quinta-feira, 30 de abril de 2020

CRÍTICA DA RAZÃO CORPORATIVA INDUSTRIAL


José Paulo


A razão burocrática aparece na sociologia de Max Weber como algo comum à empresa e ao Estado moderno:
“Os dois são, em sua essência fundamental, completamente iguais. O Estado moderno, do ponto de vista sociológico, é uma “empresa”, do mesmo modo que uma fábrica: precisamente esta é sua qualidade historicamente específica”. (Weber: 530).
Weber conceitua a razão burocrática moderna usando o pensamento de Marx:
“a dependência hierárquica do trabalhador, do empregado de escritório, do funcionário técnico, do assistente de um instituto universitário e também a do funcionário e soldado estatal baseia-se uniformemente no fato de que aqueles instrumentos, reservas e recursos monetários, indispensáveis à empresa e à existência econômica, encontram-se concentrados no poder de disposição, nos primeiros casos, do empresário, e nos últimos casos, do senhor político. Este fundamento econômico decisivo – a <separação>do trabalhador dos meios materiais do empreendimento: dos meios de produção, dos meios bélicos no exército, dos meios administrativos materiais na administração pública, dos meios de pesquisa no instituto universitário e no laboratório, e dos meios monetários em todos estes casos é comum à moderna organização estatal, na área política, cultural e militar, e à economia capitalista privada. Em ambos os casos, a disposição sobre esses meios está nas mãos do poder ao qual obedece, diretamente, o <aparato> da burocracia (juízes, funcionários, oficiais, capatazes, funcionários de escritório, sargentos) ou à cuja disposição este se coloca ao ser chamado. Tanto a existência quanto a função desse aparato estão inseparavelmente concatenadas, como causa e como efeito, à ‘concentração dos meios materiais da empresa’, sendo ele a forma de manifestação desta concentração. Inevitavelmente, ‘socialização’ crescente significa hoje também burocratização crescente”. (Weber: 530).
A razão burocrática significa a relação social de produção na economia e na política como separação entre proprietários dos meios de produção e não-proprietários. Assim, há dois aspectos nessa história econômica: o poder burocrático e a proletarização da economia, da política, da cultura e da ordem militar.  
Em Weber, proprietário dos meios de produção significa proprietário do poder burocrático. Em Gramsci, a razão burocrática atravessa a história econômica do espaço virtual estrutural do modo de produção capitalista na política e na economia em direção à formação social capitalista.  

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Em Gramsci, o estado maior do Exército detém o poder burocrático no aparelho repressivo de Estado; na economia, o patronato tem a propriedade do poder burocrático na fábrica, na empresa; na política tout court, o partido político detém o poder burocrático através de sua camada dirigente. (Buci-Glucksmann: 49).
O proletariado ou econômico ou político ou militar é constituído pela classe operária, militantes de base, soldados. Uma <classe média> se interpõe entre o poder burocrático e o proletariado; na fábrica, empregados, contramestres, técnicos médios em função técnica, administrativa, fiscalização. No partido político, temos os quadros médios que ligam a camada dirigente aos militantes de base; no Exército, oficiais subalternos fazem a ligação dos generais com os soldados como executores dos planos do estado-maior na guerra entre nações, ou contra o proletariado na luta de classes.  
Este retrato da razão burocrática funciona nos países desenvolvidos e subdesenvolvidos desigual e combinadamente. A razão burocrática industrial é o espírito do capitalismo weberiano, de fato.  Outra razão industrial vai se desenvolver de forma acabada nos séculos XX e XXI.      
Boltanski e Chiapelo inscrevem uma outra razão (razão não burocrática) na vida industrial pós-II Guerra mundial. Trata-se da <gramática da exploração> no lugar da razão burocrática. Assim, a razão industrial toma o caminho da razão industrial corporativista na forma da gramática da exploração industrial:
“Raciocínio do mesmo tipo foi feito para denunciar a exploração nos contextos socialistas e, de modo geral, nas organizações burocráticas não controladas por proprietários, e sim por diretores. No entanto, nesse caso, o diferencial em causa já não é um diferencial de propriedade, mas um diferencial de poder (também juridicamente garantido), que permite extorquir um excedente de poder. De fato, aqueles que ocupam os escalões superiores, cujo status é garantido por um título (escolar, funcional, político etc.), arrogam-se um poder de decisão que, ao ser formalmente atribuído, é na realidade ‘composto’ e ‘repartido’ em ‘diversos níveis inferiores’, sendo essa captação de poder dissimulada pela identificação dos inferiores com a burocracia que os explora, conforme diz Claude Lefort, de cuja análise nos valemos. Nesse segundo caso, o retorno ao equilíbrio passa pela redistribuição do poder oficial, que corresponde à distribuição do poder real, ou seja, a autogestão”. (Boltanski: 385).
A gramática de autogestão quebra o poder burocrático, a razão burocrática industrial, como demanda de autonomia e responsabilidade da força de trabalho no processo de produção industrial:
“Todos os dispositivos associados ao novo espírito do capitalismo – quer se trate da terceirização, quer da proliferação nas empresas de centros autônomos de lucro, de círculos de controle de qualidade  ou das novas formas de organização do trabalho – de fato vieram, em certo sentido, atender às demandas de autonomia e responsabilidade que se fizeram ouvir no início da década de 70 em tom reivindicativo: os executivos desligados de suas linhas hierárquicas para assumirem ‘centros autônomos de lucro’ ou para realizar ‘projetos’ e os operários subtraídos às formas mais divisionárias de organização do trabalho em linha de montagem, realmente perceberam que seu nível de responsabilidade aumentou, ao mesmo tempo que era reconhecida sua capacidade para agir de maneira autônoma e para demonstrar criatividade”. (Boltanski: 430).
Assim, o aparato econômico weberiano (fábrica e aparelho de Estado) cede seu lugar à forma acabada da <organização corporativa industrial>:
“Commons argumentou que a emergência da organização na forma de empresa era um veneno injetado no corpo político americano por uma ’conspiração por parte da Suprema Corte do final do século XIX, a qual deliberadamente interpretou mal a Décima Quarta Emenda da Constituição, uma tolice que deveria ter sido óbvia para qualquer leitor; todos os outros países desenvolvidos haviam aceito as corporações sem necessidade de uma Suprema corte ou Décima Quarta Emenda – na verdade, os Estados Unidos foram o último país desenvolvido a fazê-lo (depois até mesmo do Japão). Entretanto, Commons fazia sentido para os leitores de 1924. A organização era uma aberração tão grande, que somente poderia ser explicada pela existência de alguma conspiração sinistra. O livro transformou-se em best seller e uma das bíblias dos ‘surradores de empresas’ do New Deal alguns anos depois”. (Drucker:30).
A gramática da corporação industrial funciona pela lógica da destruição criativa, algo que assusta a empresa weberiana da passagem do capitalismo liberal. Para o capitalismo neomercantilista:
“A abertura de novos mercados – estrangeiros ou domésticos – e o desenvolvimento organizacional, da oficina artesanal aos conglomerados como a U.S. Steel, ilustram o mesmo processo de mutação industrial – se me permitem o uso do termo biológico – que incessantemente revoluciona a estrutura econômica <a partir de dentro>, incessantemente destruindo a velha, incessantemente criando uma nova. Esse processo de Destruição Criativa é o fato essencial acerca do capitalismo. É nisso que consiste o capitalismo e é aí que têm de viver todas as empresas capitalistas”. (Schumpeter: 112-113).
Lester Thurow subescreve:
Regra N° Dois: AS empresas de sucesso precisam estar dispostas a canibalizar a si mesmas para se salvarem. Elas precisam estar dispostas a destruir o antigo enquanto ainda têm sucesso para que possam construir o novo antes que este tenha êxito. Se elas não destruírem, outras as farão”. (Drucker: 44).        
                                                              
A gramática da corporação industrial capitalista funciona pela lógica da destruição criativa, repito. Trata-se de um fenômeno inusitado na história econômica universal:
“Somente a emergência da gerência a partir da Segunda Guerra Mundial nos fez perceber que a organização é uma entidade distinta e separada. Ela não é ‘comunidade’, nem ‘sociedade’, ‘classe’ ou ‘família’, os modernos integradores conhecidos pelos cientistas sociais. Mas ela também não é um ‘clã’, uma ‘tribo’ ou um ‘grupo de afinidade’, nem nenhum dos outros integradores da sociedade tradicional, conhecidos e estudados por antropólogos, etnólogos e sociólogos. A organização é uma coisa nova e distinta”. (Drucker: 31).
A gramática da corporação altera a relação entre proprietários e não-proprietários do capital. Ela desbanca o poder burocrático na relação deste com o proletariado. Ela faz desaparecer a sociedade de classes, na cultura da representação, formada por   burguesia e classe operária. Ela gera novas aparências de semblância (Arendt: 30-31) como uma sociedade formada por uma reunião de empregados da sociedade do conhecimento do capitalismo neoliberal:
“Mas na sociedade do conhecimento, nem mesmo os trabalhadores em serviços menos qualificados são ‘proletários’. Em seu conjunto, os empregados possuem os meios de produção. Individualmente, poucos são abastados. Menos ainda são ricos (embora muitos sejam independentes – aqueles que hoje chamamos de ‘afluentes’). Coletivamente, porém, quer seja através dos seus fundos de pensão, de fundos mútuos, das suas poupanças de aposentadorias, e assim por diante, eles possuem os meios de produção. As pessoas que exercem o poder de voto para os empregados também são empregadas; tome por exemplo os servidores civis que gerenciam os fundos de pensão dos governos estaduais e municipais nos Estados Unidos. Esses gerentes de fundos de pensão são os únicos ‘capitalistas’ verdadeiros do país. Portanto, na sociedade pós-capitalista, os próprios ‘capitalistas’ tornam-se empregados. Eles são remunerados como empregados; pensam como empregados; olham para si mesmo como empregados. Mas agem como capitalistas”. (Drucker: 42).
A crítica da razão corporativa industrial pega no ar a crise do capitalismo de empregados norte-americano causado pela covid-19; o que restou dele na terceira década do século XXI como gramática da organização industrial corporativa.
 Na década de 1990 já está claro o significado do passado da gramática em tela:
“O que emergiu dessa década frenética foi uma redefinição da finalidade e da base lógica da grande empresa e da função da sua gerência. Ao invés de serem gerenciadas ‘nos melhores interesses equilibrados dos interessados, as corporações passaram a ser gerenciadas exclusivamente para ‘maximizar o valor do acionista’.
Isso também não irá funcionar porque força a corporação a ser gerenciada em função do curtíssimo prazo, o que significa prejudicar, ou mesmo destruir, sua capacidade de produção de riqueza. Significa declínio rápido. Não se pode obter resultados a longo prazo empilhando uns sobre os outros os resultados a curto prazo. Eles devem ser obtidos através do equilíbrio entre necessidades e objetivos a curto e longo prazos. Além disso, gerenciar uma empresa exclusivamente para os acionistas aliena as próprias pessoas de cuja motivação e dedicação depende a empresa moderna: os trabalhadores do conhecimento. Um engenheiro não se sentirá motivado a trabalhar para tornar rico um especulador”. (Drucker: 53).
Drucker faz a crítica demolidora do capitalismo neoliberal da razão corporativa industrial. Crítica só tornada realidade com a crise econômica mundial da hegemonia do capitalismo neoliberal sobre a Europa ocidental.
Hoje, a Europa parece se encaminhar para a doção do modelo de economia mista: capitalismo corporativo mundial privado e capitalismo corporativo de Estado com Estado-cientista cibernético, natural. 
Para a América do Norte, adotar o modelo econômico misto significa por um fim na gramática neoliberal do capitalismo corporativo privado, alfa e ômega da vida civil americana.       
     
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Hegel é o teórico da corporação industrial moderna. Ele escreve:
<La corporación como remedio contra el antagonismo de la sociedad civil>.
Si bien han de elevarse quejas sobre el lujo y el ansia de derroche de las clases industriales, con lo cual tiene que ver el surgimento de la plebe, no hay que pasar por alto entre las otras causas (por ejemplo, el devenir cada vez más mecânico del trabajo) el fundamento <ético>, tal y como queda dicho en lo precedente. Sin ser miembro de una corporación legítima (y sólo en cuanto legítima es un colectivo una corporación) el indivíduo, <sin dignidad de clase>, queda reducido por su aislamiento al aspecto egoísta de la indústria, su subsistencia y su goce no son en absoluto <permanentes>. Buscará en consecuencia obtener <su reconocimiento> mediante las demonstraciones externas de su éxito en su industria, demonstraciones que son ilimitadas porque no tiene lugar el viver conforme a su clase dado que la clase no existe (pues en la sociedad civil <existe> únicamente aquel colectivo que es legalmente constituído y reconocido), y por ende no se forma tampoco ningún modo de vida más universal adequado a él”. (Hegel: 674-675).
A gramática da corporação industrial se define por abolir a luta de classes; ela é o remédio contra o antagonismo da sociedade civil:
“Presentes na década de 70 não só nas ciências sociais, onde já tinham sido objeto de um grande número de trabalhos, mas também na literatura, na mídia e no cinema, as classes sociais foram se apagando progressivamente do campo da representação. Na segunda metade dos anos 80, analistas reconhecidos e acatados podiam acreditar e afirmar seriamente que elas já não existiam”. (Boltanski: 316).
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No capitalismo desenvolvido, a gramática da corporação industrial cibernética ocupa o aspecto principal de uma dialética de sintetização entre capitalismo e socialismo, na China. O Ocidente ignora o modelo de economia mista com planificação, característica que define o capitalismo corporativo de Estado (CCE) chinês.
A crise econômica mundial da covid-19 é enfrentada na China através da planificação corporativa de Estado com Estado-cientista.  O capitalismo corporativo mundial privado presente na China se apoia no CCE para lutar contra a crise econômica. Ele terá que se reinventar através de uma planificação capitalista.
Sob o comando de um Donald Trump neoliberal, os Estados Unidos encontram imensas dificuldades para enfrentar a crise sanitária, como humanitarismo, da covid-19. Um capitalismo neoliberal hegemônico no domínio da saúde não tem como enfrentar a acumulação de cadáveres nas cidades e milhões de contagiados pelo novo coronavírus. A plebe doente é um aspecto que afeta a acumulação de capital na América. A crise do capitalismo globalizado é o outro aspecto decisivo para paralisar a economia americana.
Os Estados Unidos têm um bloqueio mental persistente para se livrar do modelo neoliberal capitalista, que articula e organiza a vida da sociedade civil americana. A gramática da corporação industrial neoliberal pesa como chumbo no cérebro dos americanos. Donald Trump faz movimentos que apontam para a <restauração> da razão corporativista neoliberal para depois da crise da covid-19.
A história econômica mundial dos países desenvolvidos parece que vão trocar o capitalismo neoliberal pela economia mista. As elites desenvolvidas têm uma compreensão de que a nova ordem mundial se estabelece baseada na ideia de um planeta que terá que lidar com plurivocidade de crise na primeira metade do século XXI.
Para lidar com a nova história planetária, há necessidade de planificação econômica e um Estado-cientista cibernético natural internacionalizado nas formações sociais nacionais.
Na terceira metade do século XXI, o Estado-cientista faz pendant com o capitalismo corporativo privado mundial (com planificação capitalista) e com o capitalismo corporativo de Estado. A Europa parece adotar esse caminho. Os Estados Unidos se comportam como um grande elefante branco ema loja de cristais.
Os países subdesenvolvidos não conhecem a gramática corporativa industrial. Eles são velhos portadores da gramática do capitalismo burocrático que tem na CEPAL sua fonte de cultura econômica extemporânea. Trata-se de um mundo que vive no passado e do passado.  
Na superfície de representação da vida dos grandes países latino-americanos, não aparecem forças históricas que sejam capazes de dirigir os povos na direção do modelo econômico misto corporativo industrial.
No Brasil, há o agravante do país ter feito do neoliberalismo uma tradição que domina a vida da sociedade. O Brasil se torna aos poucos um cemitério a céu aberto de cadáveres da covid-19. Mesmo com a catastrófica crise da covid-19, a política governamental (governo federal, parlamento, governos locais) dá prosseguimento ao aprofundamento do subdesenvolvimento neoliberal.
Se quer privatizar grandes hospitais em plena crise da covid-19. Economistas profissionais falam da crise econômica permanente que se apodera do Brasil. O ministro da economia insiste em uma narrativa neoliberal que transforma a economia brasileira em uma esfera mítica. Trata-se da economia como esfera mitológica, como produção de mitos econômicos que substituem os fenômenos reais no domínio da representação.   
Paulo Guedes e a grande imprensa são possuídos por uma narrativa na qual figuras míticas como o capital privado e o Mercado Financeiro continuam no comando da cultura econômica brasileira. Para eles, a Europa ocidental se encaminha para o desastre. E só o Brasil pode salvar a hegemonia do capitalismo privado sobre a economia mundial, se Donald Trump for derrotado pela burguesia republicana e democrata, que já fala em planificação capitalista no domínio da saúde pública nos estados americanos.
Viveremos uma época na qual Estado e capitalismo atuarão juntos para a reprodução ampliada de capital e acumulação capitalista. Todavia, não se trata de uma repetição econômica do velho capitalismo monopolista de Estado do século XX.  
A Europa resolve fazer a sintetização entre o Ocidente e o Oriente asiático oriental da planificação. Uma nova ordem mundial emergirá dessa sintetização.

ARENDT, Hannah. A vida do espírito. O pensar, o querer, o julgar. RJ: UFRJ/Relume Dumará, 1992
BOLTANSKI & CHIAPELLO, Luc e Ève. O novo espírito do capitalismo. SP: Martins Fontes, 2009
BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Gramsci et l’État. Paris: Fayard, 1975
HEGEL. Fundamentos de la filosofia del derecho. Madrid: Libertarias/Prodhufi, 1993
DRUCKER, Peter. Sociedade pós-capitalista. SP: Pioneira, 1993
SCHUMPETER. Capitalismo, socialismo e democracia. RJ: Zahar Editores, 1984
THUROW, Lester C. A construção da riqueza. RJ: Rocco, 2001
WEBER, Max. Economia e sociedade. V. 2. Brasília, UNB. 1999   
        
                     

segunda-feira, 27 de abril de 2020

CESARISMO AMERICANO


José Paulo



Gramsci estabeleceu o cesarismo como fenômeno político da história ocidental antiga e moderna:
“O cesarismo é progressista quando sua intervenção ajuda a força progressista a triunfar, ainda que com certos compromissos e acomodações que limitam  a vitória; é regressivo quando sua intervenção ajuda a força regressiva a triunfar, também neste caso com certos compromissos e limitações, os quais, no entanto, têm um valor, um alcance e um significado diversos daqueles do caso anterior. César e Napoleão I são exemplos de cesarismo progressista. Napoleão III e Bismarck, de cesarismo regressivo. Trata-se de ver se, na dialética revolução-restauração, é o elemento revolução ou o elemento restauração que predomina, já que é certo que, no movimento histórico, jamais se volta atrás e não existem restauração <in toto>. (Gramsci: 77).
O cesarismo americano é o horizonte teórico do século XXI? Como o cesarismo de Napoleão III (bonapartismo em Marx), o cesarismo de um Donald Trump se anuncia, no dia-a-dia da política, como a destruição da democracia?
O cesarismo americano é progressivo (revolução) ou regressivo (restauração)?
O bonapartismo foi a forma política autoritária da passagem do capitalismo neoliberal para o capitalismo neomercantilista? O bonapartismo significou uma revolução econômica progressista na Europa?
O cesarismo americano desponta como uma forma política de destruição da centenária democracia americana. O povo norte-americano cansou da política da burguesia republicana e democrata que possuem o monopólio da política nacional e local?
O cesarismo americano é a solução possível para a dupla crise - crise sanitária e crise econômica?     
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O cesarismo moderno faz pendant com a história europeia dos campos de poderes/saberes econômicos. Três campos de poderes iluminam a relação da forma política cesarista com as formas econômicas.
O capitalismo mercantilista tem seu próprio campo de poderes, assim como o capitalismo neoliberal e o capitalismo neomercantilista.  Me detenho no lugar do pobre neles.
Harold Laski resume a relação da economia mercantilista com o pobre:
“A recomendação de suas ideias políticas consiste, simplesmente, no fato delas contribuírem para a riqueza e o lastreamento do reino.  A novidade que apresentam é o franco utilitarismo que as informa, a aceitação da ideia de abundância como ideal social auto-suficiente. Isso transparece, sobretudo, na atitude que assumiram em relação ao pobre. Não será exagerado dizer, penso eu, que consideravam os desempregados como criminosos sociais; eram indivíduos que subtraíram uma riqueza colocada ao alcance de todos. Foi esse o espírito da Lei dos Pobres elisabetana e, é evidente, nas medidas repressivas contra eles recomendadas por Laffemas. Todo o espírito do esforço desenvolvido por esses ideólogos orientado no sentido de levar o povo a trabalhar”. (Laski: 44).

Descrevendo a legislação despótica inglesa contra o pobre, Marx resumiu:
“Os que foram expulsos de suas terras com a dissolução das vassalagens feudais e com a expropriação intermitente e violenta, esse proletariado sem direitos, não podiam ser absorvidos pela manufatura nascente com a mesma rapidez com que se tornavam disponíveis. Bruscamente arrancados das suas condições habituais de existência, não podiam enquadrar-se, da noite para o dia, na disciplina exigida pela nova situação. Muitos se transformaram em mendigos, ladrões, vagabundos, em parte por inclinação, mas na maioria dos casos por força das circunstâncias. Daí ter surgido em toda a Europa ocidental, no fim do século XV e no decurso do XVI uma legislação sanguinária contra a vadiagem. Os ancestrais da classe trabalhadora atual foram punidos inicialmente por se transformarem em vagabundos e indigentes, transformação que lhes era imposta. A legislação os tratava como pessoas que escolhem propositadamente o caminho do crime, como se dependesse da vontade deles prosseguirem trabalhando nas velhas condições que não mais existiam”. (Marx.1996, v. 2: 851).  
O capitalismo liberal refaz a posição do pobre no campo de poderes/saberes econômico-político? O pobre assume a posição de proletariado industrial e exército industrial de reserva.
Como capitalismo privado no comando da economia, política e ideologia, o capitalismo liberal se caracteriza peLa não intervenção do político no econômico. (Poulantzas: 147). O modo de produção capitalista do capitalismo privado se caracteriza por um Estado não-intervencinista. (Poulantzas: 146).
Ao contrário, se observamos o campo de poderes econômico estatizado pela posição do pobre, há um certo intervencionismo do político no econômico, como demonstra Foucault.
O campo de poderes é movido por estratégias e táticas. A <noso-política> é uma estratégia global que combina medicina privada, medicina liberal, e medicina socializada, medicina pública. (Foucault. 1994. V. 3: 14, 13).
O pobre doente requer um Estado intervencionista no campo de poderes/saberes econômico:
“Se dessine ainsi toute une décomposition  utilitaire de la pauvreté, où commence à apparaître le problème spécifique de la maladie des pauvres dans son rapport avec les impératifs de travail et la nécessité de la production.
Mais il faut noter aussi un autre processus, plus général que celui-là, et qui n’en est pas le simple développement. C’est l’apparition  de la santé et du bien-être physique de la population en général  comme l’un des objectifs essentiels du pouvoir politique. (Foucault. 1004. V. 3: 16).
Além do lugar do pobre, o capitalismo liberal se apresenta como uma revolução na esfera teológica que esteve no comando da vida social, inclusive na Reforma protestante. O capitalismo liberal transforma a teologia em um artefato ideológico, assim como a filosofia e o direito, e o discurso político:
“ Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim”. (Marx. 1974: 136).  
No capitalismo neoliberal, a consciência desaparece como fenômeno social e, assim, temos  a esfera ideológica em colapso.        
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O cesarismo de Napoleão III é uma forma política que não se coaduna com o capitalismo neoliberal? O, ela se antecipa como forma política do capitalismo neomercantilista?
O intervencionismo é o fenômeno do campo de poderes econômico com burocratismo que suspende o capitalismo privado no comando da vida nacional, como notou Marx. (Poulantzas: 343). No início da formação do capitalismo neomercantilista, Napoleão III se alia à Inglaterra:
“Assim terminou a gloriosa guerra do ópio. Em troca da paz de 27 de agosto de 1842, os ingleses obtiveram a ilha de Hong-Kong. Além disso, os portos de Cantão, Amox, Fuchu, Nimpó e Xangai deviam ser abertos ao comércio. Quinze anos mais tarde, verificou-se a segunda guerra contra a China, mas desta vez os ingleses eram aliados dos franceses. Em 1857, a frota aliada se apoderou de Cantão, com o mesmo heroísmo que caracterizou o da 1° guerra. Constava nas cláusulas da paz de Tientsin em 1958 a livre importação do ópio e a abertura do país ao comércio e a penetração das missões no interior da China”. (Rosa: 338-339).
Com o novo capitalismo, o campo de poderes econômico sofre uma estatização intervencionista; ele se torna um campo de poderes neomercantilista mundial:
“El imperialismo, cuya expresión económica es el neo-mercantilismo, há puesto a disposicion del capitalismo (esto tiene, por el momento, sólo un sentido general) los recursos de un fuerte  poder político; el capitalismo traído a la vida por un flerte sistema de estados, llega a su vez a madurez, formando un sistema de estados igualmente fuertes. Las ideias liberais de la libre concurrencia entre las economías privadas se han mostrado inadecuadas para el capitalismo (en sus repercusiones sobre el mercado mundial). En el interior, el capitalismo se há procurado, por su própria fuerza, los médios de poder necesarios, asumiendo  el mesmo, en la mayor parte de los casos, las funciones del estado. En su relación con el extranjero no podia prescindir de estos médios de poder inedependiente, de poder de estado, y sólo por su empleo há podido llegar al engrandecimiento formidable que hoy há alcanzado”. (Sombart: 83).
Rosa fala da lógica da história econômica da gramática acabada do capitalismo neomercantilista:
“Considerada historicamente, a acumulação capitalista é uma espécie de metabolismo que se verifica entre os modos de produção capitalista e pré-capitalista. Sem as formações pré-capitalistas, a acumulação não se pode verificar, mas, ao mesmo tempo, ela consiste na desintegração e assimilação delas. Assim, pois, nem a acumulação de capital pode realizar-se sem as estruturas não-capitalistas nem estas podem sequer se manter. A condição vital da acumulação do capital é a dissolução progressiva e contínua das formações pré-capitalistas. (Rosa:363).
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A relação entre o cesarismo americano e o neoliberalismo se apresenta de forma acabada com Donald Trump. Voltaremos a isso depois.
O lugar do pobre no capitalismo neoliberal é o do não-cuidado dele pelo Estado social. O neoliberalismo destruiu o capitalismo social europeu e seu Estado do bem-estar social, voltado para cuidar da sociedade salarial. Na América do Sul, o neoliberalismo destruiu o Estado previdência periférico. Na América, o capitalismo neoliberal é a sintetização de liberalismo com mercantilismo clássico, se o olharmos pelo lugar da pobreza doente no campo de poderes econômico mundial. A pobreza doente é jogada na lata de lixo da história econômica pela dominância da medicina liberal sobre a medicina pública. Só tem direito aos cuidados médicos os que podem pagar!
O neoliberalismo é uma vontade política de extirpar qualquer intervenção do Estado em qualquer domínio da sociedade.  O campo de poderes econômico neoliberal não é uma repetição histórica do capitalismo liberal.
Na primeira metade de 2019, publiquei o livro “Gramáticas do capitalismo”. Nesse livro organizo minhas ideias sobre o capitalismo neoliberal com hegemonia americana e sobre o capitalismo neoliberal globalizado:
“Os economistas têm explicado a conjuntura econômica neoliberal sem atinar que se trata de um período no qual foi criado uma gramática monetarista neoliberal. As condições para a produção dessa gramática remetem ao sistema de Breton Woods no qual os Estados Unidos encontravam-se em condições de desenvolver seu comércio exterior e investimentos no estrangeiro nos termos da <diplomacia do dólar> – com todas as vantagens latentes em ser o banqueiro central do mundo capitalista com a vantagem de cunhagem ou ‘seignorage’”. (Bandeira da Silveira. 2019a: 75-76).   
O capitalismo neoliberal tem a sua própria cultura econômica
“A hegemonia neoliberal se baseia em algumas ideias. Uma delas é eliminar o Estado keynesiano, que se converteu em um Leviatã. E retornar ao Estado mínimo e de equilíbrio segundo a lógica do mercado, lógica natural. Outra ideia é a do Estado desenvolvimentista ineficiente, tendo como solução a privatização dos aparelhos empresariais estatais. O Estado desenvolvimentista é representado como refém econômico de burocracias autoritárias autotélicas (que cuidam apenas de seus interesses e dos interesses das oligarquias políticas) ou dos interesses dos feudos econômico-financeiros. O Estado aparece como ineficiente em suas funções de gestor, planejador, investidor, empresário, regulador, promotor, banqueiro e benfeitor”. (Bandeira da Silveira. 2019a: 76-77).
O neoliberalismo é a crítica prática e objetiva demolidora do capitalismo burocrático de Estado dos países subdesenvolvidos, com sociedade industrial dependentes e associadas com as transnacionais.  Tal crítica nos leva para o amago da cultura econômica neoliberal subdesenvolvida e além:
“O capitalismo industrial em colapso da década de 1980 vê a passagem da cultura econômica neokeynesiana para a cultura econômica monetarista neoliberal, que chega até aos dias atuais como arma ideológica do rico contra a sociedade salarial e aposentados. A cultura econômica monetarista faz pendant com a ditadura monetarista neoliberal (no campo de poderes econômico nacional) que aparece nitidamente na Reunião de Ottawa do G7 (Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Itália, Alemanha Ocidental, Canadá, Japão): ‘Devemos despertar em nossos povos uma maior apreciação da necessidade de mudança nas expectativas  a respeito de crescimento e dos lucros, mudança na administração e nas relações e práticas trabalhistas’”. (Bandeira da Silveira. 2019a: 77-78).
O resultado do capitalismo neoliberal é transformar o mundo do trabalho em uma esfera sem direito trabalhista, e lugar do trabalho pauperizado.
A ditadura monetarista do capitalismo globalizado neoliberal é uma forma econômica no campo de poderes capitalista mundial que faz pendant com a forma política cesarismo americano?  
A China aparece como líder do combate à pandemia da covid19. Nos Estados Unidos, republicanos e democratas falam de uma planificação capitalista. Há estados americanos voltados para a criação de uma medicina pública, como aquela do Estado-cientista chinês natural:
“Na terceira década do século XXI, a China continuará a exportação do capital chinês como comércio de mercadorias. Trata-se de uma etapa do neocolonialismo chinês superficial que antecipa a internacionalização neomercantilista profunda do capital cyber chinês no espaço econômico da internet das coisas. Há um sistema neomercantilista de Estados fortes na sociedade industrial asiática cyber que se expandirá na primeira metade do século XXI”. (Bandeira da Silveira. 1919a: 87).
A crise do capitalismo globalizado põe em risco a hegemonia do capitalismo neomercantilista asiático?
A relação Ocidente/Oriente se alterará irrevogavelmente no capitalismo neomercantilista:
“No Ocidente, o capitalismo financeiro assume o comando da reprodução ampliada de capital e acumulação capitalista. No Oriente asiático, ergue-se um sistema neomercantilista de Estados-nação de uma sociedade industrial asiática, na época cyber. O imperialismo se dissolve no ar como significante da economia política. E permanece a essência do capitalismo monopolista, a saber: de ser uma linguagem econômica mista, isto é, capital privado em aliança com o capital público. No entanto, a ideologia neoliberal fala da necessidade do fim da linguagem econômica mista”. (Bandeira da Silveira. 2019b: 42).
A linguagem chinesa é aquela linguagem mista da combinação do capitalismo corporativo mundial privado com o capitalismo corporativo de Estado cum Estado cibernético, natural.
A propósito, qual o lugar do pobre no capitalismo neoliberal globalizado? A destruição do capitalismo socialdemocrata europeu lança o proletariado para as paupérrimas classes baixas. Nos Estados Unidos, o pobre doente é tratado como dejeto humano. No subdesenvolvimento neoliberal, o proletariado é transformado em uma massa paupérrima:
“O pauperismo é uma condição da gramática do capitalismo subdesenvolvido pós-moderno. O subcapitalismo (ersatz de capitalismo) é o capitalismo sem acumulação de capital (Baran: 139), capitalismo sem capitalismo tout court “. (Bandeira da Silveira. 2019b: 46).
O pobre no subdesenvolvimento capitalista neoliberal é tratado como substâncias de esgoto a céu aberto:  
“A metabolização da gramática dominante atual pelos sujeitos depende do funcionamento dos dispositivos empresariais de poder como os mass media. Estes fazem girar o discurso do mestre <imperialismo neoliberal do americanismo> na realidade objetiva <capitalismo subdesenvolvido pós-moderno>. Habitando a junção do campo dos sujeitos com o campo dos poderes/saberes, intelectuais neoliberais do americanismo nativo (economistas, jornalistas, cientistas políticos, historiadores, psicólogos, políticos) criam e recriam a narrativa econômica como atualização do discurso do maître. Este funciona como uma máquina de guerra narrativa alimentada por ideias criminosas contra a existência da Nação, do Estado nacional e população paupérrima, a ser descartada”. (Bandeira da Silveira. 2019b: 53).
Donald Trump fez pouco caso da covid19, e se comporta como Bolsonaro, um tiranete da América do Sul do capitalismo subdesenvolvido neoliberal:
“Ideias criminosas nada tem a ver com a definição e/ou prática da política ocidental. Elas definem a tirania que já não é política tout court. A tirania é percebida como tal ´pelos sujeitos? E, se é assim, há no campo dos sujeitos o <amor à tirania>? A tirania pode funcionar em um campo de sujeitos em junção com o campo de poderes de uma formação social democrática liberal?”. (Bandeira da Silveira. 2019b: 53).
A tirania bolsonarista de um Donald é a antessala do cesarismo americano regressivo. Pois, é regressivo por se prender a permanência do capitalismo neoliberal (sua restauração depois da covid19) em uma época de planificação capitalista, de economia mista, de Estado-cientista no comando da vida nacional e planetária, humanitária.
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramáticas do capitalismo. Lisboa: Chiados Book, 2019a
Bandeira da Silveira, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje. Lisboa: Chiado Book, 2019b
Foucault, Michel. Dits et écrits. V. 3. Paris: Gallimard, 1994
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. RJ: Civilização Brasileira, 2014
LASKI, Harold J. O liberalismo europeu. SP: Mestre Jou, 1973 
MARX. Os Pensadores. SP: Abril Cultural, 1974
MARX. O capital. Livro 1, v. 2. RJ: Bertrand Brasil, 1996
POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. SP: Martins Fontes,1977
ROSA LUXEMBURGO. A acumulação do capital. RJ: Zahar Editores, 1970   
SOMBART, Werner. El apogeo del capitalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1984

        
 
  



   

 



quarta-feira, 22 de abril de 2020

FIM DO CAPITALISMO GLOBALIZADO CIBERNÉTICO?


José Paulo




DISCURSO ECONÔMICO NOS TRÓPICOS

O ponto-de-partida é o capital fictício neoliberal no centro do campo de poderes/saberes da economia mundial:
“Já ninguém ignora a fantástica concentração de poder que hoje se manifesta nos chamados <mercados financeiros>, que são dominados por atividades especulativas cambiais. Com o avanço da globalização, esses são os mercados que apresentam as mais altas taxas de rentabilidade, Daí que a distribuição da renda em escala mundial seja crescentemente determinada por operações de caráter virtual, efetuadas na esfera financeira. Trata-se da manifestação mais clara dessa realidade que se está impondo e que cabe chamar de <capitalismo global>, matriz de um futuro sistema de poder mundial”. (Furtado: 7).
Com o capitalismo fictício globalizado neoliberal, há a passagem da estatização do campo de poderes mundial para uma desestatização desse campo. Vivemos em uma época na qual o pensamento de Michel Foucault se desvincula da realidade capitalista.
“Não existe Estado, apenas uma estatização, e isto é válido para outros casos. De modo que, estudando cada formação social histórica, será preciso indagar o que cabe a cada instituição existente sobre tal estrato, ou seja, que relações de poder ele integra, que relações ele mantém com outras instituições, e como essas repartições mudam, de um estrato ao outro. aqui, novamente, são problemas de captura bastante variáveis, horizontais e verticais. Se a forma-Estado, em nossas formações históricas, capturou tantas relações de poder, não é porque estas derivem daquela; ao contrário, é porque uma operação de ‘estatização contínua’, por sinal bastante variável de caso em caso, produziu-se na ordem pedagógica, judiciária, econômica, familial, sexual, visando a uma integração global. Em todo caso, o Estado supõe as relações de poder, longe de ser a sua fonte. O que Foucault exprime dizendo que o governo tem primazia em relação ao Estado, se entendermos por ‘governo’ o poder de afetar sob todos os aspectos (governar as crianças, as almas, os doentes uma família...)”. (Deleuze: 82-83).
A desestatização do campo de poderes instala o governo do capital fictício na formação histórica mundial. Temos, assim, uma desnacionalização das relações internacionais articuladas pelo Estado-nacional. Melhor ainda, alcançamos uma desnacionalização dos Estados no domínio do capitalismo subdesenvolvido neoliberal:
“De agente defensor dos interesses patrimoniais, o Estado nacional evolui para assumir o papel de intérprete dos interesses coletivos e assegurador da efetivação dos frutos de suas vitórias. Esse processo deu-se mediante a crescente participação da população organizada no controle dos centros de poder, ou seja, a democratização do poder”. (Furtado:22).
O Estado nacional de Furtado aparece como artefato político que tem como horizonte a democracia sanitária na formação social nacional. É assim para os países desenvolvidos do capitalismo social europeu com seu Estado-do-bem-estar.
O governo do capital fictício neoliberal internacional mudou a lógica no domínio da saúde. Ele transformou a saúde em mercadoria e em capital corporativo mundial privado da acumulação de capital do capital fictício. A medicina pública se torna medicina privada, medicina do capital neoliberal. A democracia sanitária é substituída por um totalitarismo sanitário do capital em busca do lucro tendo como bem econômico o corpo humano.
O governo dos corpos manifesto ou latente doentes é aquele governo do capital corporativo mundial privado como instrumento para a acumulação mundial do capital fictício neoliberal. 
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Como ocorre a desnacionalização do campo de poderes na formação social subdesenvolvida?
Na Europa, a desnacionalização é um projeto político no início. Depois, a União Europeia se torna um território econômico de acumulação do capitalismo globalizado neoliberal.  
“A União Europeia, concebida no passado como projeto político – para fazer face à suposta ameaça soviética e para enterrar as rivalidades históricas -, adquiriu um impulso considerável no plano econômico, sendo de longe a mais importante experiência de superação do Estado nacional como meio de disciplinar a convivência humana num quadro democrático”. (Furtado: 31).    
Se olhamos para a América do Sul, a desindustrialização significa a desnacionalização na história econômica subdesenvolvida. Trata-se de história econômica. A hegemonia econômica do capital fictício neoliberal é uma aliança com o capital de commodities rural em um processo de destruição da sociedade industrial urbana e do capitalismo burocrático industrial de Estado. (Thurow: 53).
O governo FHC articula a hegemonia do capital fictício neoliberal. Ele integra o Brasil nas redes cibernéticas do mercado financeiro mundial e esquece o desenvolvimento da sociedade industrial cibernética, como aponta Lester c. Thurow no início da década de 1990. (Thurow: 101, 105,41). FHC não despertou para a revolução do capitalismo cibernético globalizado do final do século XX, com a cibernética no comando do modo de produção e circulação capitalista de mercadorias. (Thurow: 29; Frank: 166).
A partir do fim da década de 1990, o campo de poderes mundial evoluirá para a forma histórica de um campo de poderes cibernético, acelerando a desnacionalização do Estado nacional, sendo este o antigo centro da grande narrativa secular da política, economia e cultura:
“O processo atual de globalização a que assistimos desarticula a ação sincrônica dessas forças que garantiram no passado o dinamismo dos sistemas econômicos nacionais. Quanto mais as empresas se globalizam, mais escapam da ação reguladora do Estado, mais tendem a se apoiar nos mercados externos para crescer. Ao mesmo tempo, as iniciativas dos empresários tendem a fugir do controle das instâncias políticas. Voltamos assim ao modelo de capitalismo original, cuja dinâmica se baseava nas exportações e novos investimentos no estrangeiro.”
“Em suma, o tripé que sustentou o sistema de poder dos Estados nacionais está evidentemente abalado, em prejuízo das massas trabalhadoras organizadas e em proveito das empresas que controlam as inovações tecnológicas. Já não existe o equilíbrio garantido no passado pela ação reguladora do poder público. Disso resulta a baixa da participação dos assalariados na renda nacional de todos os países, independentemente das taxas de crescimento”. (Furtado: 29).
A desnacionalização da formação social capitalista trabalha na desarticulação do modelo capitalista industrial dependente, que tinha no Estado nacional uma forma econômica estratégica:
“Essa pouca transparência do acontecer em que estamos envolvidos reflete a intervenção de novos fatores e a mudança do peso relativo de outros, o que implica em aceleração do tempo histórico. Os sistemas econômicos nacionais com grande autonomia, submetidos a choques externos apenas ocasionais, são coisa do passado. Os mercados fundamentais – de tecnologia, de serviços financeiros, de meios de comunicação, de produtos de qualidade e mesmo de bens de consumo em geral, sem falar nas matérias-primas tradicionais – operam hoje unificados ou marcham rapidamente para a globalização”. (Furtado: 30).
Celso Furtado foi o representante intelectual do populismo econômico:
“Uma crítica do populismo econômico sistemática encontra-se no livro marxista ‘La acumulación en escala mundial’, de Samir Amin. No Brasil, o populismo econômico tem em Celso Furtado sua principal força intelectual. O nosso populismo econômico cepalino é o discurso do mestre como ersatz do discurso capitalista (...) o populismo econômico pode ser a ideologia burguesa burocrática privada e/ou de Estado, enfim de um capitalismo burocrático de Estado”. (Bandeira da Silveira: 59).
O livro “O capitalismo global´” significa uma ruptura de Celso Furtado com o populismo econômico cepalino. Já é um livro do capitalismo do século XXI:
“As economias latino-americanas estarão submetidas a pressões crescentes para desregular os seus mercados, o que acarretará efeitos diversos em função do grau de heterogeneidade de suas estruturas sociais. Se não conseguirem deter o processo de concentração da renda e de exclusão social, países como o Brasil e o México estarão expostos a tensões sociais que poderão conduzi-los à ingovernabilidade”. (Furtado: 32).   
O final dos governos de FHC realiza a escritura da página de Celso supracitada: a ingovernabilidade social como método de governo.  Lula aparece como a esperança de um projeto de uma nova governabilidade latino-americana democrática. Todavia, o campo dos poderes da esquerda se autodissolve como governabilidade democrática no segundo governo [petista] Dilma Rousseff.  
Dilma Rousseff representa o fim do modelo econômico do capitalismo burocrático privado e de Estado. Depois, os governos de Michel Temer e Bolsonaro se apresentam como forças dirigente de um novo modelo econômico: o do capitalismo subdesenvolvido neoliberal.
O modelo neoliberal faz a propaganda da necessidade do fim do modelo capitalista burocrático através da destruição do Estado em geral, e do aniquilamento do capitalismo burocrático industrial de Estado. Um certo totalitarismo sanitário pretende privatizar o domínio da saúde pública e, também desenvolver a exploração predatória privada da Amazônia e da educação.
Enquanto a Argentina se livrava do capitalismo neoliberal subdesenvolvido, em teoria, o modelo neoliberal penetrou profundamente na alma brasileira. Ele se tornou uma espécie de tradição brasileira obscena do presente. Nem a crise econômica da covid-19 foi capaz de abalar a dominação da narrativa do neoliberalismo no Brasil - baseada no antagonismo entre o capital subdesenvolvido e a sociedade salarial institucional.         
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Um problema a ser abordado é a reconstrução institucional gerada pelo capitalismo cibernético.
Na sociedade de comunicação de massa, a internet e suas corporações capitalistas criam o terreno da reconstrução da percepção institucional midiática que desnacionalizam os povos como narrativa social e histórica..
Há grandes corporações cibernéticas no processo de produção do capitalismo globalizado que se localizam nos países desenvolvidos. Há corporações cibernéticas na internet nos países subdesenvolvidos. Estas mantêm um espaço imaginário, simbólico e real que transforma a relação de produção de ideia e de opinião na sociedade de massas do cyberspace. O cibernauta é o novo sujeito de um saber anarco-empirista avesso à narrativa nacional e à ciência gramatical da economia.  
A desterritorialização do nacional é algo visível nessa nova história do campo dos sujeitos que acaba por influenciar os mass media no empreendimento de desnacionalização da sociedade e do Estado.
O multiculturalismo põe e repõe suas forças sociais (mulher, negro, LGBT) no lugar das forças nacionais como o proletariado nacional, a classe média nacional e a intelligentsia nacional.
Na política, a cibernetização parece ser um terreno vantajoso para o campo da direita neoliberal no Brasil de hoje e na Argentina de ontem. O desastroso governo Macri anulou a vantagem comparativa que o cyberspace lhe presenteara.
A volta do peronismo governamental se encontra em antagonismo com o cyberspace anarco-empirista?
A política positiva governamental de Alberto Fernandes contra a pandemia covid-19 parece abrir uma janela para a Argentina pensar em se alinhar às grandes forças da reconstrução institucional do capitalismo cibernético globalizado.
A reconstrução institucional argentina é o maior desafio da política da América do Sul. Temos um país que pode vir a pertencer ao campo de poderes/saberes do capitalismo globalizado cibernético como relações sociais de produção:
“Independente das mudanças na configuração da estrutura do poder político mundial, deve prosseguir a realocação de atividades produtivas pelo impacto das novas técnicas de comunicação e tratamento da informação, o que tende a concentrar em áreas privilegiadas do mundo desenvolvido as atividades criativas, inovadoras ou simplesmente aquelas que são instrumento de poder”. (Furtado: 37).
O enorme desafio argentino consiste em vencer o fosso entre os países desenvolvidos e os países subdesenvolvidos:
“Tudo indica que prosseguirá o avanço das empresas transnacionais, graças à crescente concentração de poder financeiro e aos acordos no âmbito da Organização Mundial do Comércio sobre patentes e controle de atividade intelectual, o que contribui para aumentar o fosso entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos”. (Furtado: 37).    
O lugar do capitalismo corporativo mundial estabelece a dependência capitalista corporativa entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. (Bandeira da Silveira:135). No capitalismo globalizado cibernético, é uma força estratégica para fins de acumulação capitalista a divisão do trabalho mundial em países desenvolvidos e subdesenvolvidos:
“A atividade política internacional facilitará a abordagem dos problemas ligados ao equilíbrio ecológico, ao controle do uso de drogas, ao combate das enfermidades contagiosas, à erradicação da fome e à manutenção da paz. A esfera econômica tende a ser crescentemente dominada pelas empresas internacionalizadas, as quais balizarão o espaço a ser ocupado por atividades de âmbito local e/ou informais. A importância relativa destas últimas definirá o grau de subdesenvolvimento de cada região: áreas desenvolvidas e subdesenvolvidas estarão assim estruturalmente imbricadas numa compartimentação do espaço político que cristaliza as desigualdades sociais”. (Furtado: 38).
O modelo chinês é a história exitosa da passagem do subdesenvolvimento para o capitalismo desenvolvido cibernético. Trata-se de um modelo de economia mista composto pelo capitalismo corporativo privado mundial e o capitalismo corporativo de Estado cum Estado-cientista. Parece que o modelo chinês se apresenta como alternativa à hegemonia do capitalismo corporativo globalizado neoliberal.
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Com o capitalismo globalizado se consolida o mercado de bens manufaturados entre as grandes corporações do capitalismo corporativo mundial público e privado. Se trata da desterritorialização do mercado nacional como força prática de acumulação de capital.
“É necessário não perder de vista que, no que concerne aos produtos manufaturados, as transações internacionais são, via de regra, constituídas por operações internas às grandes firmas no regime de preços administrados”. (Furtado: 43).
A hegemonia da corporação capitalista americana abriu o terreno para a instalação do capitalismo corporativo mundial:
“O Canadá e a Europa figuraram com destaque, tanto no grau de envolvimento dos Estados Unidos, quanto na taxa de crescimento até 1929. A partir dessa época, porém, as taxas de crescimento mais elevadas apareceram na Oceania e na América Latina. Por volta de 1950, mesmo locais mais remotos, principalmente na Ásia e na África, estavam começando a tornar-se mais atraentes para as empresas americanas. Em 1960, essas áreas remotas já lideravam os termos de crescimento do número de subsidiárias manufatureiras”. (Vernon: 65).
O modelo exportador muda de natureza como o capitalismo corporativo mundial (CCM), pois, ele é exportação entre empresas e não entre nações. O mercado do CCM no comando da acumulação ampliada de capital desenha a fronteira econômica entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos a partir da relação dos países com o CCM.
“Os sistemas econômicos de grandes dimensões territoriais e acentuadas disparidades regionais e estruturais – Brasil, Índia e China aparecem em primeiro plano – dificilmente sobreviverão se perdem a força coesiva gerada pela expansão do mercado interno. Nesses casos, por mais importante que seja a inserção internacional, esta não é suficiente para dinamizar o sistema econômico. Num mundo dominado por empresas transnacionais, esses sistemas heterogêneos somente sobrevivem e crescem por uma vontade política apoiada em um projeto com raízes históricas”. (Furtado: 44)>
  Os países do BRIC perseguiram futuros econômicos que os colocaram no capitalismo corporativo mundial (China) ou no capitalismo subdesenvolvido neoliberal (CSN) como o Brasil). Macri procurou e fracassou, espetacularmente, ao tentar pôr a Argentina no CSN.
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O mercado interno não é mais a força prática econômica de desenvolvimento do capitalismo industrial em países subdesenvolvidos?
Celso diz: “E, também, explica que, no estudo do desenvolvimento, o ponto focal dominante haja sido a lógica da acumulação”. (Furtado: 47).
O mercado interno foi expropriado de sua posição dominante de acumulação capitalista e reprodução ampliada e capital na época do capitalismo globalizado cibernético. O mercado de bens de consumo cibernéticos de ponta se realiza em sociedades desenvolvidas que exclui as classes baixas. Nas sociedades subdesenvolvidas, o consumo de bens cibernéticos de ponta divide o país entre classes baixas de consumidores e classe altas.  A desigualdade cibernética é um fenômeno econômico que atravessa tanto os países desenvolvidos como, principalmente, os subdesenvolvidos.
Antes da teoria da globalização capitalista cibernética, Celso esclareceu a tragédia do subdesenvolvimento para países como Brasil e China:
“A teoria do subdesenvolvimento traduz a tomada de consciência das limitações impostas ao mundo periférico pela divisão internacional do trabalho que se estabeleceu com a difusão da civilização industrial. O primeiro passo consistiu em perceber que os principais obstáculos à passagem da simples <modernização> mimética ao desenvolvimento propriamente dito cimentavam-se na esfera social. O avanço na acumulação nem sempre produziu transformações nas estruturas sociais capazes de modificar significativamente a distribuição da renda e da destinação do novo excedente. A acumulação, que nas economias cêntricas havia levado à escassez de mão-de-obra, criando as condições para que emergissem pressões sociais que conduziram à elevação dos salários reais e à homogeneização social, produziu nas regiões periféricas efeitos totalmente diversos: engendrou a marginalização social e reforçou as estruturas tradicionais de dominação ou as substituis por outras similares. Em verdade, a acumulação periférica esteve de preferência a serviço da internacionalização dos mercados que acompanhou a difusão da civilização internacional”. (Furtado: 48).
A China superou o destino do subdesenvolvimento criando um modelo de economia mista com Estado-cientista cibernético natural. Celso define o modelo chinês parcialmente:
<Coletivização dos meios de produção>. esse primeiro projeto baseou-se no controle coletivo das atividades O mercado interno não é mais a força prática econômica de desenvolvimento do capitalismo industrial em países subdesenvolvidos econômicas de maior peso., fosse em nível das unidades produtivas (autogestão), fosse em nível nacional (planificação centralizada0, ou ainda na forma de combinação desses dois padrões de organização coletiva do sistema econômico”, (Furtado:50).
A elite chinesa criou o modelo econômico de capitalismo misto (público e privado internacional) na sintetização dialética prática e objetiva maoísta de capitalismo com planificação.
A crise do capitalismo globalizado cibernético neoliberal nos lançara nos braços da economia mista?

BANDEIRA DA Silveira, José Paulo. Capitalismo corporativo mundial. RJ: papel & Virtual, 2002
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje. Lisboa: Chiado Books, 2019
DELEUZE. Gilles. Foucault. Paris: Minuit, 1986
FRANK, André Gunder. Acumulação dependente e subdesenvolvimento. SP: Brasiliense, 1980
FURTADO, Celso. O capitalismo global. RJ; Paz e Terra, 1998
THUROW, Lester C. A construção da riqueza. RJ: Rocco, 2001
VERNOM, Raymond. Soberania ameaçada. A expansão multinacional das empresas americanas. SP: Novos Umbrais, 1978