quinta-feira, 5 de julho de 2012


NOVA REPÚBLICA: O AVESSO DO REPUBLICANISMO
José Paulo Bandeira da Silveira



Oligarquia Brasileira



Na transição da ditadura militar para a Nova República, alguns fatos se destacam: a Lei da Anistia, um pacto político entre o regime e a oposição oficial (no essencial, ela perdoava os crimes políticos dos agentes do Estado); a substituição do sistema bipartidário pelo multipartidário; o movimento urbano Diretas Já, derrotado no Congresso; a eleição para presidência da República. Nesta, a candidatura oposicionista de Tancredo Neves derrotou, no Colégio Eleitoral do regime, Paulo Maluf, candidato oficioso. Para se eleger, Tancredo fez uma aliança com a oligarquia nordestina representada por José Sarney — homem do governo militar — como vice-presidente. Antes de assumir o governo, Tancredo morreu e um pacto político pôs Sarney neste cargo. O regime militar já havia governado tendo com base política a oligarquia. Celso Furtado mostrou a articulação entre eles.

A oligarquia tem uma longa história na formação política brasileira. A origem dela está nos latifúndios sesmeiros e no trabalho escravo. Oliveira Vianna fez a teoria dela como instituição política brasileira. Entre suas características encontramos um extremado individualismo familiar e patriarcal. Tal característica marcou profundamente a relação da esfera privada com a pública. Vianna afirma que o espírito público torna-se ausente como tradição e cultura[i].

Gilberto Freyre assinalou, também, o caráter privatista da “aristocracia rural”. Olhando para a relação do latifúndio com a esfera pública local, esta existe como extensão do poder despótico[ii] que caracteriza aquele articulado pela relação senhor/escravo[iii].

Todavia, a relação entre o privado e o público não se reduz a um problema de cultura política – costumes, hábitos e práticas de um determinado grupo social -, interferindo, aí, a lógica do significante político oligarquia como privatização da esfera pública. Este perdura na formação política brasileira para além da cultura política oligárquica, articulando, na atualidade, a relação entre a sociedade e a política. Pela lógica do significante oligarquia, o privatismo é inscrito, como estrutura simbólica, na subjetividade da população.

De origem local, os grupos políticos tratam a esfera pública como espaço de apropriação privada da riqueza estatal. Ao definir regras frouxas para a constituição de municípios, a Constituição de 88 abriu as portas para a privatização da esfera pública a partir de baixo. Nesta dimensão, a política é vivida como um meio de aquisição de riqueza pessoal, familiar. “(...) a vida pública é menos serviço público do que meio de vida privada (...)”[iv]. Na Antiguidade grega, Aristóteles caracteriza o governo “legítimo” como um espaço proibitivo para a aquisição de riqueza pessoal ou de grupo. O próprio regime oligárquico — como governo dos ricos, na sua forma aristocrática — pode ser considerado legítimo se obedecer à lógica do bem comum[v].

Em uma hipótese geral, Vianna atribui à América Latina uma estrutura de dominação que ele designa como regime de clã. Esta estrutura de poder ilegítima faz da política um prolongamento do interesse privado — ou de indivíduo, ou de família ou de clã[vi]. Neste sentido, lógicas particularistas penetram na esfera pública. Mas estas não se limitam à política oligárquica.

Max Weber tratou da invasão da esfera pública por lógicas particularistas. Os partidos modernos são instrumentos que submetem o interesse geral a lógicas particularistas do interesse individual e do interesse do aparelho político. Um partido é visto pelos seus agentes como um modo de obter vantagens pessoais, prebendas e cargos[vii]. Excetuando partidos ideológicos puros, os partidos de patronagem de cargos são um meio de privatização da esfera pública ao submeter esta à lógica dos interesses privados de seus membros. O regime de clã ou oligárquico e o partidarismo[viii] são duas estruturas de dominação que fazem da esfera pública um espaço político para o desenvolvimento de lógicas particularistas. Deste modo, o Estado não é o lugar do universal, tal como formulado por Hegel[ix]. No sentido aristotélico, trata-se de duas formas ilegítimas de poder.

No Brasil contemporâneo, o regime oligárquico e o partido moderno organizam a atividade política e as relações do mundo privado com a esfera pública. Em determinadas regiões, as oligarquias organizam a vida política ao lado dos partidos modernos. A existência dos partidos modernos no país ocorreu na democracia populista de 1945-64. Tal experiência seria retomada, em escala nacional, na Nova República. Na República Velha de 1889-1930, os partidos são organizações oligárquicas[x] que configuram uma estrutura política de dominação nacional. O Estado da República Velha é o comitê da oligarquia[xi]. Trata-se de uma forma ilegítima de poder que submeteu o Estado à lógica de interesses particularistas.[xii] Manoel Bonfim caracterizou a República Velha como uma política de bandos oligárquicos pilotados por um familismo colonial.[xiii] Eles possuíam uma subjetividade agenciada por pulsões sociais particularistas e privatistas, uma marca da formação política brasileira, que submete o interesse público ao interesse privado “(...) O brasileiro é, politicamente, o homem individualista e privatista, arrastado pela libido dominandi e conduzindo-se na vida pública sem outro objetivo senão a satisfação desta libido (...)”[xiv]. A repetição persistente deste Brasil antigo surge como um dos principais problemas na corrosão da democracia atual. Os bandos oligárquicos continuam presentes na política atual ao lado de bandos patrimonialistas e de bandos capitalistas na apropriação da riqueza pública.  

A revolução de 30 é a primeira ruptura mais séria com a cultura política privatista. A política de Vargas joga o país na era moderna, mas não rompe com a lógica do significante político “oligarquia”. Esta reaparece na organização da política democrática de 1945-64, durante o regime militar e, de um modo complementar á política moderna, na Nova República. O governo Sarney é a repetição deste Brasil antigo associado a formas modernas de política nacional.

O governo Sarney inaugura a Nova República como uma configuração de duas formas de poder: a antiga e a moderna; as formas partidárias são o instrumento delas. Neste período, os partidos de esquerda aparecem como críticos do “modelo político” implantado. Eles funcionam como partidos ideológicos — que são, sobretudo, representantes de ideologias, pretendendo, portanto, a realização de ideais de conteúdo político[xv] — em contraponto aos partidos dominantes, ou seja, aos partidos de patronagem e aos oligárquicos. Todavia, a esquerda está sozinha na sua crítica às práticas antirrepublicanas das elites que governam o país. Neste período, a Procuradoria Geral da República está adormecida e os instrumentos policiais de controle da conduta dos agentes governamentais e estatais ainda não funcionam. Por outro lado, a imprensa ainda não atuava como instrumento de investigação da corrupção dos agentes políticos e estatais. Neste sentido, o governo Sarney foi o paraíso artificial da elite política.

No governo Sarney, o partidarismo governa as engrenagens do Estado, e as cúpulas controlam a vida dos grandes partidos. Estes ainda não apresentam aquela face moderna da política que é a burocratização progressiva do aparelho partidário. Talvez a única exceção seja o Partido dos Trabalhadores (PT), que funciona como um partido ideológico. Há um contraponto entre a privatização do Estado promovida pelo PMDB — partido dominante no governo − e a ética republicana do PT, que elabora a necessidade de um modo de fazer política baseado numa clara distinção entre a vida privada e a vida pública dos agentes políticos: indivíduos e aparelhos partidários. Ao lado dos pequenos partidos de esquerda, o PT representa uma ruptura com a cultura política privatista e a estrutura simbólica brasileira. Neste sentido, um novo republicanismo parece inscrever na cena política uma promessa para a Nova República. Neste momento, havia dois modelos políticos em pauta: um real e outro virtual.

A burocratização do Estado e do direito vê, em geral, a possibilidade de uma rigorosa distinção significante entre o público e o privado. No Brasil do governo Sarney, o partidarismo é um golpe contra tal fenômeno. Por outro lado, uma herança do regime militar, o capitalismo de Estado é visto como um verdadeiro banquete para a libido privatista dos grupos políticos que controlam o Estado. Na ditadura militar, o capitalismo de Estado foi uma fonte de cargos e prebendas para o regime obter o apoio das oligarquias. Na Nova República, ele será o espaço para a expansão de um partido de patronagem de cargos: o PMDB. Neste caso, o objetivo dele consiste em colocar, mediante eleições, seus chefes na posição de dirigentes, para, em seguida, ocupar os cargos estatais com os grupos políticos que organizam a vida partidária. Viver da política é o objetivo da maioria dos partidos brasileiros na Nova República. Isto significa que a camada politicamente dominante costuma aproveitar sua posição de senhor em favor dos seus interesses econômicos privados[xvi]. Além disto, o recrutamento plutocrático das camadas políticas não redunda em viver para a política no sentido de não fazer dela um modo de aquisição de riqueza pessoal, familiar e empresarial. Ao contrário, os grupos plutocráticos da política brasileira existem como bandos capitalistas que buscam modos de se apropriar da riqueza pública. Por exemplo, as empresas capitalistas usam de vários artifícios legais, ao contratarem obras e serviços do Estado, para acumular capital em uma verdadeira exploração privada da esfera estatal.

No governo Sarney, a Nova República inaugura a dominação dos partidos sem a burocratização dos grandes partidos. Eles exercem a dominação política, mas não sob a liderança de especialistas profissionais na tática organizacional[xvii]. Há especialistas que organizam a tática eleitoral, mas como um serviço capitalista; eles são de fora dos partidos. De fato, os partidos são dominados por bandos políticos que se especializam na construção de carreiras políticas — e, também, no controle do aparelho partidário — a partir da consolidação de “clientelas” eleitorais. Para os partidos oligárquicos é mais fácil a produção das clientelas eleitorais. Este modelo político foi colocado abaixo no governo Collor.



Príncipe Eletrônico[xviii]



Em 1989, Collor (PRN) e Lula (PT) disputam o segundo turno da primeira eleição direta para a presidência da República. Na sua grande maioria, a burguesia apoiou Collor, e Lula surge como um líder político de origem operária. Esta eleição torna-se o sintoma político da contradição burguesia-proletariado. Trata-se da luta de classes na política Neste momento, o PT ainda existe como um partido basicamente ideológico. Com o apoio da grande imprensa e do sistema de comunicação eletrônico, Collor derrota Lula, por uma pequena margem de votos, obtendo cerca de 35 milhões de votos. Tal fato já representa o reconhecimento de Collor como um líder carismático na era do Príncipe Eletrônico.

Este é uma estrutura de dominação política cuja hegemonia política é realizada através do sistema de comunicação eletrônico. Na eleição, A figura de Collor é construída, eletronicamente, como um herói em luta contra o status quo representado por Sarney, como encarnação do modelo político vigente, corroído em sua legitimidade pela hiperinflação. Apoiado por um pequeno partido (PRN) e sendo governador de um pequeno estado nordestino (Alagoas), obtém o apoio da burguesia sem necessitar fazer alianças com os grandes partidos burgueses. Também descarta o apoio de partidos oligárquicos. Sintoma do Príncipe Eletrônico é o apoio decisivo que Collor recebe de Roberto Marinho, proprietário do canal de televisão mais influente no país: a TV Globo.

Collor é o primeiro ensaio de um governo carismático de hegemonia eletrônica que dispensa o partidarismo como apoio à estrutura de dominação. Baseado na crença de seu carisma, ele se atribui a missão de retirar o país da situação econômica, que o governo Sarney herdou do regime militar, assolada pela hiperinflação. No governo Collor, o Príncipe Eletrônico parece suspender os mecanismos que asseguravam a hegemonia política do bloco no poder — formado pela grande burguesia — sobre o conjunto das classes e outras partes da população. A hegemonia do capital internacional se irradia através de uma rede virtual que tem como pólos dominantes o governo e a mídia eletrônica. O apoio do capital internacional à Collor fica claro na atitude benevolente dele em relação à dívida externa do país.

O governo Collor acena com uma modernização intempestiva da economia e do Estado Para controlar a hiperinflação, ele confisca a poupança e quebra contratos. Todavia, a modernização do Estado se reduz à demissão em massa de funcionários públicos. Já a modernização da economia se realiza através da privatização das estatais, da desregulamentação e da “abertura dos portos” ao capital internacional. Neste sentido, Collor se choca com a burguesia local, a burguesia estatal e com a indústria automobilística ao desmanchar o protecionismo das reservas de mercado. A política de Collor atingiu os sindicatos seja na demissão dos funcionários públicos, seja no ataque à política de emprego mantida através das reservas de mercado. A política de Collor tem como objetivo estabelecer a soberania do consumidor, sendo este, no plano econômico, o súdito de fato do Príncipe Eletrônico.

Como senhor carismático, Collor realiza uma dominação em ruptura com o antigo regime, representado pelo governo Sarney. Como signo desta, ele extingue o SNI, o serviço de espionagem da ditadura militar mantido por Sarney. O poder do carisma se afirma em ruptura com a norma política, na convicção emocional da importância e do valor de uma manifestação política, no heroísmo de um governo que rompe com o partidarismo, a estrutura de dominação partidária implantada pelo PMDB no governo Sarney. Contudo, o governo possuía uma parte invisível para a opinião pública.          

No lado escuro da vida pública, Collor é o herdeiro da política oligárquica nordestina que vê na esfera pública um espaço privado de aquisição de riqueza individual, familiar e clânica. Com um bando político chefiado pelo amigo e parceiro PC Farias, o governo Collor substituiu os partidos na apropriação privada da riqueza estatal. Das empresas que possuíam serviços e obras com o Estado, o bando político chega a cobrar taxas de 30% para a realização dos contratos. Trata-se da formação de uma Societas Sceleris governamental[xix]. Ao se tornar pública, esta superfície da política desencadeou uma reação legislativa com a CPI do PC e uma ação da sociedade com o movimento de massas “Fora Collor”. Nesta nova situação política, o Príncipe Eletrônico desabou como um castelo de cartas. A aliança de Lula e Roberto Marinho[xx] contra Collor é o sinal mais claro do fim desta dominação política que foi desmanchada pela imprensa de papel através dos semanários Veja e Isto É e de jornais diários: Jornal do Brasil, País e Correio da Manhã. O processo político culminou com o impeachment de Collor e a posse no governo do vice Itamar Franco.

Tendo como ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, o governo Itamar Franco controlou a inflação e lançou FHC como candidato à presidência da República em uma campanha que derrotou Lula e o PT. O governo FHC daria continuidade ao liberalismo econômico de Collor através da retomada do partidarismo como mecanismo de dominação política. No lugar do PMDB, o PSDB e o PFL pilotavam agora a hegemonia do bloco no poder na cena política. Trata-se de um retorno às formas de apropriação privada da riqueza estatal impulsionado por partidos de patronagem e por partidos oligárquicos. FHC reuniu o antigo e o moderno em uma estrutura de dominação que abalou as bases da tradicional política brasileira. Seguindo sua trajetória intelectual, ele fez do ecletismo a fórmula política de ruptura com o passado. Neste sentido, ele continua o governo Collor.             



Discurso do Capitalista[xxi]



Continuando o liberalismo econômico de Collor, FHC faz do discurso do capitalista a base de uma estrutura de dominação do bloco no poder. Trata-se de um fenômeno que distingui uma ruptura com a formação política brasileira. O discurso do capitalista agencia o Estado capitalista e o capitalismo moderno na vida política do país.

Raymundo Faoro[xxii] estuda o Estado patrimonialista nos períodos colonial e imperial. Trata-se de uma formação política que cria obstáculos à existência do capitalismo moderno no Brasil. Portanto, a formação do Estado moderno foi um passo importante na constituição do capitalismo brasileiro. Fazendo uma revisão da bibliografia sobre a economia brasileira, Oliveira Vianna[xxiii] observou, com certa perplexidade, a natureza pré-capitalista da economia brasileira, inclusive no período de existência da economia industrial. Na concepção weberiana, trata-se de um capitalismo irracional. São, portanto, dois aspectos da moderna formação social brasileira. O primeiro é a ruptura com o Estado patrimonialista; o segundo é a emergência do capitalismo moderno. Trata-se de indagar o que isto significa em termos de republicanismo, ou seja, do significado disto como construção de esfera pública e da relação desta com o mundo privado.

O Estado patrimonialista não opera com a separação entre o particular e o universal, entre o privado e o público. Mesmo nos modernos Estados patrimonialista europeus, há a permanência da invasão da esfera estatal pela esfera privada. Weber vê a formação do Estado patrimonialista como organização do poder político a partir do modelo do poder doméstico: “Quando o príncipe organiza, em princípio, seu poder político, isto é, sua dominação não doméstica, com o emprego da coação física contra os dominados, sobre territórios e pessoas extrapatrimonias (os súditos políticos), da mesma forma que o exercício de seu poder doméstico, falamos de uma formação estatal-patrimonial. A maioria de todos os grandes impérios continentais apresentou, até o início da época Moderna e ainda dentro desta época, um caráter fortemente patrimonial”[xxiv].   



Séculos de Estado patrimonialista no Brasil gerou, nas elites, uma cultura urbana de apropriação privada da esfera pública, uma cultura política patrimonialista. Tal cultura se desdobra na lógica do significante patrimonialista no espaço político da atualidade. Entretanto a partir da Revolução de 30, Vargas introduziu elementos de uma política moderna com a burocratização do Estado. Mas na sociedade civil, o capitalismo continua irracional, lógica fortificada pela criação do capitalismo de estado. Sobre o período de afirmação do Estado capitalista, por um lado, Octavio Ianni mostrou o vínculo entre o grande capital e a ditadura militar[xxv]; por outro lado, Luciano Martins escreveu sobre a natureza capitalista do Estado: “(...) o modo de expansão do Estado no período pós-64 se fez acompanhar justamente da introjeção do ethos capitalista pela burocracia estatal, e não apenas pelo segmento desta que controla as empresas do estado com inserção na produção. A expressão Estado capitalista deve ser entendida, assim, num duplo sentido: a de um Estado garante da ordem social capitalista e a de um Estado cujo aparelho se expande com (e através de) práticas capitalistas”[xxvi]. Trata-se da expansão da dominação racional-burocrática e da formação de um bloco no poder sob a hegemonia do capitalismo internacional. Todavia, como isto mexeu com a relação entre o particular e o universal, entre o privado e o público? E como alterou a natureza irracional do capitalismo brasileiro?

Em função da acumulação capitalista, o Estado põe o problema da hegemonia, tal como foi formulado por Gramsci. Trata-se da hegemonia em um sentido universal. Em Marx, o Estado está sob o domínio de uma classe, ele obedece a uma lógica particular. Em Gramsci, a hegemonia obedece à lógica do modo de produção[xxvii]. Todavia, esta hegemonia é um processo histórico construído por sujeitos sociais e políticos.

Com FHC, a hegemonia obedece à lógica do discurso do capitalista como forma institucional de poder. Trata-se de uma ruptura com o Estado capitalista da ditadura militar e do governo Sarney, ambos agenciados por uma burguesia de Estado. Esta está no centro da articulação do público com o privado, com a ocupação privada das empresas estatais: pela oligarquia na ditadura militar, e pelos partidos oligárquicos e de patronagem no governo Sarney. Além disto, as presenças da burguesia de Estado e dos mecanismos protecionistas ao capitalismo privado configuram um capitalismo irracional: seja no regime militar, seja no governo Sarney.

No governo FHC, forma-se um bloco no poder (capital financeiro, capital industrial, capital agrário), com a exclusão do capital estatal, que obedece à lógica do capitalismo privado. As privatizações das estatais parecem modificar o modo de articulação da política com a sociedade e da esfera pública com a esfera privada. A redução significativa da burguesia de Estado diminui a presença dos partidos na esfera pública. Além disto, assiste-se à implantação de uma estrutura racional-burocrática nas relações de produção que se faz acompanhar de um ensaio, ainda incipiente, de uma nova racionalização do aparelho estatal. Todavia, as privatizações da era FHC aparecem sob a suspeita de uma corrupção patrocinada por bandos urbanos patrimonialistas, do sudeste, encastelados no governo. Assim como com o partidarismo, os partidos oligárquicos e de patronagem se apoderam de cargos estatais, reproduzindo a tradicional apropriação privada da riqueza pública.

Contudo, a era FHC deu, por um lado, um passo importante na construção da hegemonia gramsciniana de um ângulo governamental.  Por outro lado, esta hegemonia é obra do aparelho de hegemonia privado. No Brasil, o aparato privado central desta hegemonia é constituído por um sistema de comunicação eletrônico.  Ele reproduz na esfera das ideologias, socialmente, o modo capitalista de produção. Todavia, não se deve subestimar o papel do Estado na reprodução ideológica do sistema capitalista. Pois tradicionalmente no Brasil, o Estado tem um importante papel no modo de articulação entre o mundo privado e o mundo público, entre as classes e a política, entre as lógicas particularistas e a esfera pública. Em um sentido universal, a hegemonia - do bloco no poder sobre as classes populares e outras partes da população - depende da ação estatal, ao lado dos aparelhos privados de hegemonia.

Na era FHC, um novo modelo político é constituído segundo a lógica do discurso do capitalista.  Ele substitui o modelo político brasileiro: da ditadura militar ao governo Sarney. Se no modelo brasileiro tradicional, o capitalismo internacional compartilha a hegemonia com a burguesia local e com a burguesia estatal, em um modo de acumulação irracional da economia; no modelo FHC, esta hegemonia passa para as mãos das burguesias privadas: financeira, industrial, agronegócio. Nesta hegemonia, o discurso do capitalista passa a determinar o modo de articulação entre o público e o privado e o modo de funcionamento da acumulação capitalista no Brasil. Neste sentido, o Estado capitalista e o capitalismo moderno passam a disputar o lugar central da hegemonia na formação política brasileira.



Discurso do Mestre[xxviii]



Florestan Fernandes foi deputado pelo PT. Professor da USP, ele deixou uma obra importante para o estudo do país. Para ele, a revolução burguesa produziu uma forma estrutural de dominação: a autocracia burguesa[xxix]. Tal domínio político configurava um pacto elitista contra a população, colocando-a na posição de escravo político: “(...) Os estratos estratégicos das classes burguesas e suas elites voltam-se para o pacto social, que no Brasil sempre significou manter uma sólida dominação de classe burguesa e uma invulnerável subalternização das massas anômicas, das classes trabalhadoras e da pequena burguesia como as duas faces de uma mesma moeda (...)”[xxx].

A Nova República modificou este quadro substituindo a autocracia burguesa por outras formas de dominação política. Mas somente com o governo Lula é constituída uma experiência antípoda à autocracia burguesa. Trata-se do bloco histórico[xxxi]uma ampla aliança do bloco no poder (capital industrial, capital bancário, capital estatal, agronegócio) com as classes dominadas e partes indefinidas da população. O bloco histórico faz da política um espaço ampliado de hegemonia burguesa permitindo às classes populares agirem como sujeitos sociais. Nesta nova situação política, a classe operária torna-se classe apoio[xxxii] da fração industrial do bloco no poder. Mas o bloco histórico funciona através de uma combinação concreta de estruturas de dominação políticas.

Na cena política, o PT torna-se o partido dominante. Ao ocupar tal posição de senhor no campo partidário, ele se modificou. De partido ideológico, ele se transforma em partido de patronagem de cargos: “(...) Neste caso, seu objetivo consiste simplesmente em colocar, mediante as eleições, seu chefe na posição dirigente, para em seguida, ocupar os cargos estatais com seu séqüito (...)”[xxxiii]. De fato com o governo Lula, o PT passa a ser a fusão de partido ideológico com partido de patronagem: “(...) Todas as lutas entre partidos não são apenas por fins objetivos, mas também, e, sobretudo, lutas pela patronagem dos cargos (...)”[xxxiv]. Tal fenômeno altera a cena política uma vez que desaparece um modelo político virtual — o republicanismo de esquerda — como alternativa ao modelo tradicional e ao modelo capitalista de FHC.  Mas o que faz funcionar o partido? Esta questão será retomada em seguida.

Na era Lula, a articulação entre o espaço privado e a esfera pública é radicalmente alterada por vários fenômenos. O PT torna-se um partido de patronagem abandonando o republicanismo de esquerda, como já foi mencionado. O partidarismo inscreve práticas oligárquicas e patrimonialistas, em larga escala, com o PAC (Programa de Aceleração de Crescimento). O Estado passa a determinar, novamente, a articulação do privado com o público com a modificação do bloco no poder. Neste, uma nova burguesia de Estado em aliança com a fração industrial reincide em um capitalismo irracional e em uma forma distorcida de modelo econômico capitalista. A reestruturação do capitalismo de Estado cabe ao BNDES que passa a financiar empresas privadas e a compartilhar com empresários a propriedade de suas empresas.

Outro fenômeno foi decisivo na articulação do público com o privado. O PT tem “um chefe de partido”, um líder carismático, que funciona na forma do mestre[xxxv]. O discurso do mestre faz funcionar o partido e o poder político na era Lula.

O mestre na política é uma posição de senhor que se caracteriza pela posse de um savoir-faire. Mas ele vai além. O mestre faz parte de uma estrutura de dominação agenciada por um poder despótico[xxxvi]. Esta forma de poder é alterada ao longo da história. Hegel acreditava que a história universal apresentava-se como interação entre mestria e servidão: a “dialética” histórica é a “dialética” do mestre e do escravo[xxxvii]. Weber traduziu esta estrutura para o plano político moderno: “(...) Acima do Parlamento encontra-se, portanto, o ditador, de fato, plebiscitário, que mobiliza as massas em seu favor mediante a “máquina” e para quem os parlamentares são apenas prebendados políticos que fazem parte de seu séqüito (...)”[xxxviii]. É a reprodução política da posição de senhor (mestre) e da posição de escravo (séquito). O escravo trabalha, politicamente, a serviço do senhor. Em tal situação, o desejo de reconhecimento universal da dominação do mestre provocou uma alteração profunda no espaço político brasileiro, ao lado de outros fenômenos.

Marx deixou um texto excepcional sobre a França do século XIX: O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Trata-se do bonapartismo como funcionamento do discurso do mestre na política francesa. Um aspecto crucial dele é a existência de uma formação política: o lumpesinato político. Na era Lula, este fenômeno aparece na política brasileira em função do discurso do mestre. Trata-se do financiamento ilegal de políticos e partidos, pilotado pelo PT, em função do partidarismo. Tal fato foi designado pelo nome de “mensalão”. Além do discurso do mestre, outros fenômenos contribuem para a eclosão e a expansão do lumpesinato político. No governo do Distrito Federal de José Roberto Arruda, o mensalão do DEM (ex-PFL) é o sinal da expansão política dele, fazendo da esfera pública um espaço de aquisição ilegal de riqueza pública. Neste caso, o fenômeno é produzido pelo significante oligarquia.

O caso da Delta é outro fato que aponta para uma difusão do lumpesinato político em vários níveis da federação, como forma econômica. A Delta é uma empresa privada que foi contratada pelo governo federal para fazer obras do PAC, mas também por governos estaduais e municipais. Associada ao bicheiro Carlos Cachoeira, a Delta passou a fazer parte de uma rede lumpesinal de corrupção e de tráfico de influência de agentes políticos e estatais em governos: federal, estadual e municipal, aparelhos de estado e empresas. Trata-se da intervenção das lógicas patrimonialista e oligárquica na esfera pública brasileira. Todavia estes casos parecem indicar a ponta do iceberg na presença do lumpesinato na vida pública. Como expropriação empresarial da riqueza pública, a lógica do significante político capitalismo inaugura a produção ampliada de um lumpesinato empresarial — forma econômica do lumpesinato político - que parece florescer em torno de obras e serviços estatais nos vários planos da federação e, talvez, nas ramificações do entrelaçamento do capital privado com o capitalismo de Estado. Na totalidade, os eventos enumerados acima delineiam a formação de um rizoma lumpesinal.

Um último fenômeno deve ser mencionado. Trata-se da expansão do lumpesinato político a partir de baixo como efeito na sociedade local da política oligárquica. É a difusão lumpesinal no plano municipal. Outros fatores concorrem para tal fenômeno que dizem respeito à relação entre povo e republicanismo, ou melhor, a quase ausência deste em largas parcelas da população. Todavia, a emergência da “classe” C – emergência de uma classe média do seio da população - na política brasileira põe novos problemas para o entendimento dela. Tradicionalmente, a classe média é mais susceptível ao republicanismo. Por um lado, a inclusão de milhões de eleitores no espaço político como classe média pode ser um ponto social de força para uma reação ao lumpesinato político. Por outro lado, as forças republicanas nos partidos, na imprensa, no sistema de comunicação eletrônico, na internet, no Estado e na sociedade podem tornar visíveis a lógica e a ação do lumpesinato político iniciando uma luta contra ele nos espaços cultural e político Mas tudo isto já está além do discurso do mestre que deixou de funcionar como estrutura de dominação no governo Dilma Rousseff.              



[i] VIANNA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. V I. Niterói. EDUF. 1987: 108.
[ii] ARISTÓTOLES. Obras. Política. Madrid. Aguilar. 1982: 682
[iii] VIANNA. Ibid: 130
[iv] VIANNA. Ibid. V. II: 132.
[v] ARISTÓTELES. Ibid: 780, 781.
[vi] VIANNA. Ibid. V I: 142, 145.
[vii] WEBER. Economia e Sociedade. V. I. Brasília. Editora Universidade de Brasília. 1999: v. I. 188; v. II: 546-547,550-551.
[viii] WEBER. Ibid. V. I: 190, 193; V. II: 210.
9 KOJÈVE. Alexandre. Introdução à Leitura de Hegel. RJ: Contraponto. 2002: 98, 102.
[x] VIANNA. Ibid. V. I: 158.
[xi] VIANNA. Ibid. V.II 136-137,152.
[xii] VIANNA. Ibid: 286.
[xiii] BOMFIM. Manoel. O Brasil Nação. Realidade da Soberania Brasileira. RJ: Topboooks. 1996: 502,509,532-533.
[xiv] VIANNA. Ibid. V II: 298.
[xv] WEBER. Ibid. V. II: 546.
[xvi] WEBER. Ibid. V. II: 535.
[xvii] WEBER. Ibid. V. II. : 210.
[xviii] IANNI. Octávio. O PRÍNCIPE Eletrônico. Col. Primeira Versão. Campinas. IFCH-UNICAMP. Nov. 1998.
[xix] MENDES. Cândido. Collor. Ano Luz. Ano Zero. RJ. Nova fronteira. 1993: 142.
[xx] MENDES. Ibid:198.
[xxi] LACAN. Televisão. RJ. Jorge Zahar Editor. 1998.
[xxii] FAORO. Raymundo. Os donos do poder. RJ/SP/Porto Alegre. Globo. 1958
[xxiii] VIANNA. Oliveira. História Social da Economia capitalista no Brasil. 2 vols.. Niterói. EDUFF. 1988
[xxiv] WEBER. Ibid. V. II: 240.
[xxv] IANNI. Octávio. A Ditadura do Grande capital. SP. Civilização Brasileira. 1981.
[xxvi] MARTINS. Luciano. Estado capitalista e Burocracia no Brasil pós-64. RJ. Paz e Terra. 1985: 40.
[xxvii] MARTINS. Luciano. Ibid: 38.
[xxviii] LACAN. O Avesso da Psicanálise. S. XVII. RJ. Jorge Zahar. 1992.
[xxix] FERNANDES. Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. RJ. Zahar Editores. 1976.
[xxx] FERNANDES. Florestan. A Ditadura em Questão. SP.  T. A. Queiroz Editor. 1982: 109.
[xxxi] GRAMSCI. Antonio. El Risorgimento. Argentina. Granica. 1974.
[xxxii] POULANTZAS, Nicos. Poder Político e Classes Sociais. SP. Martins Fontes. 1977: 239.
[xxxiii] WEBER. Ibid: 545-546.
[xxxiv] WEBER. Ibid: 546.
[xxxv] WEBER. Ibid: 333.
[xxxvi] JEAGER. Werner. Aristóteles. México. Fundo de Cultura Econômica. 1995: 315, 324.
[xxxvii] KOJÈVE. Alexandre. Introduction à la Leicture de Hegel. Paris. Gallimard. 1947: 16.
[xxxviii] WEBER. Ibid: 553.