segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

LEITURA DA POLÍTICA - 2013

Marx inscreveu o significante ideologia na estrutura simbólica ocidental. Ele atribuiu vários sentidos ao termo. No entanto, o sentido dominante é o de forma de consciência: filosofia, direito, religião, ideologia política. Assim, é um despropósito falar do fim da ideologia em uma época na qual o direito e a religião articulam a política e o Estado. Entretanto é possível ver o fim da ideologia nos fenômenos políticos. As ideologias políticas do século XX – socialismo, comunismo, fascismo, nazismo, populismo latino-americano – parecem ter saturado o espaço ideológico, deixando a impressão pós-moderna do fim das ideologias.
Como um modo racional – consciente – de superar o capitalismo através da intervenção do Estado na economia, a ideia e a prática do socialismo fracassou na URSS, na China, relativamente e na Venezuela, de um modo absoluto. A ideologia comunista é uma retórica chinesa cada vez mais oca de significados e o bolivarianismo não pode ser considerado um fenômeno ideológico. Como o neonazismo e o populismo europeu do século XXI, ele é de fato um fenômeno do inconsciente político. No mínimo, a leitura da política é uma abordagem da política que se faz na interseção do pensamento de Marx como o pensamento de Freud.
Leitura da política brasileira (1985-1992) é um livro sobre a origem da República Democrática pós-ditadura militar. Ele trabalha com fenômenos ideológicos, mas também com fenômenos do inconsciente político. As classes sociais, as multidões, os partidos, os governos e outras instituições aparecem movidos pela ideologia e pelo inconsciente político. Já não se trata de pensar a política simplesmente pelo conceito de hegemonia gramsciniano – a política como articulação da cultura pelo Estado –, mas de pensá-la como algo determinado pela lógica do inconsciente político.
Usando este modelo analítico, o livro desconstrói “mitos” da ideologia política dominante como os signos, as imagens e as representações que cristalizaram o PMDB como o partido à frente da democratização, o governo Sarney como um governo democrático, Ulisses Guimarães como o campeão da democratização. Se o governo Sarney foi a continuação da ditadura militar sob a forma de um regime civil autoritário, não é mais necessário seguir veiculando para as novas gerações que os governos dos generais-presidentes Geisel e Figueiredo patrocinaram a “abertura democrática”. As velhas e novas gerações de jornalistas, cientistas políticos e historiadores precisam parar de funcionar pela ideologia dominante e começar a abrir a porta para a discussão pública da República Democrática, aproveitando o entusiasmo das jornadas de junho de 2013. A propósito, já passou a hora de designar Fernando Collor pelo que ele realmente foi: o primeiro ensaio do tirano pós-moderno na República Democrática.  
Leitura da política(...) também discorre sobre as relações entre economia e política, tentando mostrar que o Brasil perdeu o bonde da história nas décadas de 1980 e 1990 em relação à     evolução do capitalismo mundial. Neste sentido, ele procura ver os laços da política brasileira com a política mundial. Usando a categoria capitalismo corporativo mundial (CCM), o livro projeta a discussão sobre a real situação do Brasil na cena econômica mundial na segunda década do século XXI. O método “leitura da política” permite pensar o futuro a partir da conjuntura política estudada. Enquanto o mundo caminha para a reordenação do capitalismo mundial com o fim da hegemonia do capital financeiro no CCM, o Brasil caminha para a substituição da hegemonia do capitalismo moderno pela hegemonia do capitalismo de commodities, capitaneada pela nova oligarquia rural capitalista. Este quadro conjuntural parece diabolicamente fazer laços entre a economia, a sociedade e a política. No campo político, a personagem que poderia remar contra o corrente da hegemonia da oligarquia rural capitalista, apresenta sinais de debilidade política e ideológica sendo incapaz de assumir uma posição que a ligasse às jornadas de junho de 2013. Marina Silva parece não ter energia para continuar junho no espaço político como parte da primeira revolução política brasileira autêntica. Assim, a eleição presidencial de 2014 parece querer confirmar na política a hegemonia no bloco no poder do capitalismo de commodities.
As multidões das jornadas de junho, que continuam em um outro patamar histórico as multidões que derrubaram Collor em 1992, apontaram o caminho para a transformação da política e do Estado em um sentido contrário ao Estado oligárquico capitalista do capitalismo de commodities. No entanto, não há forças políticas, econômicas e culturais capazes de transformar o movimento das multidões de junho em uma revolução política.
Leitura da política é um projeto teórico-empírico que pretende retomar a investigação sobre o Brasil pensando-o como parte da política da América Latina e do mundo. Mas como todo projeto, ela precisa, para se inscrever na estrutura simbólica, da resposta do leitor.            

             

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Meu livro "Leitura da política brasileira (1985-1992) acaba de ser publicado pela Saraiva Digital. O link para ele é 

http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/6376564#

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Os “Indignados” e a Crise da Democracia Moderna

José Paulo Bandeira da Silveira

Em junho de 2013, o Movimento Passe Livre em São Paulo se multiplicou por outras capitais do país. Trata-se do primeiro ato das multidões da era digital brasileira que abalou os fundamentos do poder político monopolizado pelos partidos que se assemelham a figura do partido oligárquico de Michels.
As multidões das redes digitais já estão além da relação moderna entre representantes e representados e desenvolvem o antagonismo massas urbanas versus poder político. Existe um ponto em comum entre os “indignados” brasileiros e o 15-M espanhol. Eles são fruto de uma árvore frondosa: a crise da democracia moderna em várias partes do mundo. Tal crise tem múltiplas faces. O Estado-espião digital norte-americano legitima tal modelo político despótico para os Estados capitalistas “desenvolvidos” abalando os fundamentos dos direitos individuais. O Estado-espião já existe no Reino Unido, na França, na Alemanha, nos Países Baixos, na Suécia e na Polônia, segundo os jornais europeus e a Eurocâmara. Nos EUA, ele tem 56% de aprovação popular. Ele suspende na prática a quarta emenda da constituição americana que protege os cidadãos das intromissões injustificadas do governo em suas vidas privadas. O agenciamento estatal do medo da população em relação ao terrorismo age sobre a interseção da biologia (gen do medo oprl1) com a estrutura fóbica do inconsciente político dos cidadãos norte-americanos. Trata-se de uma versão realista do biopoder que Bush instalou no sistema político americano e Obama deu prosseguimento. É uma forma digital da televigilância global que consiste em uma vigilância maciça sobre a população através da espionagem da internet. Este Estado digital encontra-se em um território só possível de ser lido através da combinação dos conhecimentos da psicanálise (inconsciente político) com a biologia (gen oprl1). O Estado-espião digital é de fato a transformação da política em um fenômeno pós-moderno. Trata-se da emergência de uma formação política despótica nas sociedades democráticas ocidentais. Antes de tal Estado-espião, os estudos sobre pós-modernidade política ficavam restritos ao espaço virtual! Antes a frase ia além do conteúdo; agora é o conteúdo que vai além da frase!     
Outros fenômenos configuram a crise da democracia. O primeiro é o islamismo que se apoderou da Primavera Árabe abortando a revolução democrática em uma região tradicionalmente enfestada por regimes despóticos. O projeto islâmico do califado mundial não é uma simples paranoia ocidental. O segundo é a putinização da política em vários continentes, que sacraliza a democracia como forma perversa baseada nas ausências da separação dos poderes, da competição política partidária, da liberdade de expressão, da garantia dos direitos individuais. De um ponto de vista moderno, ela é o avesso do modelo democrático de Montesquieu. Putin é a figura carismática do discurso do mestre (Lacan) que funciona como ersatz da cultura política autocrática russa. Um outro é o bolivarianismo na América Latina, que em certos aspectos se assemelha a putinização da política, como é o caso da Lei da Comunicação de Rafael Correa do Equador. Ele faz o significante democracia derivar para uma radical experiência telúrica, como é o caso do Estado Plurinacional da Bolívia. Na Venezuela, o discurso do mestre bolivariano deixou de funcionar com a morte de Hugo Chaves, abrindo um período de crise política crônica. Um outro fato é a ascensão do neonazismo, dos partidos filo-nazistas e do “populismo” na Europa, que tem como significante político paradigmático a aventura despótica do Estado populista-cristão de Viktor Orban na Hungria. Trata-se do primeiro ensaio do discurso do mestre cristão pós-moderno na política mundial. Finalmente, um outro fato é a reação política dos fundamentalismos católico e evangélico aos movimentos de minorias que continuam a secularização da política por outros meios no campo da moral e da vida privada.
O Caso Brasileiro
A democracia contemporânea brasileira sofreu um primeiro golpe com FHC na década de 1990. Movido pelo gozo do poder e uma ambição narcísica desmesurada, ele provocou a mudança do dispositivo da Constituição de 1988 que estipulava quatro anos de mandato para o presidente da República sem direito a reeleição. Ao estabelecer a reeleição, FHC introduziu a possibilidade da retomada da cultura política populista na forma pós-moderna. Nesta, o líder carismático ressurge como uma figura política de um fenômeno que pode funcionar para perpetuar a dominação de uma oligarquia política, que transforma a oposição em uma geleia política. Tal fenômeno é o discurso do mestre. Este discurso restringe o funcionamento da democracia ao inibir a competição política pelo poder executivo. O discurso do mestre faz funcionar um poder político fundado em uma oligarquia política que se apossa do poder central e que se perpetua através de uma ampla coligação de partidos que domina o parlamento e o aparelho de Estado. Na forma pós-moderna do mestre, o líder carismático é capaz de sustentar uma oligarquia política no poder, transferindo seu carisma para um seguidor que tem como objetivo a perpetuação no poder da fração política cimentada pelo discurso do mestre. Ele é a tradução pós-moderna da hegemonia gramsciniana ao obter a direção intelectual e moral da maioria da população e a “hegemonia” sobre as multidões da cidade e do campo. O seguidor pode permanecer oito anos no governo ou, ao encerrar o primeiro mandato, ser substituído pelo mestre. O movimento das multidões urbanas em junho de 2013 é um contraponto à dominação do discurso do mestre na política brasileira que abre um período de grande incerteza política.  
O discurso do mestre na política é capaz de mudar a natureza da República Democrática. Ele é o motor do fechamento da tal República através do golpe de Estado branco. Em 2013, uma série de atos buscam limitar espaço-temporalmente o funcionamento da democracia brasileira. O primeiro é a tentativa da base aliada parlamentar do governo de alterar a natureza do poder legislativo estabelecida pela Constituição de 1988. A PEC 33  pretende restringir o poder do STF. Um outro ato em andamento é a PEC 37, que pretende diminuir o poder do Ministério Público, transferindo funções dele, como a da investigação de crimes políticos, para a polícia. Trata-se de uma retomada do Estado bragantino do Império de Pedro II. Um ministro da Justiça do governo Lula deixou escapar que se trata da refundação de uma espécie de Estado absolutista. Um outro ato do golpe branco é a aprovação de uma lei que proíbe a criação de novos partidos capazes de competir na eleição presidencial de 2014. A lei visa impedir que Marina Silva crie um partido não-oligárquico que dê a ela o suporte para a produção política de um novo tipo de poder “nacional”. Como tática política, a oligarquia política dominante pretende cortar a cabeça de Marina Silva para evitar um segundo turno eleitoral. Também assombra o inconsciente político de tal oligarquia o fantasma da eleição de Fernando Collor na primeira eleição presidencial para a República Democrática. Este se elegeu através de uma partido de “aluguel”, o PRN. Collor foi a primeira experiência despótica em plena República Democrática, derrubado por um movimento espontâneo de massas urbanas em 1992. Na conjuntura política atual, a legitimidade do partido é um dado necessário para qualquer candidatura presidencial. Isto faz a criação de novos partidos entrar como um fenômeno estratégico na competição política.
O último ato do golpe branco é a tentativa da base parlamentar do governo de fazer uma lei que codifique como terroristas as multidões urbanas da era digital que ousarem tomar as ruas contra o poder estatal. Com esta lei, a oligarquia política dominante liderada pelo PMDB revela o segredo da atual conjuntura política: o fato do discurso do mestre começar a falhar com a perda do controle das multidões nas grandes cidades pelos partidos oligárquicos. Trata-se do fim de um período histórico que transforma a categoria de hegemonia em uma peça de um museu de arte política moderna. Assim como no Sul da Europa, o Brasil vê os partidos políticos modernos deixarem de ser aparelhos políticos capazes de exercer uma hegemonia real sobre as multidões nas grandes cidades. Em vários continentes, os “Indignados” são o signo político do fim da hegemonia em um sentido moderno.  Trata-se da implosão real dos fenômenos políticos modernos. Ao lado do Estado-espia digital, os “Indignados” apresentam um outro rumo para os povos.  Agora, a globalização do capitalismo corporativo mundial é acompanhada pela mundialização da pós-modernidade política.    
Como totalidade, os atos políticos enumerados acima configuram um golpe de Estado branco na República Democrática capaz de transformá-la em uma forma perversa de democracia. Tal totalidade pode acabar funcionando como um laboratório para a retomada de experiências despóticas na política brasileira. No cenário da contrarrevolução conservadora dos fundamentalistas católicos e evangélicos e da oligarquia rural do capitalismo de commodities, a perversão política pode dar as cartas para o século XXI brasileiro. As multidões urbanas da era digital aparecem como um contraponto a produção política de tal poder despótico.
Na Turquia, uma manifestação contra a destruição mercantilista de uma área verde de Istambul foi alvo de uma violenta repressão policial. O choque da multidão com o Estado foi o combustível do nascimento dos “indignados” turcos. Tal movimento derivou para uma luta pela democracia em oposição ao “autoritarismo” crescente do primeiro-ministro, que já governa o país há uma década e pretende governá-lo por mais dez anos. Para isto, ele pretende alterar a forma do regime de parlamentarista para presidencialista. Erdogan é a figura carismática do discurso do mestre islâmico que, como Morsi, sonha em seu inconsciente político com o califado mundial.
No Brasil, o movimento começou contra o aumento dos transportes. A truculenta repressão da polícia do PSDB paulista funcionou como um motor para a entrada no cenário político dos “indignados” brasileiros. No dia 17 de junho, em São Paulo, 65 mil pessoas marcharam pelas ruas sem serem incomodadas pela polícia do PSDB, que, na semana anterior, havia prendido mais de duzentos manifestantes e ferido centenas deles. No Rio de Janeiro, uma multidão de cem mil pessoas ocupou o centro da cidade pacificamente. Uma manifestante de 65 anos de idade declarou que sua luta era contra a implantação de uma ditadura legislativa. No final do ato, desgarrado da multidão, um minúsculo grupo do lumpesinato político carioca atacou o prédio da Assembleia Legislativa, provocando uma violenta reação letal da polícia do PMDB. Em Brasília, os manifestantes ocuparam a cobertura do Congresso Nacional produzindo um signo político claro: os indignados brasileiros lutam contra o ensaio despótico da oligarquia política que controla o parlamento brasileiro. No país todo, em uma única segunda-feira, 240000 pessoas ocuparam as ruas das principais capitais. Os “indignados” lutam contra as forças políticas que pretendem transformar a República Democrática em uma forma perversa de democracia.
Após Rio e São Paulo revogarem as tarifas dos transportes, no dia 20 de junho, cem mil pessoas festejaram em São Paulo a vitória sobre os governos estadual e municipal. Já o Rio viu mais de um milhão de pessoas ocuparem a Avenida Presidente Vargas. O ato da multidão no Rio de Janeiro espelha o mal-estar com a cultura do partidarismo (Weber): a dominação dos partidos. Em Brasília, oitenta mil pessoas cercaram o Congresso Nacional em um ato aberto contra a dominação dos partidos oligárquicos. Rio e Brasília geraram o significante político que inaugura uma conjuntura modelada pela contradição entre as massas e o poder político, a qual periodizará a política brasileira até a eleição presidencial de 2014.  
No fundo do cenário político, o inconsciente político das multidões estabelece um contraponto aos movimentos fundamentalistas católicos e evangélicos que, em uma provável associação com a oligarquia rural do capitalismo de commodities, desejam impor ao país uma contrarrevolução conservadora. Tal fenômeno político se tornou visível pelos ataques às minorias como os gays e os índios. Na América Latina, a contrarrevolução conservadora arma um cenário para bloquear a luta das minorias. Na Guatemala, a mais alta corte de justiça suspendeu a sentença contra o general Rios Montt que na década de 1980, como presidente da República, assassinou 1700 indígenas. Os empresários da Guatemala tiveram uma forte influência nesta decisão judicial. No México, ela está pronta para produzir um significante político assombroso. Peña Nieto lidera uma coalizão de partidos para mudar a Constituição pondo um fim no secular Estado laico mexicano. Peña Nieto se formou na universidade da Opus Dei.                                         

O futuro está sendo anunciado pela ação das elites políticas despóticas e pelo movimento democrático das multidões. Também já é um sintoma político do espaço escrito. No século XX, Lenin disse que a literatura de Tolstoi era o espelho da revolução russa. No século XXI, a filosofia política de Slavoj Zizek não é o espelho do despotismo pós-moderno?