terça-feira, 18 de dezembro de 2018

EUCLYDES DA CUNHA- EVANGELHO DA VIDA NACIONAL?


José Paulo



O multiculturalismo da esquerda lulista na literatura, universidade e nos mass media desfez o culto do “Os Sertões” como o livro número 1 da cultura brasileira. (Abreu: 19). Uma multidão de mulheres da área de literatura considerou que o culto da personalidade de Euclydes da Cunha era um sacrilégio ao novo tempo político da mulher, no qual a mulher é uma força prática da vida nacional. Assim, a vida amorosa de Euclydes foi usada como exemplo do homem brasileiro poderoso que usa sua posição superior na hierarquia social para perseguir e humilhar a mulher.

“Os Sertões” é um livro sobre máquina de guerra euclydiana, ou seja, máquina de guerra caipira, sertaneja, do interior do Brasil que desafia o poder republicano da capital carioca. A máquina de guerra euclydiana é uma descoberta da psicanálise em gramática econômica, que foi vista como uma trivialidade pelos professores de literatura e seus estudantes que tomaram ciência dela. SE O Arraial de Canudos se transformou em uma máquina de guerra euclydiana, tal fato se deve à transliteratura (Bakhtin. 1992: 29) da escrita de Euclydes da Cunha; passagem da escrita literária para uma narrativa da nação brasileira cabocla.

Fala-se de “Os Sertões” como a “Bíblia da Nacionalidade”. (Abreu: 24). Então, o discurso euclydiano é um evangelho da nacionalidade? Não temos ideologia aí, e sim uma teologia que fala das máquinas de guerra: máquina de guerra sertaneja versus máquina de guerra do litoral: Exército brasileiro. Euclydes cursou um pouco a Escola Militar e foi engenheiro. Seu saber sobre a máquina de guerra está associado à transmissão de um conhecimento formal, institucional.

Na época da formação cultural-biográfica de Euclydes, a literatura era uma atividade na periferia da cultura bacharelesca. Um espírito aristocrático dominava a cultura em geral e o mundo das letras em particular. O aristocratismo intelectual significa o monopólio da alta cultura por famílias ricas e editores inescrupulosos. A editora Companhia das Letras e a revista Piauí ainda mantém vivo o espirito aristocrático no mundo dos escritores.
Há forças que surgiram no mundo das letras que quebraram um pouco o espírito aristocrático. Trata-se da universidade estatal (e capitalista) com seus departamentos de literatura (e doutorados). Uma força que faz pendant com as letras universitárias é a mulher multiculturalista que teve seu apogeu na era Lula. A mulher multiculturalista da sociedade das letras dominaram do congresso literário, aos mass medias e editoras comerciais. Para a mulher vale a máxima que “os mortos enterrem seus mortos”.

A alta cultura sempre foi um domínio sob vigilância das famílias e clãs aristocráticos. Usava-se a literatura na articulação da hegemonia no campo das elites. A literatura pode ser vista como um centro de hegemonia até as artes plásticas, arquitetura, cinema brasileiro e música se desenvolverem com a ajuda da imprensa, hebdomadários de cultura e revistas de cultura dos jornais. A entrada dos professores universitários federal e estadual na vida nacional  alterou um pouco o panorama aristocrático da cultura até os mass media se transformarem em organizadores da cultura nacional.
A nova configuração da organização da cultura encontra-se sob o efeito de ideologias como o lulismo e o fenômeno multiculturalista. A derrocada do lulismo parece ser o motor do enfraquecimento do multiculturalismo no domínio da literatura. Assim, talvez seja proveitoso retomar o sentido do discurso literário euclydiano para pensar a conjuntura que eclode com o bolsonarismo. 

Os mass media tratam com absoluta naturalidade a existência de uma facção de generais (e militares) no governo de Bolsonaro. Para eles, um governo criptomilitar bolsonarista é algo inimaginável. Se recorremos a gramática das máquinas de guerra euclydiana, a facção militar pode se transmutar em uma máquina de guerra política em uma situação de crise aberta governamental.                     

                                                                              II
A biografia intelectual de Euclydes faz parelha com a história brasileira do final século XIX, do século XX até os mass media assumirem o comando da organização cultura nacional no século XXI.

O que é a organização da cultura?  Para que isso serve?

A organização da cultura brasileira consiste na estratégia de manter o controle sobre o imaginário nacional. O imaginário como estratégia é uma ideia de Montesquieu:
“Ce n’est pas ordinairement la perte réelle que l’on fait dans une bataille (c’est-à-dire celle de quelques milliers d’hommes) qui est funeste à un Etat, mais la perte imaginaire et le découragement, qui le prive des forces mêmes que la Fortune lui avait laissées”. (Montesquieu: 49).
O imaginário deve ser visto como perda de energia ou força do Estado. Se o Estado é a expressão no campo simbólico dos dominantes, a estratégia de domínio do imaginário é essencial para manter a dominação. No Brasil, o intelectual senhorial, aristocrático se definiu pelas batalhas de construção de uma estratégia de controle do imaginário nacional.

O trabalho intelectual dos dominantes se concentra, antes de tudo, no território da língua. A passagem do uso da língua portuguesa com gramática lusitana para uma língua portuguesa falado no Brasil fez parte das lutas no campo simbólico/imaginário/real. O uso de um vocabulário europeu na linguagem social dos dominantes fez parte da estratégia de controle do imaginário nacional.

A luta interna no campo intelectual é caracterizada pela antropóloga da UFRJ Regina Abreu assim:
“Euclides da Cunha encarnava o protótipo desse aluno ‘ideal típico”. Ingressou na Escola Militar como ‘cadete’, título que recebiam os estudantes que integravam a base do recrutamento de oficiais. De 1886 a 1888 cursou a escola nessa condição. Esses anos foram bastantes intensos para ele. Entrou em contato com novas teorias, como o evolucionismo  e o positivismo, fez novas descobertas, forjou uma identidade, iniciou-se no culto à ciência e na a versão à cultura bacharelesca. Como tantos outros, aprendeu a valorizar o ensino técnico e o científico e a desprezar a retórica bacharelesca calcada em estudos de jurisprudência”. (Abreu: 73).

No texto supracitado, a biografia intelectual de Euclydes é aquela que faz parelha com a modernização da sociedade brasileira: biografia ocidental. Aliás, diz Regina Abreu; “a profissão de engenheiro no final do século 19 estava associada às demandas de modernização do país”. (Abreu: 87).

Uma estratégia de domínio do urbano sobre o rural é parte do que Sérgio Buarque de Holanda designou como a “revolução brasileira”. (Holanda: 131). A ideia de que o urbano significava civilização ocidental moderna e o rural a barbárie é uma arma no domínio da linguagem social como estratégia de controle do imaginário nacional pelos dominantes.

Ao ler Euclides, o antropólogo parisiense Claude Lévi-Strauss fala de uma farsante civilização moderna, ocidental, nos trópicos como estratégia de controle do imaginário nacional. (Abreu: 21). Um Brasil no reino da natureza, modelado pelo primitivismo é a verdadeira face do continente adormecido. (Hoje, o bolsonarimso se define por um ataque movido por interesses econômicos ao Brasil das civilizações tribais). Aliás, no imaginário nacional de outrora, os dominantes são pintados pelos intelectuais como formandos por clãs de um aristocracia de espírito urbano em um contraponto às famílias dominantes rurais constituídas de psicopatas. ((Holanda: 105).  

O professor Luiz Fernando Duarte do Museu Nacional da UFRJ fala que Canudos foi o caminho de Damasco de Euclides. (Abreu; 16). Com “Os Sertões”, uma nova estratégia se estabelece como invasão do imaginário dos dominantes do litoral. O Exército brasileiro usou de uma violência real estrambótica para destruir o Arraial de Canudos e seu povo sertanejo. Canudos mestiça resistiu, nordestinamente, até seu fim apocalíptico - como se algo metafísico estivesse em jogo em sua guerra contra a República ariana do litoral.

A guerra de Canudos se constitui em uma página ficcional gloriosa de nossa história se a verdade tem estrutura de ficção. (Lacan. S. 16: 186). Canudos é o avesso de um discurso de vaidade como é o discurso da estratégia de conquistar o imaginário nacional pelos dominantes: “um discurso que não se articula por dizer alguma coisa é um discurso de vaidade”. (Lacan. S. 16: 42).

O discurso de Canudos diz alguma coisa como verdadeira. O quê?
 Canudos diz que há um Brasil popular que não se encaixa na estratégia de dominação do imaginário nacional; diz que um Brasil-nação é fabricado pelo povo e foracluido da cultura aristocrática dos dominantes.  

O livro “Os Sertões” quebra a estratégia de controle do imaginário nacional pelos dominantes? Um Euclides cooptado pela ABL (Associação Brasileira de letras) e IHGB (instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) não significou a contenção da perda de energia da estratégia de dominação do imaginário nacional?

O discurso de Euclides não se tornou o evangelho da vida nacional como assinalou Lévi-Strauss. No entanto, uma nova estratégia de domínio do imaginário nacional foi fabricada na era Lula. Trata-se da estratégia que põe e repõe o povo brasileiro como formado por mulher, negro e LGBT. Esta estratégia foi “alugada” pelos mass media seculares.

A eleição do capitão de exército Jair Messias Bolsonaro se realizou pela propaganda no cyberespaço de um Messias em uma batalha agônica com a estratégia lulista multiculturalista, e dos mass media cariocas. Bolsonaro retoma a ideia de identidade nacional cara a Euclides.

O governo de Bolsonaro retoma o evangelho da vida nacional como paródia. O ministro da Educação que se expressa em portunhol é o signo da paródia messiânica de "Os Sertões" como evangelho da  vida nacional. Então, uma releitura da teologia das máquinas de guerra euclidiana pode ser o começo da retomada do imaginário nacional  como parte da estratégia, latente, da cultura nacional do sério.


ABREU, Regina. O enigma de Os Sertões. RJ: Rocco, 1988
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. SP: Martins Fontes, 1992
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. RJ: Editora José Olympio, 1988
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 16. De um Outro ao outro. RJ: Zahar, 2008
MONTESQUIEU. Grandeur et décadence des romains. Paris; Flammarion, 1968   
  

        



  

   

Nenhum comentário:

Postar um comentário