segunda-feira, 8 de junho de 2020

BRASIL – transição inacabada para a democracia


José Paulo



A política em 2020 põe e repõe um problema que não quer calar. Falo da <transição inacabada para a democracia>.
Estabelecer o problema, nomear toda a dramaticidade da política na terceira década do século XXI requer recorrer à história como método de interpretação da política em junção com a cultura econômica.  
A crise fabricada da democracia encontra seu intérprete na antropologia política. Esta eleva o Exército ao papel de partido político, que quer, novamente, governar o Brasil. O Exército é apresentado como o sujeito antropológico que deseja fundar um novo Estado militar.
Na antropologia em tela, Bolsonaro aparece como um instrumento político (de uma estratégia militar do caos) do planejamento militar visando adquirir legitimidade para mais uma intervenção militar na política.
Entre o homem (Jair) e a instituição (Exército), a política antropológica faz do homem um efeito institucional. Aí, temos uma versão institucional da história política. Entre nós, a interpretação institucionalista da política é quase como uma percepção natural da vida nacional.
O militarismo republicano é um fenômeno da história da América Latina, como diz Hegel no seu magnífico livro  “Filosofia da história”:
“Vemos a prosperidade da América do Norte, graças ao desenvolvimento da indústria e da população, à ordem civil e a uma firme liberdade; toda a confederação constitui apenas um Estado e tem os seus centros políticos. Ao contrário, na América do Sul, as repúblicas repousam somente no poder militar, toda a sua história é uma revolução constante: estados confederados separam-se; outros, que estavam separados, unem-se de novo, e todas essas mudanças são operadas por revoluções militares”. (Hegel: 76). 
 O desenvolvimento do poder civil e da sociedade civil fazendo pendant com o capitalismo industrial define os Estados Unidos em um contraponto com o desenvolvimento do poder militar hegemônico na América do Sul.
 No final do século XIX, o Brasil monárquico se latino-americanizou no sentido de Hegel. Uma escola de militarismo derrubou a monarquia e instalou uma república na qual o militarismo político viverá como tradição republicana, até a terceira década do século XXI. Trata-se de uma rica, deslumbrante, aventureira, história de revoluções militares e intervenção militar na política nacional e nos regimes democráticos.
Diante da confusão gerada no campo da representação pelo governo Bolsonaro, uma interpretação da nossa história se faz urgente, pois, a filosofia paulista, por ingenuidade ou interesses obscuros, quer reduzir a política ao agir sentimental de um só homem: Bolsonaro.
Contra a mistificação e o fetichismo da política atual, a política deve ser interpretada pela ação e condensação do passado no presente e do agir presente sobre o futuro.   
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A condensação e o agir do passado no presente é exatamente a transição inacabada do regime autoritário para o regime democrático 1988.  O corte no fluxo político 1988 tem como fato a história econômica globalizada. Este fluxo exige uma nova interpretação da política gramaticalizada pela Constituição 1988. A gramática da Constituição em tela não definiu virtualmente a política determinada pelo capitalismo globalizado corporativo cibernético comunicacional.
Na década de 1990, Octavio Ianni pontificou sobre o corte do fluxo supracitado:
“No conjunto, no entanto, se tomarmos em conta a globalização do capitalismo e a nova divisão transnacional do trabalho, tanto ocorrem intercâmbios e acomodações como se revelam excedentes mais ou menos notáveis de força de trabalho. Na época da globalização do capitalismo, decisivamente dinamizada pela microeletrônica, automação, robótica, telecomunicações, informática e outras tecnologias eletrônicas, tem ocorrido uma intensa e generalizada tecnificação do processo de trabalho e superpopulação absoluta, e não apenas relativa”. (Ianni: 1980.
Se na década de 1990 a sociedade brasileira já estava ao par do corte do fluxo no regime político 1988, então, por que o mundo intelectual não tomou consciência dessa faceta da nossa história?
O capitalismo corporativo industrial mundial (CCIM) é o corte no fluxo da história econômica mundial. (Bandeira da Silveira. 2002: 135). O capitalismo corporativo industrial cibernético da comunicação é a vanguarda do CCIM. O Príncipe cibernético substituirá o Príncipe eletrônico (Ianni) como corte no fluxo da política hegemônica brasileira, nos dias de hoje.
O Príncipe cibernético é um fenômeno da sociedade civil corporativa industrial da comunicação em junção com a velha sociedade política. Trata-se da história econômica do capitalismo determinando, em última análise, a política nacional.
É preciso pensar uma transição para a democracia a partir dos cortes de fluxo supracitados. Trata-se da produção da contemporaneidade tout court. Todavia, o presente é, também, condensação do passado.
Jair Bolsonaro e família são condensação do passado em 2020? O clã de Bolsonaro pilota o Príncipe cibernético nacional, com já mostrei em outros textos. Portanto, este é o ponto de partida para se pensar a encruzilhada política de hoje.
A biografia de Bolsonaro (e de seus filhos) é material iluminador da história política da terceira década do século atual?
Bolsonaro é uma sintetização da escola de revolução militar com décadas de política no baixo clero da oligarquia parlamentar. Ele tem uma parte de sua biografia ligada aos porões da economia da milícia carioca. Aí, entram seus filhos nessa história local. Ao menos o filho Flavio tem ligações orgânicas com a economia da milícia. E seu filho Carlos é um vereador eleito, talvez, pela comunidade miliciana. Junto com Carlos, o filho Eduardo é apresentado como envolvido com o <gabinete de guerra cibernético> do Palácio da Alvorada (<gabinete do ódio>).
A política atual é uma sintetização de revolucionarismo militar do republicanismo autoritário, com política do baixo clero (Centrão hegemônico no parlamento bolsonarista), mais método político miliciano/mafioso; tudo isso sob comando do Príncipe cibernético infame em luta contra o Príncipe eletrônico representado pela TV Globo.
Bolsonaro usa a tática do caos nosso de cada dia para aturdir inimigos e a sociedade brasileira. Porém, há razão na nossa história da década de 2020 apesar das loucuras de governo.
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O revolucionarismo militar é uma tradição política do nosso republicanismo. Os dois primeiros governos republicanos se parecem com uma ditadura militarista. Depois, a República Velha foi um cenário político do Tenentismo (movimento político rebelde da oficialidade do Exército) - que corroeu o regime democrático limitado.
 O Tenentismo esteve presente na Revolução 1930 e na ditadura de Getúlio. Ele militarizou PCB e foi uma força da rebelião comunista 1935. Ele também impulsionou e legitimou o fascismo de generais associados ao Getúlio no Estado Novo. Um desses generais de Getúlio se tornou o primeiro presidente da democracia populista derrubada por militares em 1964. 
Durante mais de 20 anos, os generais governaram o Brasil. Um corte no fluxo do militarismo republicano está associado à história do regime econômico industrial corporativo, que começa com Getúlio em 1950.
A ditadura militar foi o instrumento político de um modelo econômico sob hegemonia do capitalismo industrial corporativo das multinacionais ou transnacionais, na narrativa de Celso Furtado. A Constituição 1988 é a gramática da era da hegemonia em colapso do modelo econômico supracitado. A Constituição não teve como romper com todo o entulho autoritário virtual da política determinada pela história econômica da hegemonia corporativa industrial das multinacionais.
O Artigo 142 é um significante jurídico do pensamento republicano autoritário (o presidente no comando da vida política de uma certa ordem presidencialista absolutista). Ele foi escrito pelo constituinte FHC em conversação com o general-ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves. Um certo consenso republicano autoritário mostra o limite da transição para a democracia inscrita na gramática da Constituição 1988.
O governo Sarney gerou uma atmosfera política de tutela militar dos constituintes. Sarney aparece, então, como o campeão de um republicanismo autoritário oligárquico. Trata-se de um governo que pôs a república contra a democracia. 
   O Artigo 142 define a forma de transição inacabada para a democracia
Artigo 142. As Forças Armadas constituídas pela Marinha, Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República; e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Qualquer criança de 10 anos lê que as Forças Armadas têm o direito de desfechar um golpe de Estado presidencialista, como quer Bolsonaro.
A facção de constituinte da tradição do republicanismo autoritário inscreveu na gramática da Constituição 1988 o autoritarismo como método de golpe de Estado presidencialista contra a Democracia 1988. Assim, temos uma transição para a democracia inacabada. Bolsonaro e um jurista menor levantaram a lebre em tela.  
Bolsonaro evoca o artigo 142 para transformar a forma de governo. Trata-se de substituir o presidencialismo de coalizão presidente/parlamento por uma forma de governo presidencialismo militar/policial. Tal estratégia está falindo o contexto da política nacional atual.
Se olharmos a política como governo dos campos de poderes/saberes. Após a Segunda Guerra Mundial, a política tomou um rumo e sentido com o governo do campo de poderes populista-democrático. Este campo acumulava e desenvolvia contradições econômicas que o destrói. A hegemonia econômica era disputada por um capitalismo social desenvolvimentista e um capitalismo corporativo das multinacionais.
O campo de poderes que substitui o campo populista é o governo autoritário do capitalismo corporativo multinacional em aliança com um capitalismo burocrático de Estado, tendo como instrumento político a ditadura militar.
 A substituição da ditadura pelo regime democrático 1988 se deve à crise econômica estrutural do campo corporativista multinacional autoritário. Na transição da ditadura para a democracia, a política nacional vive como se possuísse uma autonomia absoluta em relação à história econômica em colapso, cujo signo maior é a desindustrialização corporativa.  
Os governos de FHC se caracterizam por tentar produzir um campo de poderes adaptado à história econômica em atraso em relação ao desenvolvimento do capitalismo corporativo globalizado cibernético. FHC vive a ilusão de criar um campo de poderes xifópago com alternância de poder entre PSDB e PT.
Lula no poder político significa a vontade política de criar um campo de poderes/saberes da esquerda. A sociedade corporativa industrial multinacional em colapso retira o terreno material do projeto lulista/petista.
Com o colapso do campo da esquerda, ergue-se um campo da direita no poder político sob a hegemonia da extrema-direita neoliberal com laivos fascistóides. O projeto desse campo é mergulhar o Brasil em um a história econômica do subdesenvolvimento neoliberal.   
A substituição do governo do campo da esquerda por um governo do campo da direita do subdesenvolvimento neoliberal entra em crise agônica com a pandemia da covid-19.
O campo da direita no poder político queria fazer do Brasil um polo de acumulação capitalista do capitalismo corporativo industrial cibernético da comunicação. Dessa história econômica surge o Príncipe cibernético infame pilotado pela família de Bolsonaro. A covid-19 pôs em colapso o governo desse Príncipe cibernético.
A política da família de Bolsonaro aparece como destruição do governo do campo da direita em si. Daí, o <bolsonarismo sem Bolsonaro> aparecer como uma ideia brilhante para salvar o campo da direita no poder político.
Derrubar Jair e o substituir pelo general Mourão é a estratégia de salvação do campo da direita. Em uma aliança com os intelectuais paulistas, a TV Globo se reúne em torno do Príncipe eletrônico como salvadores da pátria do campo da direita.
Usar o campo da direita como trampolim para o retrógado exercício do poder político pelo Príncipe eletrônico, eis uma ideia extemporânea que reúne em um mesmo barco FHC (PSDB), Marina Silva (Rede) e Ciro Gomes (PDT) em um antagonismo crescente com o PT lulista.   
A sociedade capitalista corporativa industrial da comunicação é um corte no fluxo histórico da política brasileira como ponto de não-retorno. A política do atraso da coalizão paulista mais TV Globo se define, também, por não pensar um modelo econômico utópico pós-pandemia. Evocar a política desenvolvimentista do capitalismo burocrático, eis o atraso como solução para a salvação do campo da direita.
Há projetos no parlamento para tosar a hegemonia da sociedade corporativa industrial de comunicação, se espelhando na luta de Donald Trump com a hegemonia do Príncipe industrial cibernético. Trata-se de ideias e lutas de uma política do atraso.
A pandemia da covid-19 desenvolve a hegemonia do Príncipe cibernético da comunicação no Ocidente e Oriente. Um fenômeno associado à hegemonia em tela é o Estado-cientista cibernético, natural, cuja forma acabada encontra-se na China.         
 O Príncipe cibernético com Estado-cientista se constitui como a força prática do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas na terceira década desse século.
O governo do campo de poderes/saberes da política nacional dos grandes países ou é um governo do campo de poderes cibernético industrial da comunicação ou é o governo do atraso, como esse governo do Príncipe eletrônico que levanta em uma coalizão reacionária sob comando do general Mourão.
Somente o atraso intelectual da nossa formação cultural impede que surja uma força política prática que crie uma alternativa ao campo da direita em colapso.
Na vanguarda do atraso, FHC e Ciro Gomes se deixam levar pela estratégia do Grupo Globo em um confronto agônico com Bolsonaro. Convencer o parlamento e o poder judiciário aparece como uma tarefa muito difícil para a política extemporânea do atraso.
O general Mourão não é Michel Temer. Ele é o vice de Tancredo, o Sarney. Com a morte de Tancredo, antes de assumir a presidência da República, um pequeno grupo de políticos com o general Leônidas decidiu, ilegalmente, que Sarney se apossaria da presidência.  A ordem legal foi mandada para as calendas gregas, pois, o que cabia era convocar uma eleição direta presidencial, sob comando do governo transitório de Ulisses Guimarães.  
 A situação supracitada se repete. Agora, Mourão é Sarney com a morte simbólica de Jair decretada pelo Príncipe eletrônico. Não obstante, as cúpulas dos poderes da república são refratárias a embarcar na aventura do governo do Príncipe eletrônico pilotado pelo general Mourão, até o próximo carnaval chegar. É um Deus nos acuda!
A crise do governo do campo da direita mostra bem a nossa elite perdida na beira do caminho. Daqui há alguns meses, o Brasil vai quebrar como história econômica e como política nacional.  
Com o passar dos dias, o desespero da nossa elite se tornará um espetáculo deprimente e aterrador na sociedade industrial corporativa da comunicação.
Então, Inês é morta!

Bandeira da Silveira, José Paulo. Capitalismo corporativo mundial. RJ: Papel & Virtual, 2002
Hegel. Filosofia da história. Brasília: UNB, 1995
IANNI, Octavio. A era do globalismo. RJ: Civilização Brasileira, 1996