que as instituições
jurídico-políticas reaproveitadas da ditadura do Estado Novo (1937-45), e as
criadas desde 1946, favoreciam uma democracia burguesa razoavelmente
autoritária. Mas os operários urbanos e rurais, camponeses, empregados,
funcionários, profissionais liberais, intelectuais, estudantes e outros setores
desenvolveram atividades sociais, políticas e culturais que implicaram no
avanço do processo democrático”. (Ianni. 1985: 77). z
Há uma conciliação barroca entre a forma de governo cesarista
de 1937 e a forma de governo populista-democrática de 1946. É um campo, político
que, também, desenvolveu um cesarismo populista getulista, que na presidência
de João Goulart foi o agente protagonista da desintegração da democracia-1946.
O discurso política fascista permanece no campo político
militarizado de 1988? É algo novo? Ianni diz:
“Tudo isso significa que o militarismo que assume o poder em
64 [tendo sido gestado em anos anteriores, por dentro e por fora do processo
democrático] expressa uma face muito especial da luta de classes; no Brasil e
em âmbito internacional. Para o imperialismo (...) o golpe salvou o Brasil para
o ‘mundo ocidental e cristão’, isto é, antidemocrático, anti-socialista (...).
A ditadura militar instalada no Brasil faz parte de uma onda fascista
internacional [...]. (Ianni. 1985: 95).
O campo político oligárquico-militar de 1964 se desenvolveu
como estruturas de dominação no Estado nacional e na sociedade civil:
“Desde que que o bloco de poder formado pela grande
burguesia, militares, policiais, latifundiários, setores de classe média,
setores da Igreja, a grande imprensa, a indústria cultural (...). Com efeito, a
ditadura adotou várias políticas destinadas a recriar laços com as classes
subordinadas. O rádio, a televisão, o futebol e o conjunto da indústria
cultural, muitos foram os elementos acionados pelos governantes para recriar ou
desenvolver laços entre as classes subordinadas, oprimidas e o bloco de poder
(...) Foi grande o empenho dos funcionários do bloco de poder – burocratas, e
tecnocratas, civis e militares, nacionais e estrangeiros – no sentido de
convencer o povo, os trabalhadores, os operários camponeses, de que o Brasil ia ser uma
‘pátria grande’, ‘potência mundial’, e outras fantasias da geopolítica do
capital”. (Ianni. 1981: 174).
Comparar o campo político-1964 com o campolítico-1988 é algo
que mostra a conciliação barroca entre as estruturas de dominação-1964 e as
novas estruturas de dominação em 2024?
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Ianni estudou a obra de Arthur Ramos:
“É Arthur Ramos, no entanto, quem nos fornece indicações documentadas
sobre a origem africana de diversas danças do folclore brasileiro. Segundo esse
autor, o batuque é de origem angola-conguês, e é a dança africana trazida pelos
escravos que maior influência exerceu sobre as danças populares afro-brasileiras”.
(Ianni1987. 247-48).
Já mostramos que Ianni trabalha com gramática da cultura
política da ciência política barroca de Arthur Ramos. Então, Ianni fala da
Igreja católica dos de baixo como um campo da cultura política de luta
populares fazendo pendant como campo populista e o campo da esquerda:
“Ao lado do populismo e de movimentos de esquerda, o
<catolicismo social> desenvolvido na área de Natal passou a fazer parte
de um amplo processo político, social, cultural e econômico destinado a apoiar
e fazer avançar formas democráticas de organização da sociedade e da vida”.
(Ianni. 1987: 229).
Na Atualidade o
partido autoritário evangélico é um protagonista no campo político-1988. Na
época da ditadura militar, a gramática democrática da Igreja católica se
constitui como um poder político nacional-popular, ou seja, dos de baixo, como resistência
à política do dominante:
“Sob vários aspectos, portanto, a religião é uma dimensão
cultural e política importante da sociedade brasileira. As várias religiões
expressam uma dimensão fundamental da sociedade civil. Os templos e os
terreiros, as igrejas e as seitas, na cidade e no campo, entre os negros,
índios e brancos, entre os operários e camponeses, empregados e funcionários,
intelectuais e burgueses, civis e militares, em todos os contextos a filiação é
uma dimensão significativa da sociedade civil. Em uma sociedade em que a Igreja
e o Exército formam os dois principais <partidos políticos> do País, é
inegável que as formas de organização e atuação do catolicismo têm muito que
ver com a fisionomia e os movimentos da sociedade civil”. (Ianni. 1987: 231).
No meio da década de 1990, em seu prestigiado livro “A era do
globalismo”, Ianni fala da época posmoderna:
“Mais uma vez, no final do século XX, o mundo se dá conta de
que a história não se resume no fluxo das continuidades, sequências e recorrências,
mas que envolve também tensões, rupturas e terremotos. Tanto é assim que
permanece no ar a impressão de que terminou uma época, terminou estrondosamente
toda uma época; e começou outra não só diferente, mas muito diferente,
surpreendente. Agora, são muitos os que são obrigados a reconhecer que está em
curso um intenso processo de globalização das coisas, gentes e ideias”. (Ianni.
1996: 13-14).
Meu livro “Além da época pós-moderna” acaba de ser publicado:
“A modernidade como
época moderna que começa em 1500 com a descoberta da América acabou. Então, entramos
em uma época pós-moderna. Esta se caracteriza pela plurivocidade de tela
gramatical, estando a tela moderna entre elas. Trata-se de pôr e repor as telas
gramaticais no campo político/estético, como quer Nietzsche?”. (Bandeira da
Silveira. 2024: Introdução).
No campo político da posmodernidade, a tela gramatical posmoderna
reinava na modelação do agir do personagem, ator e agente. No além da época posmoderna,
o campo político existe sem uma tela gramatical no centro dele. É um campo
político/estético de fenômenos que obedecem a vários hegemonikóns ou eu
políticows de uma plurivocidade de tela gramatical.
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Barroco, tela gramatical,
ensaios. EUA: amazon, 2022
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Além da época pós-moderna.
EUA: amazon, 2024
IANNI, Octavio. A ditadura do grande capital. RJ:
Civilização Brasileira,1981
IANNI, Octavio.
Revolução e cultura. RJ: Civilização Brasileira, 1983
IANNI, Octavio. O ciclo da revolução burguesa. Petrópolis:
Vozes, 1985
IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. SP:
Brasiliense, 1987
IANNI, Octavio. A Era do Globalismo. RJ: Civilização
Brasileira, 1996
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