sábado, 29 de dezembro de 2018

SHAKESPEARE – psicanálise em gramática econômica


José Paulo


O trabalho científico é demorado e se faz em redes de iminentes colaboradores, instituições universitárias, estudantes de pós-graduação e a cooperação entre cientistas dos EUA e Europa. Estou falando da fabricação quase industrial do livro “Os dois corpos do rei”. O livro em tela necessitou de um volume considerável de capital-dinheiro público. Com a decadência da razão europeia (e anglo-americana), a cultura científica perdeu o vigor da década de 1950.
Trata-se de um livro sobre teologia política medieval, de uma teologia que alcançou o século XX. Nesse meu ensaio uso a interpretação do Ricardo II do livro do maravilhoso de Kantorowicz  para imaginar a relação da spaltung  do  eu real com a política medieval a partir do Ricardo II de Shakespeare. No fim, falo do eu burguês!

                                                            II

2 corpos do rei é um significante medieval transliterário que habita os domínios da literatura, da teologia e do direito. Ele é o significante-mestre da política medieval e do absolutismo.  

O Rei tem o corpo natural e o corpo real (de realeza), divino, angelical; corpo real não sujeito à imbecilidade, velhice ou morte; o rei que nunca morre (corpo político imortal) faz pendant , no Renascimento, com a propriedade pessoal do patrimonialismo real no absolutismo; o corpo real é produzido pela consagração em ritual que erige a dignidade sacramental com os símbolos da coroa, cetro, diadema, óleo e nome ou título real.

Os 2 corpos do rei fala de uma separação entre o eu real e o eu do homem comum no drama histórico Ricardo II. Kantorowicz pensa os 2 corpos do rei a partir da teologia política. A teologia política tem pontos fortes em Aristóteles e no estoicismo.

A teologia política fala do orador perfeito como hegemonikón. (Elorduy. S. J.: 110). Este corresponde ao sujeito gramatical existencial rector percipio. Hegemonikón é a parte mais elevada da alma (rector percipio) que governa as fantasias, o campo dos afetos, tendências, representações e os instintos ou pulsões. O hegemonikón é o avesso da besta dominada por apetites das coisas.

A teologia política pensa a autoridade como posse do rector percipio, ou seja, aquele que tem as melhores qualidades (ethos) para governar. A teologia pensa o princípio do movimento político como perfeição; ela fala da existência de Deus (Eloduy, S. J.: 112-113). como ser perfeito. Deus é a primazia do domínio da bondade e da inteligência como coisas inseparáveis.
Na teologia política de Aristóteles, a atualização do poder (potência) se deve a certos seres que podem mover racionalmente os homens, mulheres e crianças (e coisas) e que seus poderes são racionais. Tributária de ordem teológica, a razão teológica (Eloduy, S. J.:112) faz pendant com o poder de mover racionalmente a política.

Aristóteles diz que o hegemonikón na forma humana do rector percipio é um homem que deve ser excluído da polis/politeia. Porque não seria digno que ele obedecesse aos mais indignos que ele, nem que todos os demais se vissem privados do direito natural do homem de mandar alternativamente, só porque surgira entre eles um ser de uma magnitude superior à humana; o domínio da bondade e inteligência, inseparáveis,  superiores em perfeição ao homem comum só Deus possuiu. (Eloduy, S. J.: 112-113).

Hegemonikón fala de um poder de movimentar a política como grau zero de coerção: heimarméne. Esta condensa em si toda a força e capacidade de produzir movimento. ( Eloduy, S. J.: 141). Hegemonikón é o princípio diretor da persona estabelecida como unidade do eu cum logos que articula as partes da alma, sem o qual irremediavelmente conduziria a uma conformação anômala, monstruosa. (Eloduy, S. J.: 111).

Na psicanálise em gramática econômica, a persona não encontra-se dissociada da política; ela não é um eu caixa-forte como em certas teorias psicológicas; uma terapia pela gramaticalização da persona não pode ser dissociada da política tout court. O significante teológico 2 corpos do rei fala da spaltung de qualquer sujeito gramatical: da divisão do sujeito à quebra do mundo do sujeito gramatical como linguagem política. (Bloom: 318, 325).

O drama histórico Ricardo II tem como objeto a spaltung do sujeito gramatical em ethos e pathos. (Bloom: 320-321). O 2 corpos do rei é a divisão do sujeito em sublime (ethos) e grotesco (pathos). A força das religiões na atualidade se deve ao sujeito realmente existente dividido entre a busca do sublime (identificação com Deus = Campo simbólico lacaniano) e a queda nos prazeres grotescos da carne da era feudiana.

                                                                         III

Pode-se abordar o sujeito pelo governo de si; pode-se abordar o sujeito como governante de homens, mulheres e crianças. Neste domínio encontra-se o significante 2 corpos do rei.
Ricardo II  é um homem da sociedade de corte do final do século XIV e rei de uma nobreza militar usada para fazer a Guerra dos Cem Anos. Ele convocou (sobre a base de possessão da terra) a última ordem de batalha propriamente feudal, em 1385, em um ataque contra a Escócia. (Anderson: 113). O eu de Ricardo é determinado pela polémios (Derrida:110) e pela vida da sociedade de corte.

Ao contrário do eu real territorial, o eu burguês mais completo é associado ao desenvolvimento da desterritorialização da esfera econômica capitalista industrial:
“Além do mais, as funções políticas e militares ainda não se haviam se diferenciado das econômicas, coo ocorreu gradualmente na sociedade moderna. A ação militar e as ambições políticas e econômicas eram, na maior parte, idênticas; o desejo ardente de aumentar a riqueza sob a forma de terras equivalia à mesma coisa que ampliar a soberania territorial e aumentar o poder militar. O homem mais ricos numa determinada área, isto é o que possuía mais terra, era portanto o militarmente mais poderoso, com maior número de servidores e, a um só tempo, comandante do exército e governante”. (Elias.1993: 46).

O eu medieval territorial da sociedade ocidental não se constitui como um imaginário  (eu↔ eu)? É mais correto falar de um supereu medieval formado só na sociedade de corte?
Elias diz:
“o tempo deles - e o tempo, como a moeda, é função da interdependência social – era sujeito apenas superficialmente à continua divisão e regulação impostas pela dependência em relação a outras pessoas. O mesmo se aplicava a suas paixões. Eram selvagens, cruéis, inclinados a explosões de violência e, de igual modo, abandonavam-se à alegria do momento. Podiam fazer isso. Pouco havia na situação em que viviam que os compelisse a adotar moderação em seus atos. Pouco em seu condicionamento os forçava a desenvolver o que poderíamos chamar de um supereu rigoroso e estável, como função da dependência e das compulsões originarias de outras pessoas e que neles se transformassem em autodisciplina”.  (Elias. 1993: 70).

O eu real fazendo parelha com a etiqueta se estabelece como relação de dominação eu (rei autodisciplinado) eu (súdito:
“Para Luís XIV, a função da etiqueta não consiste apenas em marcar a distância que o separa dos seus súditos. A etiqueta é para ele um instrumento de dominação. Luís XIV exprimiu muito claramente este pensamento nas suas Memórias: ‘Enganam-se grosseiramente aqueles que pensam que não passam de questões de cerimônia. Os povos sobre os quais reinamos, não podendo penetrar no amago das coisas, fazem os seus juízos pelo que veem de fora e é quase sempre a partir das precedências e das posições hierárquicas que medem o seu respeito e obediência. Como é importante para o público ser governado por uma só pessoa, também é importante para ele que aquele que desempenha essa função esteja de tal modo acima dos outros que ninguém se possa confundir ou comparar com ele e não se pode, sem lesar todo o corpo do Estado, retirar à sua cabeça os sinais de superioridade, e mesmo os mais ínfimos, que a distinguem dos seus membros’.
Esta é a opinião de Luís XIV sobre a etiqueta. Para ele, não se trata de um simples cerimonial, mas de um meio de dominar os seus súbditos. O povo não crê no poder, mesmo real, se ele não se manifesta na aparência exterior do monarca. Precisa de ver para crer. Quanto mais distante se mostra o príncipe, maior será o respeito que o povo lhe testemunha”. (Elias. 1987)  

Respeito e obediência são dois fenômenos da relação eueu generalizada. Eles dependem das aparências de semblância autenticas criadas e recriadas também pela etiqueta. Assim, o rei é o Sol que nasce e se põe todo dia, não como metáfora e sim como realidade natural:
“De acordo com a distinção que Portmann faz entre aparências autênticas e inautênticas, poder-se-ia falar de semblâncias autênticas e inautênticas. Estas últimas, miragens como  de alguma fada Morgana, dissolvem-se espontaneamente ou desaparecem com uma inspeção mais cuidadosa; as primeira, como o movimento do Sol levantando-se pela manhã para pôr-se ao entardecer, ao contrário, não cederão a qualquer volume de informação científica, porque esta é a maneira pela qual a aparência do Sol e da Terra aparece inevitável a qualquer criatura presa à Terra e que não pode mudar de moradia. Aqui estamos lidando com aquelas ‘ilusões naturais e inevitáveis’ de nosso aparelho sensorial, a que Kant se referiu na introdução à dialética transcendental da razão”. (Arendt: 31).

Respeito, obediência e hierarquia definem a relação entre o eu comandante (governante, rei, senhor) e o eu comandado (governado, vassalo) como súbdito; o eu-governado não é dito é um ersatz de dito, súbdito como reconhecimento da sociedade criada pelo trabalho do escravo. O eu governante, senhor e chefe é capaz de prever as coisas (estrategista) e o eu súbdito é capaz de fazer as coisas com seu corpo, ou seja, é o trabalho manual que cria a riqueza material. (Aristoteles. 1982:677).
 A relação eu eu é parte da história universal como relação mente e corpo; o eu-rei governa com a mente (e etiquetas) o corpo político da nação. O 2 corpos do rei é um significante da paz (sociedade como produção de riqueza pelo trabalho do súbdito ou escravo) como dialética senhor e escravo; e um significante da guerra como estratégia.

A dialética de reconhecimento senhor-escravo é dita assim:
“Pour que la réalité humaine puisse se constituer en tant que réalité <reconnue>, il faut que les deux adversaires restent en vie aprés la lutte. Or ceci n’est possible qu’à condition qu’ils se comportent différemment dans cette lutte. Par des actes de liberté irréductibles, voire imprévisibles ou <indéductibles>, ils doivent se constituer en tant qu’inégaux dans et par cette lutte même. L’un, sans y être aucunement <prédestiné>, doit avoir peur de l’autre, doit céder à l’autre, doit refuser le risque de sa vie en vue de la satisfaction de son désir de <reconnaissance>. Il doit abandonner son désir et satisfaire le désir de l’autre; il doit le <reconnaître> sans être <reconnue> par lui. Or, le <reconnaître> ainsi, c’est le <reconnaître> comme son Maître, et se reconnaître et se faire reconnaître comme Esclave du Maître”. (Kojève:15).  

A propósito, a dialética supracitada não estabelece a relação home (senhor) /mulher (súbdita) na era moderna?  A rebelião do eu-mulher contra o homem na atualidade é o desejo de destruir a dialética senhor versus escravo?
A dialética senhor/escravo se apossa do corpo celestial do rei Ricardo:
“En efecto, esta conciencia se ha sentido angustiada no por esto o por aquello, no por este  o por aquel instante, sino por su esencia entera, pues há sentido el miedo de la muerte, del señor absoluto”. (Hegel. 1987; 119).
O rei Ricardo fala do Rei Ricardo mergulhado na incerteza:
Rei Ricardo – Havia-me esquecido...Não sou rei? Acorda, indolente majestade! Estás dormindo. Não vale o nome do rei vinte mil nomes? Arma-te, arma-te, meu nome! Um súdito insignificante ataca a tua glória suprema...Não olheis para a terra, favoritos de um rei...Não estamos nas alturas? (Shakespeare: 108).

 A dialética senhor/súbdito é aquela entre Ricardo e Bolingbroque que deporia Ricardo e o assassinaria para se transformar no novo senhor-rei Henrique IV.
“Rei Ricardo – Nem toda a água do mar irritado e rugidor pode apagar o óleo santo da fronte de um rei ungido. O sopro dos simples mortais não pode depor o deputado eleito pelo senhor. Para cada homem que Bollingbroke obrigue a levantar o aço pérfido contra a nossa áurea coroa, Deus opõe, a favor de Ricardo, um anjo glorioso de seu sólio celestial. Se os anjos combatem, os fracos mortais devem sucumbir, pois o céu sempre foi guardião do direito”. (Shakespeare: 108).
A dialética corpo mortal do rei versus corpo angelical (imortal) tem a morte como senhor-absoluto no despojamento do narcisismo freudiano do eu gramatical como sede do hegemonikón = logos (Elorduy, S. J.; 113).
“Escolhamos os executores de nossas vontades e falemos de testamentos. E, contudo, não...nada disto; pois que podemos legar à terra, exceto os corpos que nela depositamos? Nossa terra, nossas vidas e tudo pertencem a Bolingbroke e nada, somente a morte, podemos chamar de nossa esta miúda estatueta de frágil argila que serve de massa e cobertura para nossos ossos. Em nome de Deus, sentemo-nos em terra e narremos tristes histórias de reis desaparecidos; como foram destronados uns, mortos outros na guerra; perseguidos estes pelos espectros dos que depuseram; envenenados aqueles pelas esposas; alguns, mortos durante o sono; todos assassinados. Porque no circulo oco que cinge as têmporas mortais de um rei a morte mantém sua corte e ali domina a farsante, ridicularizando a pompa dele, concedendo-lhe um sopro, uma pequena cena para representar de rei, tornar-se temível e matar com o olhar, iludindo-se com seu egoísmo e seus conceitos inócuos, como se esta carne que serve de proteção à nossa vida fosse um bronze impenetrável! E após assim divertir-se, chega ao fim e, com um pequeno alfinete, atravessa as paredes de seu castelo e adeus rei! Cobri vossas cabeças e não insulteis a carne e o sangue com solenes reverencias. Deixai para o lado o respeito, a tradição, as formas, a cortesia, de etiqueta, pois nada mais fizestes do que enganar-me durante todo este tempo. Vivo de pão como vós; como vós, sinto a necessidade, saboreio a dor, necessito de amigos, Sendo, pois, escravo de tudo isto, como podeis dizer-me que sou rei? (Shakespeare: 110). 

Ricardo II fala da subjetividade moderna? Fala do sujeito gramatical da modernidade?
O sujeito gramatical é consequência da história econômica de uma época. Ricardo nada tem a ver com a história econômica capitalista. Trata-se de um sujeito gramatical como produto da política medieval. Ele não tem a paixão pelo ouro ou pelo dinheiro:
“Si no toda la Historia europea, al menos la del espíritu capitalista tuvo su principio en la lucha de dioses y hombres por la posesión del oro nefasto”. (Sombart. 1977:33).
Na era capitalista, três tipos de eu predominam na elite burguesa: técnico, comerciante, financeiro. Eles estão tão distantes do eu do homem comum como do eu-real. No entanto, são eus da razão capitalista, da racionalidade instrumental como efeito da história econômica capitalista industrial da modernidade, mesmo que retroativamente:
“3. El financeiro parte de la necesidad de capital; su principa actividad es el suministro de capital y la acumulación de capital, principalmente por medio de medidas técnicas de bolsa. Domina, por lo tanto, de los três mercados, especialmente el del capital; trabaja, sobre tudo, en fundaciones, fusiones, formación de consorcios. Impulsiona con especial predilección la creación de empresas, sua actividad es constructiva; tiene tres dimensiones. Prefiere la competência de poder. En los países anglosajones, sobre todo ahora en los Estados Unidos, se le llama Corporation financier [financeiro de empresas]”. (Sombart.1984: 33). 
Na produção da contemporaneidade, há a junção do eu técnico (Sombart. 1984:32) com o eu financeiro em um cybereu capitalista industrial na Ásia. O equilíbrio do poder mundial entre Ocidente/Oriente vai se alterando com o desenvolvimento do sistema neomercantlista de Estados fortes, em conteúdo econômico, fazendo pendant com a globalização econômica.


SHAKESPEARE. Obra Completa. Ricardo II. RJ: Aguillar, 1988
ANDERSON, Perry. El Estado absolutista. Espanha: Siglo XXI, 1983
ARENDT, Hannah. A vida do espírito. O pensar, o querer, o julgar. RJ; UFRJ/Relume Dumará, 1992
ARISTOTELES. Obras. Politica. Madrid: Aguilar, 1982
Aristote. La métaphysique. Tome II. Paris: J. Vrin, 1986
BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. RJ: Objetiva, 2001
DERRIDA, Jacques. Politiques de l’amitié. Paris: Galilée, 1994
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. V. 2. Formação do Estado e civilização. RJ:  Jorge Zahar editor, 1993
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Lisboa; Estampa, 1987
ELORDUY, S. J., Eleuterio. El estoicismo. V. 1. Madrid; Editorial Gredos, 1972
HEGEL. Fenomenologia del espíritu. México: Fondo de Cultura Económica, 1987
KANTOROWICZ. Ernest H. Os dois corpos do rei. Um estudo sobre teologia política medieval. SP: Companhia das Letras, 1998
KOJÈVE, Alexandre. Introduction à la lecture de Hegel. Paris: Gallimard, 1947
SOMBART, Werner. El burguês. Madrid: Alianza Editorial, 1977
SOMBART, Werner. El apogeo del capitalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1984     

 

 
    
  



       

    



 



     

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

DO PRESIDENCIALISMO E DO SAGRADO


José Paulo



As duas estratégias modernas de criação da gramática da ordem social  são a democracia e a autocracia (ditadura). A forma mista democracia/autocracia vem ganhando terreno em países como Hungria, Turquia., Venezuela, abertamente. Especialistas em política comparativa falam de uma tendência no Ocidente e no Oriente.

A república presidencialista americana pode ser considerada uma forma mista?
Em uma página clássica da ciência política europeia, Hans Kelsen diz que que a eleição do presidente nos EUA é um enfraquecimento do princípio da soberania. (Kelsen. 1993: 90). O presidencialismo americano elimina o ultimo resquício de fundamento da ideia de representação do povo com a eleição de um único indivíduo por milhões de eleitores.
Se no parlamento no qual estão compreendidos todos os partidos talvez seja possível pensar que da cooperação de todas as forças resulte algo que possa ser considerado como vontade nacional, é impossível pensar em vontade nacional no caso do presidente designado por eleição presidencial direta e que, por isso mesmo, independe totalmente do parlamento;  e, por outro lado, não é controlável por todo o corpo popular, imenso e incapaz de agir, tanto quanto na monarquia hereditária. 

A gramática política moderna tem na relação entre representante e representado um dispositivo da ficção política. (Kelsen. 1987: 315). Na ficção política, a vontade da maioria é a vontade geral, o princípio da maioria aparece como o princípio do domínio legitimo da maioria sobre a minoria. (Kelsen. 1993: 69). A ficção política soberania popular tem um grau máximo de distância da realidade do representado e um grau mínimo. O grau máximo se estabelece na relação do povo com o presidente da república. A distância mínima se estabelece na relação do povo com o parlamento.

A relação do povo com o presidente é heterônoma. O presidente é um a força exterior, uma vontade política exterior que se transforma em lei exterior quando esta vontade presidencial subjuga o parlamento com o auxílio dos aparelhos ideológicos de Estado que constroem a opinião pública. 

Hans Kelsen diz que a gramática política moderna tem um elemento sagrado:
“Aquilo que Max Weber denomina, tão oportunamente, ‘autocefalia’, é tipicamente característico da democracia real e a distingue da organização política antes chamada autocracia, que agora se prefere chamar ditadura. A sua ideologia faz o chefe aparecer como um ser de natureza completamente diferente da natureza da coletividade social a ele submetida, e, consequentemente, ele vale como um ser superior, de origem divina, ou é circundado por uma auréola de poderes mágicos”.  (Kelsen. 1993: 93).

Se na autocracia, o chefe não é criado pela comunidade política, na democracia, o comandante em chefe divino é criado pelo corpo eleitoral. No presidencialismo  latino-americano: “a direção exercida pelos chefes representa um valor absoluto que se expressa na divinização do chefe”. (Kelsen. 1993: 93). Assim, a política é um fenômeno irracional, ou melhor, desprovida de razão política. 
Acima de qualquer suspeita, Marx diz da gramática moderna democrática:
“A Assembleia nacional eleita está em relação metafísica com a nação ao passo que o presidente eleito está em relação pessoal com ela. A Assembleia Nacional exibe realmente, em seus representantes individuais, os múltiplos aspectos do espírito nacional, enquanto no presidente esse espírito nacional encontra a sua encarnação. Em comparação com a Assembleia, ele possui uma espécie de direito divino; é presidente pela graça do povo”. (Marx. 1974: 346).

A gramática da moderna democracia tem estrutura de ficção, e: “a verdade, digamos, por si só, tem uma estrutura de ficção”. (Lacan. 2008: 186). A política é uma atividade de interpretação da realidade dos fatos pela soberania popular. A interpretação política não é binária:
“A interpretação não é submetida à prova de uma verdade que se decida por sim ou não, mas desencadeia a verdade como tal. Só é verdadeira na medida em que é verdadeiramente seguida”. (Lacan.2009: 13).

A gramaticalização da gramática presidencialista como o verdadeiro faz do presidente um ser investido de um poder absolutista sagrado se seguido pela maioria do parlamento. O parlamento representa o poder secular frente ao poder divino do presidente criado pela ficção política soberania popular.    

                                                                               II   
A gramática democrática moderna trabalha com a ideia de igualdade.:
“no princípio de que qualquer um pode tornar-se chefe, também o princípio secundário da igualdade fundamental dos indivíduos transforma-se numa tendência ao maior igualamento possível. A suposição demagógica de que todos os cidadãos estão igualmente aptos a exercer qualquer função política acaba por se reduzir à simples possibilidade de que se tornem aptos a exercer qualquer função política”. (Kelsen. 1993: 96-97).  

Com Lenin, a ficção da igualdade política torna-se populista (“ida ao povo”) e encontra seu apogeu na brochura “O Estado e a revolução”:
“C’est en ce sens que l’Etat commence à s’eteindre. Au lieu d’instiruitions spéciales d’une minorité privilégiée (fonctionaires privillégiés. Chefs de l’armée permanente), la majorité ele-même peut s’acquitter directement de ces tâches; et plus les fonctions du pouvoir d’Etat sont exercées par l’ensemble du peuple, moins ce pouvoir devient nécessaire”. (Lenin,. V. 25: 454).

O mais notável estudioso ocidental da URSS fala da realidade do Estado soviético desautorizando o populismo igualitarista de Lenin:
“Dés sa formation, le Sovnarkom tente de constituer sur des bases nouvelles ses propres appareils administratifs. En fait, cette tentative ne va pas três loin. Les différents commissariats du Peuple sont pratiquement conduits à se subordonner (ou à essayer de se subordonner) une grande partie de l’ancien appareil administratif, qui ne subit que des transformations internes relativewment mineures”. (Bethelleim. V. 1: 96).

A URSS criou uma nova gramática política que ergueu o Estado socialista, mas diferente do populismo igualitarista de Lenin.

No início do debate em tela, Hobbes, Locke e Locke e Rousseau na filosofia política se embaralharam com o par individualismo (igualitarismo) e autoridade:
“Por outras palavras, a partir do momento em que não mais o grupo mas o indivíduo é concebido como o ser real, a hierarquia desparece e, com ela, a atribuição imediata da autoridade a um agente de governo. Nada mais nos resta senão uma coleção de indivíduos, e a construção de um poder acima deles só pode ser justificada supondo-se o consentimento comum dos membros da associação”. (Dumont.1985: 92).

O individualismo moderno faz do igualitarismo a pedra de toque da fabricação da política da modernidade capitalista industrial. Não é a sociedade de classes sociais que determina a política e sim o individualismo moderno. A política moderna não tem como referente classes sociais, e sim o igualitarismo que define o significante indivíduo moderno. Lenin aprofundou esse elemento da gramática política moderna levando-o ao credo quia absurdum (creio porque é absurdo).      

O individualismo moderno é fundado por um fato/artefato político do século XVIII:
“A ‘Declaração dos Direitos do homem e do Cidadão’ adotada pela Assembleia Constituinte no verão de 1789 marca, num sentido, o triunfo do Indivíduo. Ela tinha sido precedida de proclamações semelhantes em diversos [estados] dos Estados Unidos da América, mas foi a primeira a ser adotada como fundamento da constituição de uma grande nação, imposta a um monarca reticente pela manifestação popular e proposta como exemplo à Europa e ao mundo. Embora judiciosamente criticada desde o começo em seu princípio, mormente por Bentham, ela iria exercer uma ação poderosa, na verdade irresìstível, durante todo o século XIX e até aos nossos dias.
Após um preâmbulo, abre com os seguintes artigos:
Art. 1°. Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais somente podem fundar-se na utilidade comum”.  (Dumont.1985 109).   

                                                                                    III               
Há um consenso entre os que compartilham o bom senso político de que a eleição de Jair Messias Bolsonaro à presidência da República teve um caráter de violência simbólica como vingança do eleitor contra Luís Inácio Lula da Silva. Trata-se da dimensão onde o presidencialismo encontra-se com o sagrado da violência:
“Como não representa nenhum grupo particular, e como é apenas ela mesma, a autoridade judiciária não depende de ninguém em particular, estando, portanto, a serviço de todos, e todos se curvam diante de suas decisões. Somente o sistema judiciário não hesita em golpear frontalmente a violência, pois possui um monopólio absoluto sobre a vingança. Graças a este monopólio, ele consegue, normalmente, abafar a vingança ao invés de exaspera-la, ao invés de alastrá-la e de multiplicá-la, o que este mesmo tipo de conduta inevitavelmente provocaria em uma sociedade primitiva.
No final das contas, ao sistema judiciário e o sacrifício têm, portanto, a mesma função, mas o sistema judiciário é infinitamente mais eficaz. Só pode existir se associado a um poder político realmente forte. Como qualquer outro progresso técnico, ele constitui uma arma de dois gumes, servindo tanto à opressão quanto à liberação”. (Girad:37)

O monopólio do poder judiciário sobre o ersatz de vingança está sendo submetido a uma dura prova com o “tribunal do crime” das organizações criminosas urbanas. A eleição 2018 formou uma opinião pública cruel que clama por vingança contra o inimigo hegemônico da era lulista/petista: mulher, negro e LGBT.  O assassinato na rua do homossexual se tornou trivial. Trata-se de um efeito da maioria que se tornou a vontade de poder dominante.

Na ausência do monopólio da razão do juiz na interpretação do ersatz de vingança, a vida brasileira mergulha em um universo que mistura tradição colonial com invenção produzida pela contemporaneidade na produção da vingança como violência do sagrado.   

                                                                               III
A linguagem política europeia ocidental é uma fabricação da história das nações do continente supracitado na árdua construção de uma razão política europeia. O liberalismo político se tece como linguagem política e razão europeia no período entre a crise do absolutismo e a Constituição 1875 na França:
C’était la révélation de l’esprit de 1789 qui imposait à l’Assemblée la mission sacrée de donner une Constituition a la France et faisait d’elle une incarnation même du pays. Cette grande aventure intellectuelle, qui n’avaint pas de précédents dans le passé depuis le temps de Lycurgue et de Solon, qui allait établir le bonheur futur non seulement des Français mais des hommes sur les bases indestructibles de la raison, exaltait, dans um mouvement de générosité et d’audace, nobles libéreaux, curés égalitaires, obscurs légistes provinciaux”. (Jardin:97).  

A linguagem política fazendo pendant com a razão política se constituem como letras (e signos) de uma gramática política europeia copiada na América Latina. No Brasil, a ideia de construir uma razão liberal foi abortada a golpe de baionetas:
“Quando a Revolução da Independência seguia seu curso precipitado, a ala liberal moderada, representada por José Clemente Pereira, Joaquim Gonçalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa, coronel Luís Pereira da Nóbrega e João soares Lisboa, teve a ideia de convocação de uma constituinte, que não só oferecesse maiores garantias de liberdade, como promovesse a união das províncias, objetivos que o Conselho de Procuradores não conseguira atingir.
A ideia pode ter sido sugerida por João Soares Lisboa, que, embora radical, se unira ao grupo liberal, e com o tempo dele se afastará, será perseguido, preso, e fugirá para Pernambuco, onde morrerá combatendo ao lado de Frei Caneca a dissolução da Assembleia e a Constituição outorgada”. (Rodrigues: 21-22).

A Constituição 1823 põe o imperador como ramo da legislatura. O Art. 110 diz: O Imperador exerce a proposição que lhe compete na confecção das leis, ou por mensagem ou por ministros comissários. 
Art. 117. Os projetos de lei adotados pelas duas salas, e pelo imperador, no caso em que é precisa a sanção imperial, depois de promulgados ficam sendo leis do império. (Dias: 55-56).
Os ministros comissários representam o imperador no poder legislativo. Art. 111. Os ministros comissários podem assistir e discutir a proposta, uma vez que as comissões na maneira já dita tenham dado os seus relatórios, mas não poderão votar.

Não há autonomia entre o poder legislativo e o poder imperial segundo o princípio da separação e autonomia dos poderes. (Kelsen. 1993: 89). Um traço levemente absolutista incide na constituição 1823.

O poder executivo ou do imperador se define como invasão absolutista da razão liberal relutante:
Art. 142. II – Convocar a nova assembleia geral ordinária no 1° de julho do terceiro ano da legislatura existente, e a extraordinária quando julgar que o bem do imperador o  exige.

O projeto de Constituição 1823 foi a causa de um golpe de Estado desfechado  pelo imperador na Assembleia Nacional Constituinte. O imperador outorgou a Constituição 1824 redefinindo seu poder na gramática absolutista da política imperial.

Na Constituição 1824, o poder moderador é o poder pessoal absolutista do imperador delegado privativamente a d. Pedro I:
Art.  98. O poder moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, com chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que, incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos amis poderes.

O golpe de Estado pombalino (referência ao absolutismo com aparência de semblância liberal do Marquês de Pombal) se materializa no Art. 99. A pessoa do Imperador é inviolável e sagrada; ele não é sujeito a responsabilidade alguma.

O imperador é irresponsável, ele é o real que invade a razão política liberal tornando-a irracional.

Art. 101. O Imperador exerce o poder moderador. Tal artigo define o imperador como a dominância do absolutismo na política brasileira e a foraclusão do liberalismo político da realidade nacional.    

O ato da dissolução da primeira Assembleia Constituinte nacional é o signo do fim da possibilidade da política liberal entre nós. Ato fundador da gramática absolutista da vida política nacional de um príncipe infame:
“Anunciando-se a chegada de um oficial, que vinha da parte do imperador, o secretário Galvão foi à porta da sala e trouxe um decreto, que lhe fora entregue com a recomendação de ser lido e devolvido. Era a dissolução. A Constituinte era dissolvida porque ‘perjurara ao seu solene juramento de salvar o Brasil’. Afrontando os deputados com essa terrível acusação, D. Pedro I ainda quis ser irônico, mandando dizer que a tropa que cercava o edifício viera para defender a Assembleia de qualquer insulto”. (Sousa: 80).

O poder absolutista imperial estabeleceu o primeiro Estado de polícia que se tornaria um elemento recorrente da gramática absolutista do Estado nacional;
“Deportados os deputados Andradas, José Joaquim da Rocha, Francisco Gê Acayaba de Montezuma e Belchior Pinheiro de Oliveira, e libertando Nicolau de Campos Vergueiro, o único português do grupo, por decisão do Conselhos de Estado de 15 de novembro, foi o intendente geral da polícia armado de todos os  elementos, especialmente despesas secretas, para descobrir ‘clubes’ , projetos de perturbação da ordem, e pagar pessoas par vigiarem lugares públicos, teatros, praças, botequins e lojas com a maior circunspeção e cautela.
O Conselho determinava que ninguém podia mais se insultar por motivo de naturalidade, revelando assim a vitória do partido português junto a D. Pedro I, e determinava a abertura de uma devassa, servindo de corpo de delito alguns números do Tamoyo e da Sentinela da Praia Grande”. (Rodrigues: 245).

Vivo em um país no qual a história não foi gramaticalizada como gramática política absolutista. Tal igramaticalidade favoreceu a instalação, vida e sobrevida de uma república presidencialista absolutista, que na terceira-década do século XXI se mostra impotente para resolver nosso  problema histórico da produção da contemporaneidade. Falo do Brasil liderar a construção de um sistema neomercantilista latino-americano, sistema de Estados neomercantilistas com conteúdo econômico fortes com Argentina e México.


BETTELHEIM, Charles. Les luttes de classes en URSS. V. 1. Paris: Maspero/Seuil, 1974
DIAS (ORG), Floriano Aguiar. Constituições do Brasil. RJ: Editora Liber Juris, 1975
DUMONT, Louis. O individualismo.  RJ: Rocco, 1985
GIRARD, René. A violência e o sagrado. SP: Paz e Terra/UNESP, 1990
JARDIN, André. Histoire du libéralisme politique.  De la crise de l’absolutisme à la constituition de 1875
KELSEN. Hans. A democracia. SP: Martins Fontes, 1993
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. SP: Martins Fontes, 1987
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 16. De um Outro ao outro. RJ: Zahar, 2008
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 18. De um discurso que não fosse semblante. RJ: Zahar, 2009
LÉNINE. Ouvres. Tome 25. Paris/Moscou: Éditions Sociales/Éditions du Progrés, 1977
MARX. Os Pensadores. O 18 Brumário de luís Bonaparte. SP: Abril cultural, 1974
RODRIGUES, José Honório. A Assembleia Constituinte de 1923. Petrópolis: VOZES, 1974
SOUSA, Octávio Tarquínio de. Três golpes de Estado. História dos fundadores do império do Brasil. Belo Horizonte/SP: Itatiaia/EDUSP.





    

  

 

  





 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

DA TIRANIA NOS TRÓPICOS


José Paulo



1988 é a data da democracia constitucional brasileira depois de um longo período de ordem militar autoritária. Como vivi na ordem autoritária, 1988 significava a esperança de viver em uma ordem democrática civil. Em 2018, uma maioria eleitoral elegeu um homem branco do exército cuja propaganda dizia que ele se eleito implantaria uma tirania criptomilitar. Este acontecimento á a mola propulsora da reflexão sobre o tirano nos trópicos que se segue. 

No livro “Da tirania” de Leo Strauss, o tirano Hiéron responde a interrogação de por que homens comuns da vida privada (e mulheres, é claro) desejam ser tiranos. A resposta é que eles (e elas) imaginam que o tirano desfruta do máximo de prazer e do mínimo de desprazer ou castigo da vida prática. (Strauss: 10).

No que concerne ao espetáculo que nos proporciona a vista, o tirano não pode assistir, pois, é mais fraco que o público. Sendo assim, o espetáculo proporciona um estado de insegurança e uma faca pode despojar o poder do tirano. A viagem põe o problema dramático de conferir a um outro o poder. O tirano não se encontra seguro com tal situação, pois, pode ser despojado do poder, e se encontra impotente para reparar esta injustiça. (Strauss: 11). A viagem do tirano pode ter muitas facetas gramaticais.

O presidente Jair Messias Bolsonaro foi esfaqueado no espetáculo da multidão que o acompanhava na campanha eleitoral. Depois de se recuperar do atentado, Bolsonaro foi jogado à condição de tirano que não pode fazer parte do espetáculo de massas. A faca que perfurou Bolsonaro (real ou teatral) é o signo carnal que funda a pessoa Messias como tirano.

O chefe da polícia secreta do governo que se encerra diz que tem informações  verdadeiras de que Bolsonaro poderá sofrer um outro atentado na festa da posse. Sugere que Jair não pode desfilar em carro aberto, uma tradição da festa da posse. O chefe-general da polícia secreta diz que Bolsonaro é um tirano.

O tirano vive em um estado permanente de insegurança temendo por sua vida. Este elemento da gramática da tirania significa que a vida privada é negada ao tirano. Osa indivíduos que se imaginam no lugar do tirano nada sabem sobre a diferença entre vida privada e vida tirânica.

Ao desejarem a vida tirânica para si, os indivíduos de um país parecem não pautar sua existência pela vida democrática assegurada a eles pela Constituição. A Constituição democrática é uma abstração e a tirania mexe com os desejos carnais das massas.

A democracia é a primazia da lei constitucional sobre os poderes estatal e privado. A tirania faz parelha com o absolutismo. No século XXI, uma sociedade tirânica se define por poderes absolutistas acima da lei. Os poderes absolutistas governam o país ao arrepio da lei.

1988 é a gramática virtual que diz que o equilíbrio de poder na sociedade nacional deve ser construído a partir dos direitos individuais. Tal elemento gramatical põe e repõe o indivíduo definido como protegido contra os poderes realmente existentes. Ao contrário, o equilíbrio da sociedade segundo o governo dos poderes absolutistas caminha para a soberania do eucrata:
“As diferentes ideias sobre o relacionamento que existe ou deveria existir entre o próprio Estado e os outros Estados são estreitamente ligadas às teorias da natureza do Estado, compatíveis, respectivamente, com os tipos democrático e autocrático de personalidade. Este último, com sua autoconsciência hipertrófica baseada em sua identificação com um autocrata poderoso, está predestinado a defender a doutrina de que o Estado é uma entidade diferente da massa de seres humanos individuais, uma realidade supra-individual e, de certo modo, coletiva, um organismo místico e, como tal, uma autoridade suprema, a realização do valor absoluto. É o conceito de soberania que efetua a absolutização, a divinização do Estado, representado, em sua totalidade, pelo governante divino. O absolutismo filosófico, como foi mostrado, pode resultar de uma concepção que, em sua tentativa de conceber o mundo, parte do eu mas ignora o tu, recusa-se a admitir a reivindicação deste de ser também um eu e, desse modo, leva a uma absolutização do eu único e soberano em cuja concepção e vontade está incluído todo o universo, juntamente com todos os outros que, em vão, firmam sua condição de eus”. (Kelsen.1993: 192).

A eucracia ou culto do eucrata é a condição para que a tirania reine na sociedade formalmente democrática?  A propaganda de Jair metabolizada pelas massas como o verdadeiro estado da política nacional se fez sobre o signo: ele é o mito. Os oponentes tomaram esse como um signo-clown, uma brincadeira política de mau-gosto do filho cibernauta propagandista do capitão reformado do Exército. Ao contrário, “ele é o mito” significa o anuncio da política como governo do eucrata em um país dominado por personalidades eucráticas, ou na terminologia de Kelsen personalidades autocráticas.  

Em um país de eucratas, a democracia permanece no papel que contém a letra da Constituição 1988. Pela letra ambiciosa 1988, a vida política deve ser organizada pelos artigos “Dos Direito e garantias fundamentais”. Algo tão óbvio nunca foi metabolizado pelos indivíduos ou massas como sujeito grau zero eucrático.

Para a democracia 1988 acontecer e fazia necessário a gramaticalização da gramática 1988. O Artigo 5°diz:
Todo são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos da lei”.

 Poderes absolutistas como a polícia estatal e milícias retiram do indivíduo a inviolabilidade do direito à vida. O poder absolutista é aquele que funciona acima da lei (e contra ela).

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.
É subtraído de uma considerável parcela da população a proteção do III.
XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, verdade a de caráter paramilitar.
Entre nós, o urbano se define pela quase supremacia na vida cotidiana de poderes paramilitares absolutistas. O governo Bolsonaro faz parelha com a vontade das massas messiânicas de se organizarem como força prática paramilitar.

LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.
Tribunais do crime organizado (e milícias) exercem o “direito” fático de julgar e sentenciar à morte brasileiros e estrangeiros residentes no país. A vereadora carioca Marielle Franco foi condenada à morte por um tribunal  de organizações criminosas privada e estatal.  

LXXV – o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença.
Massas de indivíduos estão presos como efeito da ação da polícia sem que esta ação se torne um processo de legal condenatório. Os indivíduos incluídos no LXXV não recebem indenização.

LIV – ninguém será privado de liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
O poder policial absolutista priva os indivíduos de sua liberdade física sem o e devido processo legal.

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

O STF age como um poder absolutista ao relativizar o LVII e usurpar o direito constitucional do poder legislativo de mudar ou não a Constituição. A vontade absolutista do STF se impõe à vontade democrática do legislativo.


XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.
O XLI é letra morta. E sem ele a democracia é um faz de conta.

XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
A televisão é um poder absolutista pois, prega a violação abjeta da ordem 1988, diariamente. Ele faz propaganda para que o governo Bolsonaro funcione como um governo tirânico violando o direito econômico adquirido por milhões de pessoas.
XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.
O sistema penitenciário é governado por facções criminosas que rasgam, todo dia, o XLIX.  

                                                                              III
A gramática 1988 pode ser considerada um texto utópico? É verdade! No entanto, ou a sociedade se submete à supremacia da letra da lei ou ela é governada por poderes absolutistas. A gramática 1988 foi posta de lado com a ordem corrupta lulista. A partir dessa ordem, emergiram poderes absolutistas considerados uma necessidade histórica para a moralidade da vida nacional.

A LavaJato é o poder absolutista estatal fazendo pendant com o poder absolutista mass media. Sem o espetáculo proporcionado (prisões, ameaças de prisões, indivíduos grafados como corruptos por delações premiadas etc.) pelo poder absolutista mass media não haveria LavaJato.  
A violação permanente do LVII (trânsito em julgado) pelo poder do juiz tem ancoragem nas massas reais, da televisão e cibernautas.
                                                                                   IV

O republicanismo pode se constituir como poder absolutista acima da lei, da Constituição:
“Foram os homens da Revolução Francesa que, intimidados com o espetáculo da multidão, exclamaram com Robespierre: “La République? La Monarchie? Je ne connais que la question sociale”.; e eles perderam, juntamente com as instituições e constituições que são ‘a alma da República (Saint Just), a própria revolução. (Arendt: 49)   

“Á transformação da questão social numa força, efetuada por Marx” (Arendt: 49) é o elemento gramatical copiado como transformação da questão da corrupção como força política pela LavaJato como espetáculo da multidão. Rigorosamente, a LavaJato deixou de existir como força prática judicial da multidão com a transformação do juiz Sergio Moro em ministro da Justiça do governo Bolsonaro.  

A Lavajato mass media serve a um novo senhor, ao governo nacional bolsonarista. O espetáculo da multidão lavajato funcionará como legitimação do governo Bolsonaro pelas massas sujeito grau zero democráticas.  Há a passagem da ordem autoritária excepcional instalada pela Lavajato à ordem de uma formação política de massas tirânicas nos trópicos.

Voltarei ao objeto tirania mais vezes, pois, está claro para mim que uma época de tirania irremediável (ainda não definida como gramática em história econômica) invadirá o Brasil.

ARENDT, Hannah. Da revolução. SP/Brasília: Ática/UNB, 1988     
KELSEN, Hans. A democracia. SP: Martisn Fontes, 1993   
 STRAUSS, Leo. De la tyrannie. Correspondance avec Alexandre Kojève (1932-1965). Paris: Gallimard, 1997    
        

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

GRAMÁTICA E IDEOLOGIA - EUCLIDES DA CUNHA


José Paulo



Falar de Euclides da Cunha quase na terceira década do século XXI pode parecer um prazer de lidar com o passado da literatura brasileira. Hoje, há uma distância em relação a década de 1990 época na qual vários livros sobre Euclides foram publicados nas boas editoras do país.

O livro de Luís Costa Lima “Terra ignota” se apresenta como uma leitura original de “Os sertões”. O livro fala dos significantes europeus que produziram efeitos na narrativa euclidiana como raça, evolucionismo, romantismo, caráter, história natural dos povos, inferioridade do mestiço, superioridade do ariano, civilização tropical, nacionalismo e poder que se traduz pela afirmação do sertanejo como essência do Brasil. (Lima: 23).

Euclides pega às avessas a linguagem europeia usada pelos dominantes n Brasil?

O Brasil é mestiço no litoral, sertão e na Amazônia. O Brasil mestiço se tornou a ideologia da mestiçagem em Gilberto Freyre. Em Euclides, temos a teologia da mestiçagem, pois a mestiçagem do sertão é um mal menor que a mestiçagem degrada e degradante do litoral. A teologia de Euclides é o falar da mestiçagem.

Em Lima Barreto, o negrismo não chega a se constituir em ideologia. Mas este é o desejo de Lima, um mestiço enganado do litoral.

Em Euclides, o poder nacional tem ancoragem no real da biologia das raças e sub-raças. Porém, o poder  é quase percebido como um campo de estratégia e táticas.  O poder racial ariano é quase visto como uma estratégia dos dominantes no território da linguagem visando estabelecer a carga valorativa superior (branco) e inferior (mestiço) e negro. Na obra de Oliveira Vianna, o poder racial ariano como estratégia de dominação é um momento alto da nossa literatura sociológica e da ciência política conservadora.

Oliveira Vianna se autofabrica, no terreno da ideologia, como um escritor no avesso da gramática euclidiana. Gramática (Euclides) e ideologia (Vianna) são os pares da cultura brasileira no inconsciente do século XX. O problema da metabolização artificial da linguagem política e das instituições políticas (formas políticas) europeias pelo Brasil é um campo de interpretação desenvolvido por Oliveira Vianna copiado da gramática euclidiana. A distinção entre Brasil real   Brasil legal é euclidiana, como assinala Luiz Costa Lima, na página 44. Euclidianamente, Vianna mostra que existe, entre nós, uma linguagem política brasileiríssima ignorada pelos dominantes que tem o domínio do uso da língua portuguesa falada no Brasil. O atual ministro da Educação parodia a ideologia vianniana ao falar de uma filosofia brasileira nacionalista. O ministro colombiano da Educação no Brasil é mais brasileiro que o próprio brasileiro. 

Uma acusação a Euclides é aquela que diz estar o discurso euclidiano preso em um <cipoal de teorias>. Um brilhante especialista em literatura brasileira, Luiz Costa Lima não pensa o discurso euclidiano como uma gramática fazendo pendant com uma teologia. (Lima: 45-46). O marxista carioca universitário Lima pensa Euclides a partir da crítica das ideologias literárias. (Aliás, a crítica da ideologia da cultura brasileira de Gilberto Freyre encontra-se no notável livro do marxista universitário paulista Carlos Guilherme Mota. [Mota: 54]). A ideologia é uma estratégia de ocultação da realidade que não encontra guarida em Euclides.  

A visão substancialista da essência mitológica da raça sertaneja é um ponto fraco no discurso euclidiano (Lima:54-56), sem sobressalto. Contudo, a gramática das máquinas de guerra (entradas e bandeiras, exército republicano, Arraial de Canudo jagunço, índio) aparece em um clarão, gerando um acréscimo de força irrevogável, inesperado, ao evangelho euclidiano:
“Ostentando como outros dominadores do solo um feudalismo achamboado – que o levava a transmudar em vassalos os foreiros humildes e em servos os tapuias mansos – o bandeirante atingindo aquelas paragens, e havendo conseguido o seu ideal de riqueza e poderio, aliviava-se na mesma função integradora ao seu tenaz e humilde adversário, o padre. É que a metrópole, no norte, secundava, sem vacilar, os esforços deste último. Firmar-se desde muito o princípio de combater o índio com o próprio índio, de sorte que cada aldeamento de catecúmenos era um reduto ante as incursões dos silvícolas soltos e indomáveis” [grifo meu]. (Euclides da Cunha. 2002: 71).   

Com a era do lulismo, a gramática da mestiçagem foi substituída pelo negrismo do multiculturalismo. Em 2019, uma paródia do dominante ariano se estabelece como uma estratégia de dominação:
“o sistema do direito e o campo judiciário são o veículo permanente de relações de dominação, de técnicas de sujeição polimorfas. O direito, é preciso examiná-lo, creio eu, não sob o aspecto de uma legitimidade a ser fixada, mas sob o aspecto dos procedimentos de sujeição que ele põe em prática. Logo a questão, para mim, é o curto-circuitar ou evitar esse problema, central para o direito, da soberania e da obediência, e fazer que apareça, no lugar da soberania e da obediência, o problema da dominação e da sujeição”. (Foucault. 1999: 32).

A gramática domina através de estratégia e táticas. O livro “Os sertões” é parte de uma estratégia para criar o poder nacional como sertanejo: poder nacional essencialmente mestiço. A captura da gramática mestiça euclidiana pela ABL ariana é uma notável página de nossa vida cultural nacional. Hoje, a ABL se deixou levar pelo tempo multiculturalista.    

                                                                                    II
Na gênese do tempo multiculturalista, temos o intelectual petista uspiano Roberto Ventura com seu <negrismo> confessado no livro do gramático da mestiçagem Euclides da Cunha. O abolicionismo é descrito pela ótica do negrismo:
“Os festejos no Rio de Janeiro tiveram, como ponto alto, o grande desfile organizado pela imprensa no domingo, 20 de maio. Todos os grupos das elites ou das camadas urbanas estiveram representados: jornais, e revistas, repartições públicas, clubes, sociedades e associações profissionais, escolas e colégios. Os únicos ausentes da festa eram o ex-escravos, cuja libertação era comemorada”. (Ventura: 62).

Roberto Ventura deu início a criação da imagem de Euclides da Cunha como uma máquina psicopática cabocla. Como membro da subraça mestiça, Euclides não metaboliza bem a instituição europeia:
“Mas a disciplina da escola, com horários rígidos para as aulas e os estudos, atormentava Euclides, que não se adaptava aos rigores da vida na caserna. Em agosto, três meses antes de seu protesto ao ministro da guerra, revela, em algumas notas escritas em um caderno, seu embate para conter o gênio explosivo”. (Ventura: 65,71).

Estudei no Colégio Militar do Rio de Janeiro. Pela visão de Roberto Ventura., havia no CM uma multidão de máquina de guerra explosiva. A revolta dos estudantes do CM levou o Primeiro Exército a trocar o diretor do CM por um general linha-dura da ditadura militar em 1971.

Ventura explica a Proclamação da República pelas máquinas de guerras juvenis da espécie euclidiana, mestiças:
“Não seria questão de dias, mas de alguns meses, cerca de onze, até a proclamação da República tão sonhada por Euclides e seus colegas da Escola Militar. E os cadetes e os jovens oficiais iriam participar dos acontecimentos que levaram ao golpe do Exército em 15 de novembro do ano seguinte, 1889”. (Ventura: 76).

A natureza violenta de Euclides foi redirecionada para a atividade de propaganda republicana:
“Euclides estreou na imprensa diária com artigos de propaganda, em que atacava o imperador e a família real e pregava a necessidade de revolução política”. (Ventura: 78).

O marxista universitário Ventura cria esse retrato de um Euclides como máquina de guerra de propaganda leninista. O imaginário russo da revolução bolchevique povoa a escrita de Roberto. A máquina psicopática Euclides da Cunha foi atraída, como jornalista, pela imaginação olfativa de odor de sangue, para a Guerra de Canudos. (Ventura: 105).

Euclides foi escolhido para ser o objeto de debate de uma Flipe recente. A televisão anunciou o acontecimento levando especialistas que se referiam basicamente ao conflito de Euclides com Ana de Assis, sua esposa. Em Ventura, a imagem de um Euclides violento no lar é irrevogavelmente mestiça:
“É provável que sua situação desconfortável no Exército, agravada com a prisão do sogro e as cartas à Gazeta de Notícias, trouxesse a Euclides, de temperamento nervoso, uma enorme irritação que explodia em disputas domésticas”. (Ventura: 129).

  Roberto diz que Euclides era um poço racial, sem fundo, de preconceitos urbanos do Sudeste:
“Euclides teve, sem dúvida, uma visão negativa de Canudos, que tomou como ‘urbs monstruosa’, comunidade primitiva e até promíscua. Tal viés, se deveu, em parte, ao contato com uma cidade semidestruída pelos bombardeios e pelas privações da guerra. Foi tributário ainda de sua formação científica, que combinava evolucionismo e positivismo, e dos preconceitos raciais próprios à sua época, que traziam a crença na inferioridade dos grupos não-branco”. (Ventura: 172-173).

O livro de Roberto Ventura é um banho de água fria jogada na imaginação do leitor desejoso de enfrentar a árdua leitura do “Os sertões”:
“Traçou, em Os sertões, paralelos entre os dois lados do conflito, mergulhados no mesmo fanatismo e misticismo: entre o soldado e o jagunço, entre o litoral e o sertão, entre a República e Canudos. Para ele, o coronel Moreira César, comandante da 3°expedição, líder epiléptico dos jacobinos, é tão ‘desequilibrado’ quanto Conselheiro, o messias delirante: ambos refletiriam a ‘instabilidade’ dos primórdios da República. Mostrou como os soldados traziam, no peito, o retrato do marechal Floriano Peixoto, cuja memória saudavam com o mesmo entusiasmo doentio com que os jagunços bradavam pelo Bom Jesus”. (Ventura: 199).   

                                                                                  III    

A sagaz e culta romancista Nélida Piñon faz a apresentação do livro do historiador americano Robert M. Levine O sertão prometido. O massacre de Canudos., especialista em história cultural e política brasileira, falecido em 2003.

Com sua imaginação incandescente, Nélida atrai o leitor para a leitura de Euclides:
“Um expressivo contingente de deserdados que, desprezados pelas novas elites formadas no litoral sob impulso de uma economia emergente, aderiram aos acampamentos de inspiração sebastianista e milenarista, estranha aliança de religião e lenda cujos líderes, em nome de um ideal quase teológico, pretendiam restaurar o espírito das peregrinações que outrora   partiam ao encontro da Terra Santa. Desta forma poderiam viver façanhas cujos resíduos emocionantes guardavam no poço da memória genética e no substrato das narrativas orais, enquanto lhes prometiam um estatuto cívico que o cotidiano político brasileiro sempre lhes negara”. (Levine: 12).                            

O livro de Levine é um texto universitário de um brasilianista. Texto de um época na qual a América patrocinava com vultosos capitais (da Fundação Ford) a investigação universitária tendo como objeto o Brasil (e a América- Latina). 

A Fundação Ford fez um investimento para introduzir no Brasil o multiculturalismo como negrismo. Mudar a grafia imagética de um Brasil mestiço para um país onde predomina o negro foi uma estratégia do Departamento de Estado dos EUA. O livro de Levine ajudou a fazer um mapa de um Brasil que não era negro:
“Aterrado pelo fantasma de uma revolta rural, Euclides narrava os sucessos do conflito de Canudos como se estivesse em jogo uma batalha das forças da civilização contra as das trevas. Canudos o atormentava. Embora considerasse os habitantes – mestiços da comunidade do Conselheiro - como atávicos e hostis ao progresso, admirava-lhes a tenacidade e a força corporal. Essa referência à força física dos sertanejos tocava num ponto nevrálgico, já que em 1890 a população brasileira se compunha de 15 por cento de negros e 40 porcento de mestiços ou mulatos”. (Levine: 25).

O mestiço é visto por Levine como a força prática intelectual que afeta o campo do simbólico e do imaginário:
“Porém, como lembra E. Bradford Burns, o próprio Euclides era um mestiço. A exemplo de Raimundo Nina Rodrigues, Machado de Assis, Lima Barreto e outros escritores e intelectuais mestiços que moldaram a auto-imagem brasileira durante e após a virada do século, ele se recusava a admitir que suas próprias descobertas contradissessem o argumento central de  sua visão depreciativa do legado da miscigenação”. (Levine: 24-25).

O pensador conservador Oliveira Vianna diz em um de seus livros que a contradição simbólica principal, entre nós, é aquela entre mestiço versus ariano.

O historiador americano procura tecer uma linguagem objetiva que se torne hegemônica e invada a vida cultural e política brasileira. Assim, o problema da instalação de uma ordem autoritária brasileira no lugar da ordem democrática tem sua gênese historial na relação da República militarista (ariana na gramática dos dominantes) com Canudos (mestiço):
“O choque provocado pelo conflito de Canudos e o medo de que a rebelião se espalhasse pelas cidades brasileiras levou os políticos a reforçar os sistemas de controle social e a rejeitar as reformas que pudessem levar o país a uma democracia expressiva”. (Levine: 26).

Aliás, é instigante comparar a linguagem europeia do mestiço Euclides com a linguagem carismática popular do Bom Jesus fazendo parelha com o antagonismo da linguagem dos dominantes com a linguagem dos dominados. Nélida Piñon diz:
“Na avaliação do historiador, o conflito de Canudos tem como origem imediata a República recém-inaugurada sem a participação popular. O novo sistema político, além de privar o povo da presença do Imperador, impunha-lhe um vocabulário permeado de uma modernidade que ameaçava desestabilizar a realidade conhecida e agravar ainda mais a situação de penúria há muito estabelecido no país”. (Levine: 12).

O domínio do uso do português falado no Brasil como estratégia de conquista e invasão da cultura e da vida prática popular põe e repõe o problema mais geral da relação entre povos. Euclides aborda tal problema abertamente:
“As últimas páginas de H. Spencer são um diluente do esplêndido rigorismo das suas mais sólidas teorias. O filósofo que se abalançou a traduzir o desdobramento evolutivo das sociedades numa fórmula tão concisa e fulgurante quanto à fórmula analítica em que Lagrange fundiu toda a mecânica racional – acabou num lastimável desalento. A seu parecer, a civilização desfecha na barbaria.  
Depois de presidir ao triunfo das ciências e de caracterizar os seus reflexos criadores nas maiores maravilhas das indústrias – assombrou-se à última hora, salteando-o de espantos, o sombrio alvorecer crepuscular do novo século. E contemplando em toda parte, de par com a desorientação científica, um extravagante renascimento da atividade militar e um imperialismo que denuncia a tendência das nacionalidades robustas a firmarem a hegemonia política – rematou uma vida que toda ela foi um hino ao progresso, confessando que assistia à decadência universal.
Exagerou.
Mas há um fato incontestável: o pendor atual e irresistível das raças fortes para o domínio, não pela espada, efêmeras vitórias ou conquistas territoriais – mas pela infiltração poderosa do seu gênio e da sua atividade”. (Euclides da Cunha.1995: 213).   

Roberto Levine (e a Fundação Ford) é esta infiltração a qual Euclides se refere. O texto universitário do americanismo não é um acontecimento diletante. Ele é parte de uma estratégia de articulação da hegemonia envolvendo povos ou raças (forte e fraca) na terminologia de Euclides.

Henry Kissinger organizou a instalação das ditaduras militares na América Latina dando continuidade (em especial no Brasil) ao trabalho político de seu general-espião Wernon Walters.  Seu cinismo criou um texto abjeto, mas de grande atualidade:
“Durante a guerra fria a maior parte das nações da América latina eram dirigidas por governos autoritários, largamente militarizados, comprometidos com o controle estatal de suas economias. Nos meados dos anos 80 a América Latina viu-se livre da sua paralisia econômica e começou a avançar com uma unanimidade notável em direção à democracia e à economia de mercado. O Brasil, a Argentina e o Chile abandonaram os governos militares a favor de um regime democrático. A América Central terminou as suas guerras civis. Falida devido a empréstimos pouco inteligentes, a América Latina submeteu-se à disciplina financeira. Em quase toda a parte as economias dominadas pelo Estado foram progressivamente abertas às forças de mercado”. (Kissinger: 726).

Kissinger é aquele representante da raça forte nas Américas que domina as raças fracas desse continente em conluio com os dominantes nativos.

Para Euclides, os dominantes nativos se constituem em uma estrambótica força de ocupação em seu próprio país:
“Fora absurdo atribuí-los à República, numa época em que a preexcelência das formas de governo é assunto relegado aos donaires da palavra e à brilhante frivolidade dos torneios acadêmicos. Atribuímo-lo ao artificialismo de um aparelho governamental feito de afogadilho e sem a medida preliminar dos elementos próprios da nossa vida. Um código orgânico, como qualquer outra construção intelectual, surge naturalmente da observação consciente dos materiais objetivos do meio que ele procura definir – e para o caso especial do Brasil exige ainda medidas que contrapesem ou equilibrem a nossa evidente fragilidade de raça ainda incompleta., com a integridade absorvente das raças já constituídas”. (Euclides da Cunha. 1995: 213).

Euclides pensava um República mestiça brasileira que gramaticalizasse (antropofagicamente) as instituições política, e da sociedade civil (burguesa) europeias. Como negar nossa fraqueza na história econômica capitalista industrial moderna da época de Euclides da Cunha. Hoje, a Ásia capitalista industrial tomou o lugar da Europa?     

EUCLIDES DA CUNHA. Obra Completa. V. 1. RJ: Nova Aguilar, 1995
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