domingo, 17 de março de 2024

Ciência política - Júlio César, Bellvm civile

 

José Paulo 

 

 

A ciência política de Júlio César por analogia é uma ciência política socrática e ciência política leninista, pois, trabalha com a <análise concreta de uma situação concreta>. 

Na página 53 do livro “Bellvm civile”, tem a cultura política econômica virtual romana republicana e, depois ao longo das páginas, o desejo de desintegrar a forma de governo republicana.

A cultura política econômica cesarista parte da relação dos agentes públicos com o bem do Estado. Qual Estado é este? Um Estado movido por um poder republicano baseado nos interesses econômicos do Estado lacaniano de administração da mais valia pública ou mais-de-gozar ou plus-de-jouir. (Lacan. S. 167: 30, 29).

Uma sociedade de classes socais complexa lutava pela mais-valia pública?

“A classe dominante era formada pelo capital usuário, capital ‘industrial’, capital mercantil, grandes proprietários de terra  e da renda fundiária (que moravam na cidade), classe nobiliária, senadores, governadores das províncias. (Veyne: 144). A propósito, o capital usuário era um fenômeno econômico generalizado na classe dominante. Ele constituía o liame social/dinheiro entre credor e devedor no qual a dívida não paga se transformava em escravidão econômica”. (Veyne: 149). (Bandeira da Silveira. 2022: cap. 12, parte 2).

A classe política detinha o poder administrativo de gestão do dinheiro público:

“A classe dos notáveis exercia o poder administrativo do Estado lacaniano. Tal evento consiste na transformação da mais-valia privada em riqueza pública. A arquitetura, as artes plásticas, estradas, epitáfios etc. fazem do Estado lacaniano – um artefato político público-privado. (Veyne: 146-148). (Bandeira da Silveira. 2022: cap. 12, parte 2).

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A ciência política de Marx tem como objeto o cesarismo/tirania (Gramsci: v. 3: 77) que desintegrou a república democrática constitucional de 1848. De Napoleão III, o bonapartismo seria o fenômeno político [como paródia] com analogias comparáveis ao cesarismo romano e tirania grega. A análise concreta da situação concreta francesa faz pendant com a análise de Júlio César da situação romana. Há cultura política econômica no texto de Marx?

A relação entre forma de governo e classe social burguesa [que implica interesse econômico de classe] levanta o problema da cultura política econômica. Marx fala da luta de classes como choque de gramáticas econômicas de forma de governo

“A derrota dos insurretos de junho preparara e aplainara, indubitavelmente, o terreno sobre o qual a república burguesa podia ser fundada e edificada, mas demonstrara ao mesmo tempo que na Europa as questões em foco não eram apenas <re3pública ou monarquia>. Revelara que aqui república burguesa significava o despotismo ilimitado de uma classe sobre outra”. (Marx. 1974: 341).

Marx fala de um campo político/estico brutalista, como indiquei em outros textos, um campo político regido pela luta entre as classes fundamentais da sociedade industrial. O brutalismo do capital inglês do, “O capital” aparece como brutalismo no campo político, reservando à classe operária a superfície profunda da meia-noite, onde todos os gatos são pardos: operariado e lumpesinato político aparecem como fenômenos cinzas.

No “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, há a relação do campo político do indivíduo com o campo político sociedade/Estado. No “Guerra civil”, de Júlio César, também há esta relação que há em Marx. No “Guerra Civil”, há afecções do indivíduo (honra, exigências, dignidade, mágoa, promessas, vingança, ambição de poder, desejo do ouro etc.) e da tropa (sentimento da multidão) que movem o agir, ou político, ou da guerra. O agir político tem sua ética socrática de não prejudicar (Platão:23). Trata-se da ética socrática res publicana: não prejudicar o Estado. (César: 53). Não prejudicar o Estado é um fenômeno da cultura política econômica, pois, se trata de não prejudicar economicamente o Estado. (César:51). O eararium sanctius era o tesouro de reserva, proveniente da arrecadação de 5% de impostos pagos sobre a manumissão de escravos, para ser usado em situação de emergência. Segundo fontes César posteriormente forçou a retirada dos recursos do erário para a guerra civil. (César: 58).

César estabelece como um fato antirepublicano o uso que Pompeu faz do dinheiro para a guerra. Pompeu faz da guerra civil uma questão pessoal e não uma questão pública, ou seja, ele prejudica o Estado republicano:

“A par desses fatos, Pompeu desiste do projeto de ir à Síria. Retira fundos das companhias arrecadadoras de impostos, levanta empréstimos de particulares, carrega em navios grande quantidade de moedas de bronze para pagamentos do soldo [...]”. (César:297).

Pompeu faz parte daqueles agentes políticos que tratam a guerra civil como guerra particular. Assim:

“Por toda a Itália recrutam-se tropas, requisitam-se armas, exige-se dinheiro dos municípios, retiram-se dos templos, todas as leis humanas e divinas são baralhadas”. (César: 49).

O cesarismo de Júlio é o clássico (Bandeira da Silveira. 2024: cap. 2, parte 3), renascentista romano:

“para que o Estado não viesse a sofrer qualquer dano – fórmula de senatus-consulto pela qual o povo era chamado às armas – sua ocorrência se dera para combater leis funestas, abusos de tribunos, secessão do povo, com ocupação de templos e lugares elevados”. (César: 49).     

O campo político romano é aquele da dialética amigo/inimigo públicos, não pessoais. (César: 45). O inimigo pessoal já é parte da tela gramatical da tirania.     

Alain Badiou não inclui Júlio César entre os tiranos:

“De resto, muito mais que aos poetas ou pensadores, a máxima <é justo prejudicar os inimigos e servir aos amigos> parece-me apropriada aos Xerxes, Anibal, Napoleão ou Hitler, a todos aqueles em quem a extensão do poder provocou, por um tempo, uma espécie de embriaguez”. (Badiou: 29).

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Em Marx, o campo político do indivíduo Luís Bonaparte tem como fantasia o império no lugar da república democrática republicana de 1848. Marx relaciona essa fantasia com o campo político da sociedade:

“Eu, ao contrário, demonstro como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que possibilitaram a uma personagem medíocre e grotesca desempenhar o papel de herói”. (Marx: 331).

Rosa Luxemburgo fala do bonapartismo com relação virtual da gramática do cesarismo francês com a cultura política econômica:

Na França, os tratados que inauguraram o livre-cambismo pelas clásulas preferenciais foram concluídos por Napoleão III sem a compacta maioria protecionista do parlamento, formada por industriais e agrários; até mesmo contra ela (...). O antigo sistema protecionista da França foi modificado, de 1853 a 1862, por 32 decretos imperiais, que logo tiveram, em 1863, uma confirmação negligente e ‘legislativa’”. (Rosa: 394).

A cultura política econômica liberal substitui o mercantilismo moderno do capital francês. Há a relação das relações técnicas de produção com a forma de governo. As relações técnicas liberais correspondem à cultura política econômica do império bonapartista e as relações técnicas mercantilistas modernas à república democrática. A cultura política econômica bonapartista cria uma grande burguesia industrial liberal, urbana. A história do cesarismo francês, para Gramsci, não tem o sentido histórico que Rosa atribui ao bonapartismo de Napoleão III. (Gramsci: 1619-20).   

A ciência política de Júlio César é socrática:

“Socrate ne prenait pas pour point de départ ce qui est premier en soi ou par nature, mas ce qui est premier à nous yeux, ce qui nous frappe au premier coup d’oeil”. (Strauss: 118).

O que choca o golpe de vista de Júlio César é a guerra civil. Ele a concebe como um fenômeno da cultura política econômica romana?       

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Os jogos de gramática da ciência política de Cícero são esplendidos:

“Cícero nos dá a tela gramatical plástica de Roma:

‘1. ‘Se Roma existe, é por seus homens e hábitos’.

“’- a brevidade e a verdade desse verso fazem com que seja, para mim, um verdadeiro oráculo. Com efeito: sem nossas instituições antigas, sem nossas tradições venerandas, sem nossos singulares heróis, teria sido impossível os mais ilustres cidadãos fundar e manter, durante longo tempo, o império de nossa República”. (Bandeira da Silveira. 2022: cap. 13, parte 1).

O cesarismo faz tábula rasa da cultura política econômica da tradição. Em sua ciência política ciceriana, Hannah Arend ilumina a tela gramatical estético/política da república:

“As características mais proeminentes dos que detêm autoridade é não possuir poder. Cum potestas in populo auctoritas in senatu sit, enquanto o poder reside no povo, a autoridade repousa no Senado. Dado que a <autoridade>, o acréscimo que o Senado deve editar às decisões políticas, não é poder”. (Arendt: 164)   

A guerra civil é um direito natural da multidão armada contra a autoridade do senado republicano. Cesar recorre a esse poder para estabelecer a mudança da forma de regime republicana.

O que se perde com a cultura política econômica cesarista?

“A força coerciva dessa autoridade está intimamente ligada à força religiosamente coerciva do auspíces, que ,ao contrário, do oráculo grego não sugere o curso objetivo dos eventos futuros, mas revela meramente a aprovação ou desaprovação divina das decisões feitas pelos homens”. (Arendt: 165).

Hannah esclarece o fenômeno da autoridade republicana como cultura política do homem:

“A palavra auctoritas é derivada do verbo augere, <aumentar>, e aquilo que a autoridade ou os de posse dela constantemente aumentam é a fundação. Aqueles que eram dotados de autoridade eram os anciãos, o Senado, ou os patres, os quais a obtinham por descendência e transmissão (tradição) daqueles que haviam lançado as fundações de todas as coisas futuras, os antepassados chamados pelos romanos de maiores. A autoridade dos vivos era sempre derivativa, dependendo, como o coloca Plínio, dos auctores imperii Romani conditoresque, da autoridade dos fundadores que não mais se contavam no número dos vivos. A autoridade, em contraposição ao poder (potestas) tinha suas raízes no passado, mas esse passado era tão presente na vida real da cidade quanto o poder e a forças dos vivos. Moribus antiquis res stat Romana virisque, nas palavras de Enio”. (Arendt: 163-64).

Os mortos habitam, virtualmente, o campo político dos vivos e definem a estética da política como anverso do brutalismo. Ora, o que o cesarismo faz é desintegrar a tela gramatical da ciência política republicana de Cícero.

          

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. SP: Perspectiva, 1988

BADIOU, Alain. A República de Platão, recontada por Alain Badiou. RJ: Zahar, 2014

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. barroco, tela gramatical, ensaios. EUA: amazon, 2022

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Além da época posmoderna. EUA: amazon, 2024

CÉSAR, Júlio. Bellvm civili. SP: Estação Liberdade, 1999

CICERO. Pensadores. Da República. SP: Abril Cultural, 1973

GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. v. 3. Torino: Einaudi, 1977

LACAN, Jacques. O Seminário. livro 16. De um Outro ao outro. RJ: Zahar, 2008

MARX. Os Pensadores. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. SP: Abril Cultural, 1974

PLATÃO. Diálogos III. A República. RJ: Ediouro, sem data.

ROSA Luxemburg. A acumulação do capital. RJ: Zahar, 1970

STRAUSS, Leo. Droit naturel et histoire. Paris: Flammarion, 1986             

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