segunda-feira, 27 de abril de 2020

CESARISMO AMERICANO


José Paulo



Gramsci estabeleceu o cesarismo como fenômeno político da história ocidental antiga e moderna:
“O cesarismo é progressista quando sua intervenção ajuda a força progressista a triunfar, ainda que com certos compromissos e acomodações que limitam  a vitória; é regressivo quando sua intervenção ajuda a força regressiva a triunfar, também neste caso com certos compromissos e limitações, os quais, no entanto, têm um valor, um alcance e um significado diversos daqueles do caso anterior. César e Napoleão I são exemplos de cesarismo progressista. Napoleão III e Bismarck, de cesarismo regressivo. Trata-se de ver se, na dialética revolução-restauração, é o elemento revolução ou o elemento restauração que predomina, já que é certo que, no movimento histórico, jamais se volta atrás e não existem restauração <in toto>. (Gramsci: 77).
O cesarismo americano é o horizonte teórico do século XXI? Como o cesarismo de Napoleão III (bonapartismo em Marx), o cesarismo de um Donald Trump se anuncia, no dia-a-dia da política, como a destruição da democracia?
O cesarismo americano é progressivo (revolução) ou regressivo (restauração)?
O bonapartismo foi a forma política autoritária da passagem do capitalismo neoliberal para o capitalismo neomercantilista? O bonapartismo significou uma revolução econômica progressista na Europa?
O cesarismo americano desponta como uma forma política de destruição da centenária democracia americana. O povo norte-americano cansou da política da burguesia republicana e democrata que possuem o monopólio da política nacional e local?
O cesarismo americano é a solução possível para a dupla crise - crise sanitária e crise econômica?     
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O cesarismo moderno faz pendant com a história europeia dos campos de poderes/saberes econômicos. Três campos de poderes iluminam a relação da forma política cesarista com as formas econômicas.
O capitalismo mercantilista tem seu próprio campo de poderes, assim como o capitalismo neoliberal e o capitalismo neomercantilista.  Me detenho no lugar do pobre neles.
Harold Laski resume a relação da economia mercantilista com o pobre:
“A recomendação de suas ideias políticas consiste, simplesmente, no fato delas contribuírem para a riqueza e o lastreamento do reino.  A novidade que apresentam é o franco utilitarismo que as informa, a aceitação da ideia de abundância como ideal social auto-suficiente. Isso transparece, sobretudo, na atitude que assumiram em relação ao pobre. Não será exagerado dizer, penso eu, que consideravam os desempregados como criminosos sociais; eram indivíduos que subtraíram uma riqueza colocada ao alcance de todos. Foi esse o espírito da Lei dos Pobres elisabetana e, é evidente, nas medidas repressivas contra eles recomendadas por Laffemas. Todo o espírito do esforço desenvolvido por esses ideólogos orientado no sentido de levar o povo a trabalhar”. (Laski: 44).

Descrevendo a legislação despótica inglesa contra o pobre, Marx resumiu:
“Os que foram expulsos de suas terras com a dissolução das vassalagens feudais e com a expropriação intermitente e violenta, esse proletariado sem direitos, não podiam ser absorvidos pela manufatura nascente com a mesma rapidez com que se tornavam disponíveis. Bruscamente arrancados das suas condições habituais de existência, não podiam enquadrar-se, da noite para o dia, na disciplina exigida pela nova situação. Muitos se transformaram em mendigos, ladrões, vagabundos, em parte por inclinação, mas na maioria dos casos por força das circunstâncias. Daí ter surgido em toda a Europa ocidental, no fim do século XV e no decurso do XVI uma legislação sanguinária contra a vadiagem. Os ancestrais da classe trabalhadora atual foram punidos inicialmente por se transformarem em vagabundos e indigentes, transformação que lhes era imposta. A legislação os tratava como pessoas que escolhem propositadamente o caminho do crime, como se dependesse da vontade deles prosseguirem trabalhando nas velhas condições que não mais existiam”. (Marx.1996, v. 2: 851).  
O capitalismo liberal refaz a posição do pobre no campo de poderes/saberes econômico-político? O pobre assume a posição de proletariado industrial e exército industrial de reserva.
Como capitalismo privado no comando da economia, política e ideologia, o capitalismo liberal se caracteriza peLa não intervenção do político no econômico. (Poulantzas: 147). O modo de produção capitalista do capitalismo privado se caracteriza por um Estado não-intervencinista. (Poulantzas: 146).
Ao contrário, se observamos o campo de poderes econômico estatizado pela posição do pobre, há um certo intervencionismo do político no econômico, como demonstra Foucault.
O campo de poderes é movido por estratégias e táticas. A <noso-política> é uma estratégia global que combina medicina privada, medicina liberal, e medicina socializada, medicina pública. (Foucault. 1994. V. 3: 14, 13).
O pobre doente requer um Estado intervencionista no campo de poderes/saberes econômico:
“Se dessine ainsi toute une décomposition  utilitaire de la pauvreté, où commence à apparaître le problème spécifique de la maladie des pauvres dans son rapport avec les impératifs de travail et la nécessité de la production.
Mais il faut noter aussi un autre processus, plus général que celui-là, et qui n’en est pas le simple développement. C’est l’apparition  de la santé et du bien-être physique de la population en général  comme l’un des objectifs essentiels du pouvoir politique. (Foucault. 1004. V. 3: 16).
Além do lugar do pobre, o capitalismo liberal se apresenta como uma revolução na esfera teológica que esteve no comando da vida social, inclusive na Reforma protestante. O capitalismo liberal transforma a teologia em um artefato ideológico, assim como a filosofia e o direito, e o discurso político:
“ Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim”. (Marx. 1974: 136).  
No capitalismo neoliberal, a consciência desaparece como fenômeno social e, assim, temos  a esfera ideológica em colapso.        
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O cesarismo de Napoleão III é uma forma política que não se coaduna com o capitalismo neoliberal? O, ela se antecipa como forma política do capitalismo neomercantilista?
O intervencionismo é o fenômeno do campo de poderes econômico com burocratismo que suspende o capitalismo privado no comando da vida nacional, como notou Marx. (Poulantzas: 343). No início da formação do capitalismo neomercantilista, Napoleão III se alia à Inglaterra:
“Assim terminou a gloriosa guerra do ópio. Em troca da paz de 27 de agosto de 1842, os ingleses obtiveram a ilha de Hong-Kong. Além disso, os portos de Cantão, Amox, Fuchu, Nimpó e Xangai deviam ser abertos ao comércio. Quinze anos mais tarde, verificou-se a segunda guerra contra a China, mas desta vez os ingleses eram aliados dos franceses. Em 1857, a frota aliada se apoderou de Cantão, com o mesmo heroísmo que caracterizou o da 1° guerra. Constava nas cláusulas da paz de Tientsin em 1958 a livre importação do ópio e a abertura do país ao comércio e a penetração das missões no interior da China”. (Rosa: 338-339).
Com o novo capitalismo, o campo de poderes econômico sofre uma estatização intervencionista; ele se torna um campo de poderes neomercantilista mundial:
“El imperialismo, cuya expresión económica es el neo-mercantilismo, há puesto a disposicion del capitalismo (esto tiene, por el momento, sólo un sentido general) los recursos de un fuerte  poder político; el capitalismo traído a la vida por un flerte sistema de estados, llega a su vez a madurez, formando un sistema de estados igualmente fuertes. Las ideias liberais de la libre concurrencia entre las economías privadas se han mostrado inadecuadas para el capitalismo (en sus repercusiones sobre el mercado mundial). En el interior, el capitalismo se há procurado, por su própria fuerza, los médios de poder necesarios, asumiendo  el mesmo, en la mayor parte de los casos, las funciones del estado. En su relación con el extranjero no podia prescindir de estos médios de poder inedependiente, de poder de estado, y sólo por su empleo há podido llegar al engrandecimiento formidable que hoy há alcanzado”. (Sombart: 83).
Rosa fala da lógica da história econômica da gramática acabada do capitalismo neomercantilista:
“Considerada historicamente, a acumulação capitalista é uma espécie de metabolismo que se verifica entre os modos de produção capitalista e pré-capitalista. Sem as formações pré-capitalistas, a acumulação não se pode verificar, mas, ao mesmo tempo, ela consiste na desintegração e assimilação delas. Assim, pois, nem a acumulação de capital pode realizar-se sem as estruturas não-capitalistas nem estas podem sequer se manter. A condição vital da acumulação do capital é a dissolução progressiva e contínua das formações pré-capitalistas. (Rosa:363).
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A relação entre o cesarismo americano e o neoliberalismo se apresenta de forma acabada com Donald Trump. Voltaremos a isso depois.
O lugar do pobre no capitalismo neoliberal é o do não-cuidado dele pelo Estado social. O neoliberalismo destruiu o capitalismo social europeu e seu Estado do bem-estar social, voltado para cuidar da sociedade salarial. Na América do Sul, o neoliberalismo destruiu o Estado previdência periférico. Na América, o capitalismo neoliberal é a sintetização de liberalismo com mercantilismo clássico, se o olharmos pelo lugar da pobreza doente no campo de poderes econômico mundial. A pobreza doente é jogada na lata de lixo da história econômica pela dominância da medicina liberal sobre a medicina pública. Só tem direito aos cuidados médicos os que podem pagar!
O neoliberalismo é uma vontade política de extirpar qualquer intervenção do Estado em qualquer domínio da sociedade.  O campo de poderes econômico neoliberal não é uma repetição histórica do capitalismo liberal.
Na primeira metade de 2019, publiquei o livro “Gramáticas do capitalismo”. Nesse livro organizo minhas ideias sobre o capitalismo neoliberal com hegemonia americana e sobre o capitalismo neoliberal globalizado:
“Os economistas têm explicado a conjuntura econômica neoliberal sem atinar que se trata de um período no qual foi criado uma gramática monetarista neoliberal. As condições para a produção dessa gramática remetem ao sistema de Breton Woods no qual os Estados Unidos encontravam-se em condições de desenvolver seu comércio exterior e investimentos no estrangeiro nos termos da <diplomacia do dólar> – com todas as vantagens latentes em ser o banqueiro central do mundo capitalista com a vantagem de cunhagem ou ‘seignorage’”. (Bandeira da Silveira. 2019a: 75-76).   
O capitalismo neoliberal tem a sua própria cultura econômica
“A hegemonia neoliberal se baseia em algumas ideias. Uma delas é eliminar o Estado keynesiano, que se converteu em um Leviatã. E retornar ao Estado mínimo e de equilíbrio segundo a lógica do mercado, lógica natural. Outra ideia é a do Estado desenvolvimentista ineficiente, tendo como solução a privatização dos aparelhos empresariais estatais. O Estado desenvolvimentista é representado como refém econômico de burocracias autoritárias autotélicas (que cuidam apenas de seus interesses e dos interesses das oligarquias políticas) ou dos interesses dos feudos econômico-financeiros. O Estado aparece como ineficiente em suas funções de gestor, planejador, investidor, empresário, regulador, promotor, banqueiro e benfeitor”. (Bandeira da Silveira. 2019a: 76-77).
O neoliberalismo é a crítica prática e objetiva demolidora do capitalismo burocrático de Estado dos países subdesenvolvidos, com sociedade industrial dependentes e associadas com as transnacionais.  Tal crítica nos leva para o amago da cultura econômica neoliberal subdesenvolvida e além:
“O capitalismo industrial em colapso da década de 1980 vê a passagem da cultura econômica neokeynesiana para a cultura econômica monetarista neoliberal, que chega até aos dias atuais como arma ideológica do rico contra a sociedade salarial e aposentados. A cultura econômica monetarista faz pendant com a ditadura monetarista neoliberal (no campo de poderes econômico nacional) que aparece nitidamente na Reunião de Ottawa do G7 (Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Itália, Alemanha Ocidental, Canadá, Japão): ‘Devemos despertar em nossos povos uma maior apreciação da necessidade de mudança nas expectativas  a respeito de crescimento e dos lucros, mudança na administração e nas relações e práticas trabalhistas’”. (Bandeira da Silveira. 2019a: 77-78).
O resultado do capitalismo neoliberal é transformar o mundo do trabalho em uma esfera sem direito trabalhista, e lugar do trabalho pauperizado.
A ditadura monetarista do capitalismo globalizado neoliberal é uma forma econômica no campo de poderes capitalista mundial que faz pendant com a forma política cesarismo americano?  
A China aparece como líder do combate à pandemia da covid19. Nos Estados Unidos, republicanos e democratas falam de uma planificação capitalista. Há estados americanos voltados para a criação de uma medicina pública, como aquela do Estado-cientista chinês natural:
“Na terceira década do século XXI, a China continuará a exportação do capital chinês como comércio de mercadorias. Trata-se de uma etapa do neocolonialismo chinês superficial que antecipa a internacionalização neomercantilista profunda do capital cyber chinês no espaço econômico da internet das coisas. Há um sistema neomercantilista de Estados fortes na sociedade industrial asiática cyber que se expandirá na primeira metade do século XXI”. (Bandeira da Silveira. 1919a: 87).
A crise do capitalismo globalizado põe em risco a hegemonia do capitalismo neomercantilista asiático?
A relação Ocidente/Oriente se alterará irrevogavelmente no capitalismo neomercantilista:
“No Ocidente, o capitalismo financeiro assume o comando da reprodução ampliada de capital e acumulação capitalista. No Oriente asiático, ergue-se um sistema neomercantilista de Estados-nação de uma sociedade industrial asiática, na época cyber. O imperialismo se dissolve no ar como significante da economia política. E permanece a essência do capitalismo monopolista, a saber: de ser uma linguagem econômica mista, isto é, capital privado em aliança com o capital público. No entanto, a ideologia neoliberal fala da necessidade do fim da linguagem econômica mista”. (Bandeira da Silveira. 2019b: 42).
A linguagem chinesa é aquela linguagem mista da combinação do capitalismo corporativo mundial privado com o capitalismo corporativo de Estado cum Estado cibernético, natural.
A propósito, qual o lugar do pobre no capitalismo neoliberal globalizado? A destruição do capitalismo socialdemocrata europeu lança o proletariado para as paupérrimas classes baixas. Nos Estados Unidos, o pobre doente é tratado como dejeto humano. No subdesenvolvimento neoliberal, o proletariado é transformado em uma massa paupérrima:
“O pauperismo é uma condição da gramática do capitalismo subdesenvolvido pós-moderno. O subcapitalismo (ersatz de capitalismo) é o capitalismo sem acumulação de capital (Baran: 139), capitalismo sem capitalismo tout court “. (Bandeira da Silveira. 2019b: 46).
O pobre no subdesenvolvimento capitalista neoliberal é tratado como substâncias de esgoto a céu aberto:  
“A metabolização da gramática dominante atual pelos sujeitos depende do funcionamento dos dispositivos empresariais de poder como os mass media. Estes fazem girar o discurso do mestre <imperialismo neoliberal do americanismo> na realidade objetiva <capitalismo subdesenvolvido pós-moderno>. Habitando a junção do campo dos sujeitos com o campo dos poderes/saberes, intelectuais neoliberais do americanismo nativo (economistas, jornalistas, cientistas políticos, historiadores, psicólogos, políticos) criam e recriam a narrativa econômica como atualização do discurso do maître. Este funciona como uma máquina de guerra narrativa alimentada por ideias criminosas contra a existência da Nação, do Estado nacional e população paupérrima, a ser descartada”. (Bandeira da Silveira. 2019b: 53).
Donald Trump fez pouco caso da covid19, e se comporta como Bolsonaro, um tiranete da América do Sul do capitalismo subdesenvolvido neoliberal:
“Ideias criminosas nada tem a ver com a definição e/ou prática da política ocidental. Elas definem a tirania que já não é política tout court. A tirania é percebida como tal ´pelos sujeitos? E, se é assim, há no campo dos sujeitos o <amor à tirania>? A tirania pode funcionar em um campo de sujeitos em junção com o campo de poderes de uma formação social democrática liberal?”. (Bandeira da Silveira. 2019b: 53).
A tirania bolsonarista de um Donald é a antessala do cesarismo americano regressivo. Pois, é regressivo por se prender a permanência do capitalismo neoliberal (sua restauração depois da covid19) em uma época de planificação capitalista, de economia mista, de Estado-cientista no comando da vida nacional e planetária, humanitária.
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramáticas do capitalismo. Lisboa: Chiados Book, 2019a
Bandeira da Silveira, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje. Lisboa: Chiado Book, 2019b
Foucault, Michel. Dits et écrits. V. 3. Paris: Gallimard, 1994
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. RJ: Civilização Brasileira, 2014
LASKI, Harold J. O liberalismo europeu. SP: Mestre Jou, 1973 
MARX. Os Pensadores. SP: Abril Cultural, 1974
MARX. O capital. Livro 1, v. 2. RJ: Bertrand Brasil, 1996
POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. SP: Martins Fontes,1977
ROSA LUXEMBURGO. A acumulação do capital. RJ: Zahar Editores, 1970   
SOMBART, Werner. El apogeo del capitalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1984

        
 
  



   

 



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