quarta-feira, 6 de março de 2024

OCTAVIO IANNI - Gramático latino-americano

 

José Paulo 

 

Octavio Ianni escreveu sobre literatura e política em uma época na qual não se conhecia o ciberespaço como estrutura de dominação através do celular. E, no entanto, ele é de uma atualidade comovente.  Convivi pessoalmente com Ianni durante 8 anos.

Seu livro “Revolução e cultura” fala de qual fenômeno? Fala da gramática da cultura política latino-americana em uma crítica a Oliveira Vianna. Na década de 1920, Vianna criou o campo da direita a partir da ideia de cultura política. Ianni, cria um campo político da esquerda socialista a partir, sobretudo, da gramática de cultura política:

“Ao polarizar movimentos culturais anteriores – ainda que dispersos ou pouco influentes – as revoluções propiciam realizações novas, ao mesmo tempo que dinamizam todo um trabalho intelectual com a história, a cultura nacional, as contribuições culturais dos diferentes grupos e classes sociais. Há desenvolvimentos culturais que emergem, ou tornam-se mais notáveis, a partir das rupturas revolucionárias Da mesma forma que as produções artísticas, científicas e filosóficas inserem-se nas lutas que desembocam nas revoluções, assim também as revoluções abrem condições, às vezes totalmente novas, para a criação intelectual <erudita>, ou acadêmica, e popular. Há revoluções com as quais ocorre todo um florescimento cultural de base popular, principalmente operário- camponês. (Ianni. 1983: 125-26).

Ianni começo a trabalhar com a ideia de bloco estético/político, que ele tomou conhecimento ao ler o jovem Marx. Parte daí para falar da gramática da cultura política do livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha:

“Em 1902, no livro “Os Sertões”, Euclides da Cunha se revela fortemente influenciado pelo darwinismo social que intelectuais, políticos e setores das oligarquias dominantes continuavam a retirar do evolucionismo”. (Ianni. 1983: 16-17).

A partir dessa leitura de Octavio Ianni me embaracei com Euclides da Cunha. Em um livro meu de 2022, discuto Euclides sob a luz da sociologia política barroca.  Euclides poderia ter criado um contra bloco estético político anti-oligárquico?

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Euclides da Cunha:

“O evangelho barroco é a vontade de constituição de uma classe dirigente barroca como direção moral, intelectual, gramatical. Estética”.

“O barroco de Euclides é a clareira a partir da qual o campo da direita e o campo da esquerda se constituíram Oliveira Vianna (renascentista) e Mário de Andrade e Oswald de Andrade, um que faz o romance barroco modernista e o outro o teatro barroco modernista”. (Bandeira da Silveira. 2022: cap 9).

Euclides fez a gramática do bloco estético/político para nós. Ele faz uma cultura política de Canudos em antagonismo à cultura político do exército da capital do país. A cultura política do exé3rcito republicano é cesarista.

Octavio Ianni fala do cesarismo latino-americano e de sua gramática de cultura política:  

“A figura do ditador é uma das imagens mais frequentes no pensamento latino-americano. Boa parte da produção intelectual sobre os países da América Latina está referida ao Caudilho, Generalíssimo, Benfeitor, guia Supremo, Primeiro9 Magistrado, Patriarca, Senhor Presidente. Em ensaios e monografias, ou romances, contos, poesias, pinturas e esculturas, a figura do ditador está presente. A imensa galeria de ditadores que povoam a história desses países constitui o imenso cenário de pesquisa, fantasia ou invenção de cientistas sociais, escritores, poetas, artistas”. (Ianni. 1983: 87).

O ditador ou tirano como fantasia ou objeto real no campo político/estético é o César:

“Sob várias formas, a literatura reage à tirania, trabalhando-a em todas as suas implicações. Em lugar de negá-la, ou apenas combatê-la, examinando-a por fora, afirma-a. Trabalha a tirania por dentro, levando-a às suas consequências necessárias e ocasionais, lógicas e insólitas, trágicas e grotescas. Pode ser sugestivo reler alguns passos de obras nas quais escritores latino-americanos registram, em diferentes modulações, a figura do ditador”. (Ianni. 1983: 88).

Assim o campo político/estético cesarista latino-americano é mais real que o próprio real: ”Nesta perspectiva, o real aparece como é: desproporcional, descomunal, carnavalesco, grotesco”. (Ianni. 1983: 93).

Pouco se sabe sobre o tempo político da cultura política do cesarismo do ciberespaço fazendo pendant com a forma de governo cesarista/presidencialista/republicana nas Américas. Ora, o tempo político do cesarismo latino-americano faz pendant como tempo das cultur4a política ci8bernéticas. Assim:

“Dentre os vários elementos presentes na tirania, o tempo é um dos principais. Há uma duração que lhe confere uma face mais larga de brutalidade. O povo, índio, negro, camponês, operário, funcionário, empregado, padecem a violência da expropriação expressa e acentuada pela duração. A tirania sempre se apresenta como longa, sem fim (...) A eternidade da tirania que pesa sobre o povo, fazendo-o pesar também sobre o tirano”. (Ianni. 1983: 97).

O campo político cesarista é o lugar de um Estado autoritário permanente:

“A problemática da revolução burguesa surge com especial ênfase quando a reflexão se concentra nas formas históricas do Estado brasileiro. Toda pesquisa sobre o poder estatal, em si e em suas relações com a sociedade, o cidadão, as raças e etnias, os regionalismos, ou grupos sociais e as classes sociais, coloca e recoloca a persistência do caráter autoritário do poder estatal. Todas as formas históricas do Estado, desde a Independência até o presente, denotam a continuidade e reiteração das soluções autoritárias, de cima para baixo, pelo alto, organizando o Estado segundo os interesses oligárquicos, burgueses, imperialistas. O que se revela, ao longo da história, é o desenvolvimento de uma espécie de contra-revolução burguesa permanente”. (Ianni; 1985: 11).

O Estado-1988 é uma fratura como Estado descrito por Octavio Ianni? O Estado do governo Lula é um Estado não- autoritário? Para as classes mais baixas de pobres brancos, negros e mestiços o Estado é democrático?  Ou se trata do mesmo Estado cesarista que desintegrou Canudos?

Ianni fala do campo político populista:

“em 1945-64 a sociedade brasileira viveu uma época de razoável progresso democrático. O povo alargou a sua participação no processo político, em termos de eleições, representantes no legislativo, agilização de sindicatos e partidos políticos, debates e organizações que ampliavam as estruturas políticas intermediárias criadas pela Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição de 1946. É verdade que as instituições jurídico-políticas reaproveitadas da ditadura do Estado Novo (1937-45), e as criadas desde 1946, favoreciam uma democracia burguesa razoavelmente autoritária. Mas os operários urbanos e rurais, camponeses, empregados, funcionários, profissionais liberais, intelectuais, estudantes e outros setores desenvolveram atividades sociais, políticas e culturais que implicaram no avanço do processo democrático”. (Ianni. 1985: 77). z  

Há uma conciliação barroca entre a forma de governo cesarista de 1937 e a forma de governo populista-democrática de 1946. É um campo, político que, também, desenvolveu um cesarismo populista getulista, que na presidência de João Goulart foi o agente protagonista da desintegração da democracia-1946.

O discurso política fascista permanece no campo político militarizado de 1988? É algo novo? Ianni diz:

“Tudo isso significa que o militarismo que assume o poder em 64 [tendo sido gestado em anos anteriores, por dentro e por fora do processo democrático] expressa uma face muito especial da luta de classes; no Brasil e em âmbito internacional. Para o imperialismo (...) o golpe salvou o Brasil para o ‘mundo ocidental e cristão’, isto é, antidemocrático, anti-socialista (...). A ditadura militar instalada no Brasil faz parte de uma onda fascista internacional [...]. (Ianni. 1985: 95).

O campo político oligárquico-militar de 1964 se desenvolveu como estruturas de dominação no Estado nacional e na sociedade civil:

“Desde que que o bloco de poder formado pela grande burguesia, militares, policiais, latifundiários, setores de classe média, setores da Igreja, a grande imprensa, a indústria cultural (...). Com efeito, a ditadura adotou várias políticas destinadas a recriar laços com as classes subordinadas. O rádio, a televisão, o futebol e o conjunto da indústria cultural, muitos foram os elementos acionados pelos governantes para recriar ou desenvolver laços entre as classes subordinadas, oprimidas e o bloco de poder (...) Foi grande o empenho dos funcionários do bloco de poder – burocratas, e tecnocratas, civis e militares, nacionais e estrangeiros – no sentido de convencer o povo, os trabalhadores, os operários  camponeses, de que o Brasil ia ser uma ‘pátria grande’, ‘potência mundial’, e outras fantasias da geopolítica do capital”. (Ianni. 1981: 174).

Comparar o campo político-1964 com o campolítico-1988 é algo que mostra a conciliação barroca entre as estruturas de dominação-1964 e as novas estruturas de dominação em 2024?

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Ianni estudou a obra de Arthur Ramos:

“É Arthur Ramos, no entanto, quem nos fornece indicações documentadas sobre a origem africana de diversas danças do folclore brasileiro. Segundo esse autor, o batuque é de origem angola-conguês, e é a dança africana trazida pelos escravos que maior influência exerceu sobre as danças populares afro-brasileiras”. (Ianni1987. 247-48).

Já mostramos que Ianni trabalha com gramática da cultura política da ciência política barroca de Arthur Ramos. Então, Ianni fala da Igreja católica dos de baixo como um campo da cultura política de luta populares fazendo pendant como campo populista e o campo da esquerda:

“Ao lado do populismo e de movimentos de esquerda, o <catolicismo social> desenvolvido na área de Natal passou a fazer parte de um amplo processo político, social, cultural e econômico destinado a apoiar e fazer avançar formas democráticas de organização da sociedade e da vida”. (Ianni. 1987: 229).

 Na Atualidade o partido autoritário evangélico é um protagonista no campo político-1988. Na época da ditadura militar, a gramática democrática da Igreja católica se constitui como um poder político nacional-popular, ou seja, dos de baixo, como resistência à política do dominante:

“Sob vários aspectos, portanto, a religião é uma dimensão cultural e política importante da sociedade brasileira. As várias religiões expressam uma dimensão fundamental da sociedade civil. Os templos e os terreiros, as igrejas e as seitas, na cidade e no campo, entre os negros, índios e brancos, entre os operários e camponeses, empregados e funcionários, intelectuais e burgueses, civis e militares, em todos os contextos a filiação é uma dimensão significativa da sociedade civil. Em uma sociedade em que a Igreja e o Exército formam os dois principais <partidos políticos> do País, é inegável que as formas de organização e atuação do catolicismo têm muito que ver com a fisionomia e os movimentos da sociedade civil”. (Ianni. 1987: 231).  

No meio da década de 1990, em seu prestigiado livro “A era do globalismo”, Ianni fala da época posmoderna:

“Mais uma vez, no final do século XX, o mundo se dá conta de que a história não se resume no fluxo das continuidades, sequências e recorrências, mas que envolve também tensões, rupturas e terremotos. Tanto é assim que permanece no ar a impressão de que terminou uma época, terminou estrondosamente toda uma época; e começou outra não só diferente, mas muito diferente, surpreendente. Agora, são muitos os que são obrigados a reconhecer que está em curso um intenso processo de globalização das coisas, gentes e ideias”. (Ianni. 1996: 13-14).

Meu livro “Além da época pós-moderna” acaba de ser publicado:

 “A modernidade como época moderna que começa em 1500 com a descoberta da América acabou. Então, entramos em uma época pós-moderna. Esta se caracteriza pela plurivocidade de tela gramatical, estando a tela moderna entre elas. Trata-se de pôr e repor as telas gramaticais no campo político/estético, como quer Nietzsche?”. (Bandeira da Silveira. 2024: Introdução).

No campo político da posmodernidade, a tela gramatical posmoderna reinava na modelação do agir do personagem, ator e agente. No além da época posmoderna, o campo político existe sem uma tela gramatical no centro dele. É um campo político/estético de fenômenos que obedecem a vários hegemonikóns ou eu políticows de uma plurivocidade de tela gramatical.

 

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Barroco, tela gramatical, ensaios. EUA: amazon, 2022

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Além da época pós-moderna. EUA: amazon, 2024

IANNI, Octavio. A ditadura do grande capital. RJ: Civilização Brasileira,1981

 IANNI, Octavio. Revolução e cultura. RJ: Civilização Brasileira, 1983

IANNI, Octavio. O ciclo da revolução burguesa. Petrópolis: Vozes, 1985

IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. SP: Brasiliense, 1987

IANNI, Octavio. A Era do Globalismo. RJ: Civilização Brasileira, 1996  

                          

 

           

     

    

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