quarta-feira, 20 de novembro de 2019

PODER GRAMATICAL NARRATIVO e hegemonia


José Paulo



A categoria de hegemonia vai sendo ab-rogada do vocabulário da narrativa política. Esse ensaio é uma tentativa de restaurá-la como narrativa da política ocidental.
A democracia ocidental significa transferência do poder do povo para o governante hegemônico. Para se conservar, a democracia necessita do povo como soberania popular de articulação da hegemonia em uma formação social nacional.
Começo com uma comparação histórica entre EE UU e Brasil:
 POVO E CIVILIZAÇÃO AMERICANA
Desde que a população foi inscrita no campo de poderes ocidental, o povo surgiu como uma categoria política. Em algumas épocas, a existência política do povo foi pensada como unidade jurídica. Assim, o direito articularia a população como povo.
Essa ideia faz pendant com a ideia de povo como unidade civilizacional?
A unidade jurídica de um povo moderno só pode ser uma unidade constituída pela Constituição: <unidade constitucional>. Tendo como motor o povo nos campos de poderes como unidade constitucional, a civilização significa a constitucionalização da população como povo.
O povo civilizacional surge pela gramaticalização da Constituição pela população como povo. A Constituição é a gramática do povo, em primeiro grau, sendo também gramática da formação social na história econômica nacional.
Nas Américas temos dois fenômenos políticos polares. Os EE UU como uma civilização americana, pois, definindo seu povo pela gramaticalização da Constituição, de duzentos anos aproximadamente.
O amor à Constituição é o fato que define a diferença entre os Estados Unidos e o Brasil. Pode-se falar seguramente em povo norte-americano como unidade civilizacional constitucional, mas não se pode falar de povo brasileiro. No Brasil, não existe o amor à gramática constitucional.
O Brasil se caracteriza por destruição das Constituições na República e pela destruição da Constituição da soberania popular de 1823 por d. Pedro I. A Constituição outorgada 1824 de d. Pedro I não se constitui como a gramática (discurso virtual) de transformação da população em povo. A Constituição 1824 foi a Constituição do escravismo colonial.
A dominação do modo de produção escravista na história econômica do Brasil independente bloqueou a formação do povo brasileiro. Depois na República, a destruição contínua das Constituições privou a população de uma gramática constitucional que a transforma-se em um povo (sujeito político gramatical) - habitando campos de poderes.
Rigorosamente, não se pode falar de civilização brasileira como se pode falar de civilização americana, para os Estados Unidos.
A Constituição 1988 poderia ser o ponto-de-partida da transformação da população em uma unidade civilizacional constitucional. Não obstantes, forças neoliberais em colapso querem destruir a Constituição 1988 e pôr no lugar dela uma Constituição neoliberal. Assim, a última oportunidade histórica de construção do povo brasileiro é Ab-rogada da história da formação social nacional.
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O povo é um sujeito que existe em um campo de poderes moderno nacional, em uma formação social nacional. Daí, a ideia de povo-nação, ou melhor, povo nacional. No entanto, só existe povo como sujeito gramatical em campo de poderes de uma civilização nacional, até o momento atual.
O amor à Constituição pode ser lido pela história do cristianismo como amor Dei (amor pela civitas Dei, campo da gramática da política cristã, como amor pelo discurso virtual) em um contraponto ao amor sui. Trata-se do amor do indivíduo por si, dos governantes por si, das nações sujeitas ou possuídas pela paixão (libido) de domínio ou dominação. (Voegelin: 279).
Como uma força da história ocidental, a libido narcísica define um conceito de individualidade e de indivíduo., muito explorado por Freud. Na teoria política, o egoísmo em contraponto ao altruísmo define sociedades e histórias econômicas mundiais. Em uma polarização gramatical, o Capitalismo é identificada com o egoísmo e o individualismo e o socialismo com o altruísmo e o comunitarismo. 
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Pensar a hegemonia associada à gramática é um esforço que venho fazendo já há algum tempo, usando Gramsci:
“Poder-se-ia esboçar um quadro da ‘gramática normativa’ que opera espontaneamente em toda sociedade determinada na medida em que ela tende a unificar-se, seja como território, seja como cultura, isto é, na medida em que nela existe uma camada dirigente cuja função seja reconhecida e seguida. O número das ‘gramáticas espontâneas’ ou ‘imanentes’ é incalculável; pode-se dizer, teoricamente, que cada pessoa tem sua gramática. Todavia, ao lado desta ‘desagregação’ de fato, deve-se sublinhar os movimentos unificadores, de maior ou menor amplitude, seja como área territorial, seja como ‘volume linguístico’. As ‘gramáticas normativas’ escritas tendem a abarcar todo um território nacional e todo o ‘volume linguístico’, a fim de criar um conformismo linguístico nacional unitário que, outrossim, coloca num plano mais elevado o ‘individualismo’ expressivo, já que cria um esqueleto mais robusto e homogêneo para o organismo linguístico nacional, do qual cada indivíduo é o reflexo e o intérprete”. (Gramsci: 2343).
A camada dirigente reconhecida e seguida pelo <povo> designa a classe dirigente ou classe hegemônica nacional. O povo é constituído de uma plurivocidade de gramática até o ponto sem retorno de cada indivíduo possuíndo sua própria gramática?
No domínio da fala, as gramáticas espontâneas fazendo pendant com a <sgrammaticatura> ou falta de gramática. Elas existem como buraco imaginário (Montesquieu:35) de implosão do espaço da gramática normativa escrita da sociedade nacional; implosão da possibilidade de constituição do povo nacional gramatical, motor do Estado nacional moderno como junção de sociedade civil e sociedade política.
O indivíduo é o reflexo e o intérprete da gramática nacional.  Aqui, mergulhamos no campo dos sujeitos e indivíduos. Depois, temos que pensar a gramática nacional no campo das forças históricas em uma plurivocidade de campo de poderes/saberes.
1)     O indivíduo é o reflexo da gramática. Lacan diz:” O que enuncio do próprio sujeito como sendo efeito do discurso” (Lacan. S.18: 47). O sujeito é efeito do discurso virtual constitucional ou gramática da política (Agamben:28-29). No mundo moderno, o modelo de discurso virtual é a Constituição de uma formação social nacional.
2)     Por enquanto, o indivíduo é o intérprete da gramática da formação social nacional.  
Portanto, não existem fatos sociais tout court, e sim artefatos sociais gramaticais. (Lacan. S. 18:15):
“Mais de uma coisa no mundo é passível do efeito do significante. Tudo o que está no mundo só se torna fato, propriamente, quando com ele se articula o significante. Nunca, jamais surge sujeito algum até que o fato seja dito”. (Lacan. S. 16: 65).
Os artefatos gramaticais são produzidos por quem e em qual domínio? Eles são produzidos no domínio da gramática normativa nacional capaz de articular uma plurivocidade de campo de poderes/saberes. Ou o fato gramatical (artefato) é produzido pela atividade de um povo soberano, ou o país vive sob o domínio da produção de fatos do campo das gramáticas espontâneas. Trata-se do domínio do anarco-empirismo gramatical na história política.
Se existe um povo soberano, ele produz o artefato governante hegemônico como transferência do poder popular para o príncipe. Se não existe, o governante não é o reflexo da gramática nacional e não pode ser intérprete da gramática do povo e da formação social nacional. Assim chegamos à ideia de uma república em colapso como modo de vida política. Falo da república brasileira ou argentina etc., enfim, da república na história latino-americana.
Voltando ao sujeito:
“Resta deixar claro que é realmente de sujeito que se trata, o que é corroborado pelo fato de que, na minha lógica, o sujeito se exauri ao se produzir como efeito de significante, mantendo-se distinto deste”. (Lacan. S. 19: 166).
O sujeito se <exaure> por que ele se encontra em um campo de poderes?  Se exaure no sentido de que o combate exauriu-lhe as forças. Assim, o sujeito é uma força prática de ideias em um campo hegemônico (de uma gramática nacional) movendo homens e mulheres. (Lenin:29). 

“Ser verdadeiramente reconhecido e seguido como camada dirigente”.  A narrativa é o discurso como interpretação da vida política prática:
“O discurso autêntico é aquele que retira o que diz daquilo sobre que discorre de tal maneira que, em seu discurso, a comunicação discursiva revele e, assim, torne acessível aos outros, aquilo sobre que discorre”, (Heidegger: 63)).
Lacan considera que o discurso autêntico moderno se encontra no campo freudiano:
“Se a experiencia analítica acha-se implicada, por receber seus títulos de nobreza do mito edipiano, é justamente por preservar a contundência da enunciação do oráculo e, eu diria ainda, porque a interpretação permanece sempre nesse mesmo nível. Ela só é verdadeira por suas consequências, tal como o oráculo. A interpretação não é submetida à prova de uma verdade que se decida por sim ou não, mas desencadeia a verdade como tal. Só é verdadeira na medida em que é verdadeiramente seguida”. (Lacan. S. 18: 13).  
A Classe dirigente é verdadeiramente seguida na medida em que detém o poder gramatical narrativo.
Quanto ao discurso político:
“Mas, ao entrar o discurso político -atente-se para isso – no avatar, produziu-se o advento do real, a alunissagem, aliás, sem que o filósofo que há em todos, por intermédio do jornal, se comovesse com isso, a não ser vagamente.
O que está em jogo agora é o que ajudará a extrair o real-da-estrutura: aquilo que da língua não constitui cifra, mas signo a decifrar”. (Lacan, 2003: 535).   
O discurso político é a narrativa como trabalho de decifração da língua, como extração do real da gramática (estrutura) da política. As forças decifram os signos da língua política hegemônica em um campo de poderes/saberes. A estabilidade da formação social nacional depende do trabalho de decifração do signo político como artefato gramatical. 
Como interpretação do mundo (algo como algo), a narrativa política é uma força como uma posição prévia no campo da plurivocidade de gramática, pois a gramática nacional da política é hegemônica em relação à outras gramáticas regionais e/ou locais, ou autorais:
“A interpretação de algo como algo funda-se essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a concreção da interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se compraz em se basear nisso que <está> no texto, aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião prévia, indiscutida e supostamente evidente, do intérprete. Em todo princípio de interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretação necessariamente já <põe>, ou seja, que é preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção prévia”. (Heidegger: 207).
A força narrativa é o intérprete de <algo como algo> ou mundo da formação social política, mundo como plurivocidade do campo de poderes gramatical.  
A gramática é a essência e o motor da linguagem na formação social nacional. A narração faz pendant com a gramática e opera na linguagem, e é medida no pensamento: “Talvez o mesmo movimento do pensamento na linguagem e dessa linguagem através da relação social, ou melhor, desse <relato> operando na linguagem e medido no pensamento”. (Faye: 125).
Do campo gramatical político emerge o <poder gramatical narrativo>, que é maior do que a força das armas:
“É preciso estar atento ao que é dito aqui, quando uma assembleia declara se constituir. E quando as Meditações husserlianas se obstinam na formidável tarefa de apreender o que ocorre quando se constitui um universo de objetos ao mesmo tempo em que se constitui <eu sou>. A nota burlesca, e terrível, trazida pelo deputado Guillotin no momento em que se abre, noturna, a nova jornada de 18 de junho de 1789, marca melhor do que qualquer outro signo o que há de precário na soberania. Esta retira sua força dessa situação precária: puramente soberana, privada de poder. Cercada por homens armados, desprovida da possibilidade de dar ordens, exceto a alguns porteiros. Deste 18 de junho ao 14 de julho, não se usou nenhuma força, nenhuma violência que pudesse coagir em seu nome. Aquele que ainda se diz o soberano pode declarar que ordena, os homens armados lhe são submissos.
Donde provém o poder que será mais poderoso que a força? Quando os poucos homens que falam entre setecentos outros pronunciam o <modo de se constituir>, qual é então esse poder pelo qual eles falam? (Faye:129-130).     
O poder gramatical narrativo stalinista substitui o poder gramatical do povo soberano:
“Tratar-se-á de descobrir as sequencias de discurso ou as exposições narrativas que vieram legitimar o processo de apropriação do poder por um secretariado geral que, na ausência de qualquer outra força legítima face ao partido único, tornou-se substituto do povo soberano ou, mais empiricamente, do corpo eleitoral”. (Faye: 148).
O stalinismo ou qualquer totalitarismo se sustenta não no uso da força, e sim na apropriação do poder gramatical narrativo como articulação da hegemonia de uma formação social.
O poder gramatical na política é um agir narrativo, que é, ao mesmo tempo, o sonho do relato fundamental:
“Ao contrário, é entre as malhas de seu relato fundamental que Heidegger entrevê o agir deste <> narrativo, percebido por ele em Homero”. (Faye: 194).
No Brasil, Bolsonaro persegue a produção de seu relato fundamental na tentativa de criar um partido político de sua propriedade privada familial. De um modo político rústico, Bolsonaro parece não saber que sabe que o poder gramatical narrativo é a fonte legítima do uso da violência na formação social da política.
O campo da direita no poder político não sabe que sabe, através de seus juristas, que o governo não é a fonte de produção do poder gramatical narrativo. Assim, esse campo se movimenta para destruir a Constituição socialdemocrata, na atividade parlamentar, e luta para instalar uma Assembleia Constituinte neoliberal.
Na conjuntura capitalista mundial neoliberal em colapso, as elites de poder brasileiras se esforçam para deter um poder gramatical, narrativo, neoliberal na contra-mão da história capitalista mundial.   
Na Bolívia, o partido político MAS (e Evo Morales) construiu um poder gramatical narrativo dos de baixo e indígenas. Com apoio logístico do departamento de Estado norte-americano e do Brasil, a direita boliviana procura, através de um golpe de Estado tout court destruir o poder gramatical narrativo evo-morales, e pôr no lugar dele a forma política inédita na modernidade <civitas diaboli> (cidade do Diabo), da mulher-ditadora clarificada.  

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. V. 1. Belo Horizonte: UFMG, 2002
FAYE, Jean Pierre. La raison narrative. Paris: Balland, 1990
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. V. 3. Torino: Einaudi, 1977
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópólis: VOZES, 1988
LACAN, Jacques. Outros Escritos. RJ: Jorge Zahar Editor, 2003
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 16. De um Outro ao outro. RJ: Zahar, 2008
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 18. De um discurso que não fosse semblante. RJ: Zahar, 2009
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 19  ...ou pior. RJ: Zahar, 2012
LENIN. Cuadernos filosóficos. Madrid: Editorial Ayuso, 1974
MONTESQUIEU. Grandeza e decadência dos romanos. SP: Paumape, 1995
VOEGELIN, Eric. Helenismo, Roma e cristianismo primitivo. História das ideias políticas. V. 1. SP: Realizações Editora, 2012          
       
  

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

BOLÍVIA- economia popular progressista


José Paulo

A cultura pública brasileira é gelatinosa como cultura política [e cultura econômica]. As elites têm aversão à uma cultura constitucionalista.  Nesse texto trato do poder como coerção na economia, política [e mundo da vida ou sociedade]
O poder coercitivo encontra no direito suas teorias de legitimação dele na Europa.
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O pensamento de Stirner gerou um espanto em Marx que dedicou inúmeras páginas a ele no livro “A ideologia alemã”. Stirner pensa a vida social como grau zero do poder coercitivo, do Estado e da política em sua obra “O único e sua propriedade”. Trata-se do manifesto do individualismo absolutista. (Châtelet:105).
Crítico do liberalismo político, diz que com o liberalismo da liberdade e da igualdade politicamente a tirania do rei foi substituída pela tirania da nação soberana; socialmente, as hierarquias dos estamentos foram substituídas pela hierarquia do dinheiro, e a coerção econômica ao trabalho manteve-se idêntica.
A tirania da nação soberana é um problema candente no capitalismo subdesenvolvido latino-americano, este como fator principal do processo de desintegração da sociedade nacional.  
Stirner quer uma comunidade sem direito; o direito não é senão a expressão da vontade do Estado. Condena a ciência, a técnica industrial e todas as escolas de pensamento político da modernidade. 
O cristianismo político ou neopentecostal não faz pendant com Stirner ao condenar a sociedade industrial cibernética?       
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A formação de um campo de poderes europeu no início da idade moderna faz pendant com o surgimento de uma gramática da política visível na história das ideias políticas. O poder coercitivo encontra-se no centro das teorias políticas.  
Ao poder do rei, ao poder papal (em disputa com o poder do Concílio) se acrescenta o poder popular (de populus) representativo.
O poder popular gera um direito em relação ao direito do rei. O essencial da disputa do direito político do príncipe com o direito do populus é definir quem é a autoridade soberana. Para o direito popular constitucionalista, a autoridade deve permanecer, sempre, em mãos da comunidade como um todo.  Ela detém o direito legítimo de depor seu governante se o considerar pernicioso a seus interesses. Um povo pode destituir o rei e seus descendentes de toda autoridade quando a inutilidade desse exigir tal providência, do mesmo modo que esse povo teve no início o poder de fazê-lo rei”. (Skinner: 402).
Para o direito do príncipe, a autoridade real encontra-se acima do populus e da lei. O individualismo absolutista em política significa uma teoria política subjetivista da autoridade governamental que não se submete à Constituição. Na atualidade, Bolsonaro é essa autoridade que é um querer acima da lei.  
O populus é  um fenômeno de um campo de poderes urbano nas relações jurídicas existentes entre os governantes e as repúblicas. Se o governante é considerado o principal membro da comunidade, permanece a questão de que os governantes são instituídos pelo bem do povo, e não o oposto. Portanto, todo povo deve estar acima do príncipe.  
Por outro lado, os direitos políticos originais do povo não são em momento algum cedidos quando o povo consente na formação de uma república. O direito da espada ou poder coercitivo permanece o tempo todo como propriedade do povo livre (apud populum liberum), que delega a seu príncipe a autoridade para exercê-la em seu nome. (Skinner: 400).
O grau de poder do príncipe é um problema da teoria política do populus. Esta estabelece rígidos limites ao poder dos reis. O rei não detém o direito de dispor de seu reino de um modo contrário à vontade do povo. Se o direito político significa possuir um reino como posse incondicional, este não é o <direito populus>. Neste, o príncipe é apenas uma pessoa pública que governa seu reino de forma legítima somente enquanto promove o que é mais vantajoso para o populus. Não se admite que o príncipe usufrui a mesma posses plena e ampla de seu reino como um proprietário particular em relação aos seus bens. Essa é a concepção do poder político patrimonialista.  
O direito político é uma esfera autônoma em relação ao direito privado. O campo de poderes político é regido por uma gramática que tem como objeto o sujeito político distinto do sujeito privado do direito. A separação entre público e privado se desenvolveria, e se firma,  com a história do capitalismo industrial.
A separação entre o público e o privado é parte da história da gramática do campo de poderes/saberes político moderno. Althusser diz:
“A distinção entre o público e o privado é uma distinção intrínseca ao direito burguês, e válida nos domínios (subordinados) onde o direito burguês exerce seus <poderes>. O domínio do Estado lhe escapa, pois este está <além do direito>. O Estado, que é o Estado da classe dominante, não é nem público nem privado, ele é ao contrário a condição de toda distinção entre o público e o privado”. (Althusser:  84).
O direito moderno surge como gramática na história do campo de poderes/saberes, antes do direito burguês. A estatização burguesa do campo de poderes cria essa ilusão althusseriana de que a separação entre o público e o privado se atem ao Estado burguês.
A história do capitalismo industrial desenvolve a separação e autonomia ente o campo de poderes político e o campo de poderes econômico capitalista, industrial. A estatização do campo de poderes político acaba por gerar o Estado burguês como superestrutura do campo de poderes político e superestrutura do campo de poderes econômico capitalista industrial. Assim o Estado aparece como recurso evolutivo do capitalismo industrial.
A leitura retroativa ou sobredeterminante da história dos campos de poderes põe e repõe a autonomia ente o público e o privado como um fenômeno relativo ao Estado burguês.  
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No Brasil, há separação gelatinosa entre a esfera pública e a esfera privada. As teorias políticas de elaboração do fenômeno em tela são inexpressivas. O mundo jurídico não fabrica teorias para a metabolização de uma gramática da sociedade no campo dos sujeitos sobre a separação entre público e privado. Durante os governos do PT, a falta de gramática da separação ente público e privado é a causa da corrupção criminal da política tout court.    
Uma gramática do direito da separação entre o público e o privado não se atualiza no campo de poderes como separação entre o campo de poderes político e o campo de poderes econômico. Assim, os mass media falam de uma ficção midiática que eles chamam de Mercado Financeiro. Toda a política aparece como dirigida ao Mercado Financeiro. Este é o termômetro para saber se a política está no rumo certo ou no rumo errado.    
Marx foi o primeiro autor a estabelecer a junção da Bolsa (campo de poderes econômico) com o campo de poderes político:
“Ao contrário, o incremento da dívida do Estado interessava diretamente à fração burguesa que governava e legislava através das câmaras. O déficit do Estado era precisamente o verdadeiro objeto das suas especulações e a fonte principal de seu enriquecimento. Cada ano, novo déficit. Cada quatro ou cinco anos, novo empréstimo. E cada novo empréstimo dava a aristocracia financeira nova ocasião de espoliar um Estado que, mantido artificialmente à beira da bancarrota, era obrigado a assumir compromissos com os banqueiros nas condições mais desfavoráveis. Cada novo empréstimo oferecia nova oportunidade para saquear o público que investe seus capitais em títulos do Estado, mediante operações da Bolsa em cujos segredos estavam iniciados o governo e a maioria da Câmara. Em geral, a instabilidade do crédito público e a posse dos segredos de Estado davam aos banqueiros e aos seus associados nas câmaras e no trono a possibilidade  de provocar oscilações extraordinárias e súbitas na cotação dos títulos estatais, cujo efeito tinha que ser sempre, necessariamente, a ruína de certa massa de pequenos capitalistas e o enriquecimento, fabulosamente rápido, dos grandes especuladores. De vez que o déficit do Estado correspondia ao interesse direto da fração burguesa dominante, explica-se o fato de que os gastos públicos extraordinários, feitos nos últimos anos do reinado de Luís Filipe, ascenderam em muito mais do dobro dos gastos públicos extraordinários feitos sob Napoleão”. (Marx. 1975:137).
A Bolsa é o centro do campo de poderes econômico com hegemonia no campo estatizado de poderes político (Deleuze. 1986:82) no regime de Luís Filipe. Com Napoleão I, outro era a configuração das relações do campo de poderes econômico com o campo de poderes político. A história moderna da França pode ser lida como história das relações entre os campos supracitados.   
Há uma mudança entre a história do século XIX e o Século XX? Deleuze e Guattari tentaram pensar a diferença em tela. 
A axiomatização estabelece as relações entre o campo de poderes econômico e o campo de poderes político estatizados:
“As relações diferenciais tais como são preenchidas pela mais-valia, a ausência de limites exteriores tal como é “preenchido” pela ampliação dos limites internos, a efusão de antiprodução na produção tal como é preenchida pela absorção de mais-valia, constituem os três aspectos da axiomática imanente do capitalismo. Em toda parte, a monetarização vem preencher o abismo da imanência capitalista, introduzindo, como diz Schmitt, ‘uma deformação, uma convulsão, uma explosão, em suma, um movimento de extrema violência’. Decorre disso, finalmente, uma quarta característica, que opõe a axiomática aos códigos. É que a axiomática não tem necessidade alguma de escrever em plena carne, de marcar os corpos e os órgãos, nem de fabricar nos homens uma memória. Contrariamente aos códigos, a axiomática encontra nos seus diferentes aspectos seus próprios órgãos de execução, de percepção, de memorização. A memória deveio como coisa ruim. Sobretudo, não há mais necessidade de crença, e é tão só da boca para fora que o capitalista se aflige por não se acreditar mais em nada hoje em dia. ‘Porque é assim que vocês falam: somos inteiros, reais, sem crença nem superstição; é assim que vocês garganteiam sem nem ter garganta’. A linguagem já não significa algo em que se deva acreditar, mas indica o que vai ser feito e que os astutos ou os competentes sabem descodificar, compreender por meias palavras”. (Deleuze. 1972: 301-302).    
Um campo de sujeitos sem memória, sem narrativa capitalista faz pendant com o campo de poderes neoliberal em colapso do capitalismo globalizado. As gramáticas do capitalismo ou desenvolvido avançado cibernético ou subdesenvolvido cibernético ou subdesenvolvido com desencaixe cibernético restituem, no campo dos sujeitos, a memória capitalista que começou a ser construída na narrativa da <crítica da economia política>.  
Com as gramáticas do capitalismo, a linguagem econômica e as teorias da política adquirem novamente um lugar de hegemonia nos campos de poderes/saberes. A narrativa econômica capitalista é obrigada a defender seu lugar no campo dos poderes econômico. A memória dos fenômenos do capitalismo passa a articular os sujeitos nos campos de poderes, conjunturalmente.  
A passagem do capitalismo do século XX para o capitalismo do século XXI ocorre com a substituição da hegemonia da axiomatização capitalista pela hegemonia das gramáticas do capitalismo globalizado. (Bandeira da Silveira; 2019).    
Quanto ao Estado capitalista:
“Nunca um Estado perdeu tanta potência para colocar-se com tanta força a serviço do signo de potência econômica. E, apesar do que se diz, o Estado capitalista desempenha este papel desde muito cedo, desde o início, desde sua gestação sob formas ainda meio feudais ou meio monárquicas: controle da mão de obra e dos salários, do ponto de vista do fluxo dos trabalhadores ‘livres’; outorga de monopólios, de condições favoráveis à acumulação, luta contra a superprodução, do ponto de vista do fluxo de produção industrial e mercantil. Nunca houve um capitalismo liberal: a ação contra os monopólios remete, em primeiro lugar, a um momento em que o capital comercial e financeiro faz ainda aliança com o antigo sistema de produção, e em que o capitalismo industrial nascente só pode assegurar-se da produção e do mercado obtendo a abolição desses privilégios. Que não há nisso luta alguma contra o próprio princípio de um controle estatal, com a condição de que seja o Estado que lhe convém, é o que se vê claramente no mercantilismo, porque ele exprime as novas funções comerciais de um capital que passou a ter interesses diretos na produção. Em regra geral. os controles e regulações estatais só tendem a desparecer ou se esfumam em caso de abundância de mão de obra e de repentina expansão dos mercados. Ou seja, quando o capitalismo funciona com um número muito pequeno de axiomas dentro de limites relativos suficientemente amplos. Esta situação desapareceu há muito tempo, e é preciso considerar como fator decisivo dessa evolução a organização de uma classe operária potente que exige um nível de emprego estável e elevado, e que força o capitalismo a multiplicar seus axiomas ao mesmo tempo que ele devia reproduzir seus limites numa escala cada vez mais ampliada (axioma de deslocamento do centro para a periferia). O capitalismo só consegue digerir a Revolução Russa de 1917 acrescentando sem parar novos axiomas aos antigos: axioma para a classe operária, para os sindicatos etc. Ele sempre pronto a acrescentar axiomas, e até outras coisas mais minúsculas, completamente irrisórias, é sua paixão própria que nada muda no essencial. O Estado é então determinado a desempenhar um papel cada vez mais importante na regulação dos fluxos axiomatizados, quer em relação à produção e à planificação, quer em relação `a economia e à sua ‘monetarização’, à mais-valia  e à sua absorção (pelo próprio aparelho de Estado)”. (Deleuze. 1972: 304-305). 
   
A passagem do capitalismo do século XX para o capitalismo do século XXI encontra no anarco-capitalismo e seu Estado totalitário mínimo (Deleuze. 1980:578) os elementos, antecipados, das gramáticas do capitalismo desenvolvido e subdesenvolvido cibernéticos. (Bandeira da Silveira: 121).
A multiplicação dos axiomas esterilizou, saturou, o capitalismo como lógica axiomática. Daí, advém uma gramática do capitalismo globalizado. O desparecimento da luta de classe na sociedade capitalista prepara o terreno para a articulação da hegemonia e dominação da formação social capitalista via gramáticas do capitalismo.
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Uma comunidade como a brasileira faz retornar ao proscênio problemas simples como a legitimidade do ato de força na vida privada. A vida urbana refém das organizações criminosas é uma refutação cabal da possibilidade de se viver pela lógica do individualismo absolutista de Stirner. Aliás, o Brasil se põe questões de direito do uso privado da violência por civis:
“Em bora os juristas normalmente interpretassem todos os atos de violência como injúria, também admitiam que esse axioma fundamental do direito fosse posto de lado em alguns casos especiais”. (Skinner: 404). 
Estamos perto de aceitar que é justificável repelir com força a força injusta? pois, tudo o que alguém faz para proteger seu corpo é considerado como tendo sido feito legalmente. O Estado com detendo o direito ao monopólio da violência legítima é uma categoria que não foi metabolizada pela cultura privada e pela cultura política. A passagem do sentimento do uso da violência privada como um direito civil para a passagem do uso da violência política como um direito a ser usado contra o tirano parece ser algo gramaticalizado pela sociedade da Bolívia.
Evo Morales fio metabolizado como tirano. A partir disso, toda uma violência política foi aplicada sobre seu governo. O golpe de Estado veio através do Exército que exigiu a renúncia de Morales, caso ele quisesse continuar vivo. A Bolívia está perto da razão natural que diz: pode-se repelir a força pela força (vim vi repellere). 
A força do cristianismo político (neopentecostal) vai aparecendo como vontade de potência de criar um direito político arcaico. Trata-se de saber, novamente, quem tem o direito ao uso da violência política. O monopólio da violência nas mãos do imperador servia para designar as formas mais elevadas de poder público, em particular o de comandar exércitos e fazer leis. Assim, se os príncipes locais e outros magistrados tinham, tanto quanto o imperador, o direito de empunhar o gladio da justiça, o poder coercitivo; esta não é uma questão menor. Os príncipes locais e os outros magistrados adquiriam o direito do uso da violência política na sociedade imperial. A luta entre o imperador e os príncipes e magistrados adquiria a possibilidade ser uma luta armada. Para os países latino-americanos, tal situação pode significar a desintegração da sociedade nacional.    
O capitalismo pacificou o uso da violência com o direito positivo nos dois últimos séculos na Europa. Ao contrário, forças do capitalismo subdesenvolvido na América Latina parecem não mais aceitar o direito positivo regulando a esfera política. A negociação política, os arranjos político constitucionais, a pacificação política são substituídos  pela violência política fazendo pendant com ideias de uso de violência extraídas do direito privado pré-civilização capitalista industrial.
O campo da direita latina -americano parece aplicar na política a ideia da destruição do campo da direita no lugar do imperador:
“isso, julgava-se, determinava que o imperador não era legibus solutus, mas restrito pelos termos do juramento que prestara por ocasião da coroação, dependendo, para conservar sua autoridade, do adequado cumprimento de seus deveres. E essa ideia, por sua vez, servia para autorizar a conclusão radicalmente constitucionalista de que, como os eleitores e os outros príncipes do Império detinham o ius gladii tanto quanto o próprio imperador, deveria ser legítimo que usassem a espada contra este caso ele deixasse de observar as condições de seu juramento original”. (Skinner: 407).
Um problema cadente é o da relação do governante com a ideia da integridade do todo nacional. O governante é considerado responsável por manter a unidade nacional. Se seu governo é uma força contra a unidade nacional, sua derrubada é considerada legítima segundo um direito político nacional.
A era Evo significa o aprofundamento das fraturas na Bolívia, inclusive com regiões econômicas se opondo abertamente à outras regiões econômicas. A oligarquia branca se sente proprietária de uma Bolívia, que o movimento político dos de baixo (indígenas e camponeses) pôs em questão. Este movimento fez uma Constituição inédita nas Américas e começo a construir um Estado multiculturalista de uma revolução secularista- como superestrutura de uma economia popular progressista.   
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Associando egoísmo e violência, próprio de uma sociedade individualista, a crítica de Stirner é, claramente, uma crítica do anarquismo com método para solução de problemas políticos do Eu:
“Y, aunque anteriormente había dicho pestes del egoísmo, considerándolo incluso como el odor specificus de las masas, ahora, em la pág. 129, acepta de Stirner el egoísmo, pero ‘no el de Max Stirner’, sino, naturalmente, el de Bruno Bauer. Al de Stirner lo condena con la mácula moral de’que su Yo necesita, para apoyar su egoísmo, de la hipocresía, el fraude y la violencia exterior’”, (Marx.1974: 108).
O individualismo absoluto no campo da direita não tem em Bolsonaro um seguidor de Stirner?  


       


BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramáticas do capitalismo. Lisboa: Chiados Book, 2019
DELEUZE ET GUATTARI, Gilles et Félix. Capitalisme et Schizophrénie. L’Anti-Oedipe. Paris: Minuit, 1972
DELEUZE ET GUATTARI, Gilles et Félix. Capitalisme et Schizophrénie. V. 2. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980
DELEUZE, Gilles. Foucault. Paris: Minuit, 1986
CHÂTELET, Duhamel, Pisier-Kouchner. Histoire des idées politiques. Paris: PUF, 1982
MARX Y ENGELS. Obras Escogidas de Marx y Engels. V. 1. Las luchas de clases em Francia de 1848 a 1850. Madrid: Fundamentos, 1975 
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. SP: Companhia das Letras, 1996





  
             

domingo, 10 de novembro de 2019

GRAMÁTICO CRISTIANISMO POLÍTICO






O último movimento evangélico na América do Sul significa uma alteração no cristianismo ainda não devidamente estudada como história das ideias políticas. Esse cristianismo funde a vida privada com a vida pública; ele acaba com a autonomia da política em relação à religião.
Há um passado cristão que se atualiza como gramática da vida política do presente?   
Eric Voegelin é o autor da gramática cristã de campo de poderes no Ocidente. Faço uma citação longa:
“A transição do sentimento escatológico puro para sentimentos de compaixão para com os pobres e indiferença ou aversão contra os ricos, com um fundo de intransigência escatológica, não de Jesus para com os descrentes, mas dos crentes em relação aos descrentes, é de importância fundamental para a compreensão dos movimentos políticos posteriores no Ocidente. Nada há na Antiguidade helênica que possa ser comparado a esses fenômenos peculiares. Durante toda a Idade Média e até ao nosso presente, encontramo-nos com uma sequência de movimentos que revive o espírito escatológico da comunidade cristã primitiva. Ou os membros dos movimentos retiram-se do mundo em comunidades de <santos> e, assim, se os movimentos ganham força, ameaçam a estrutura civilizacional que não é baseada na expectativa escatológica, mas num compromisso com o mundo; ou então os santos, esperando uma rápida reversão da situação, tornam-se agressivos, particularmente quando seus sentimentos se alimentam das formas mais primitivas da escatologia israelita. Este sentimento se torna cada vez mais importante após a Reforma; alcança seu clímax nos derivados secularizados da escatologia cristã, nos modernos movimentos de massa do comunismo e do nacional-socialismo”. (Voegelin. V. 1: 213)
A secularização da escatologia cristã no século XX é o fenômeno mais importante da política mundial, pois, contrapõe stalinismo e fascismo na II Guerra Mundial.
No entanto, há essa passagem da ideia escatológica do fim dos tempos para a ideia apocalíptica:
“A ideia apocalíptica implica que o Messias apareceu e que o seu reino está realmente estabelecido como comunidade entre ele, o Ressurreto, e os seus crentes”. (Voegelin. V. 1: 220-221).
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Uma outra gramática da comunidade cristã fala do campo de sujeitos.  O compromisso da Igreja com a fraqueza do homem define a relação do poder religioso com o crente: “A segunda conquista realística foi a adaptação da organização da comunidade à fraqueza do homem”. (Voegelin: v. 1: 225).
O crente não é o herói cristão. A gramática cristã do campo dos sujeitos não faz do sujeito cristão o herói na dialética materialista da plurivocidade de campo de poderes/saberes. O saber político cristão não faz pendant com o discurso do autor heroico das nações modernas, para ir aproximando a interpretação do nosso presente.
O campo do sujeito cristão encontra-se sob a hegemonia de um narrador. Trata-se do <poder gramatical> narrativo do Evangelho. Bakhtin pode nos ajudar nesse ponto:
“Esse outro que exerce seu domínio sobre mim não entra em conflito com meu eu-para-mim, uma vez que, no plano dos valores, continuo a ser solidário com o mundo dos outros, uma vez que me percebo dentro de uma coletividade – de minha família, de meu país, da cultura universal; a posição de valor do outro tem autoridade sobre mim, ele pode conduzir a narrativa da minha própria vida e estarei interiormente de pleno acordo com ele. Enquanto minha vida participa dos valores que compartilho com os outros, está inserida num mundo que compartilho com os outros, essa vida é pensada, estruturada, organizada no plano da possível consciência que o outro terá dela, percebida e estruturada como a possível narrativa que o outro terá poderia fazer dela dirigida a outros (descendentes); a consciência do possível narrador e o contexto de valores desse narrador organizarão meu ato, meu pensamento e meu sentimento quando estes participarem do mundo dos outros; cada um dos aspectos da minha vida poderá ser percebido no todo da narrativa (da história relatada dessa vida, e que pode encontrar-se em todas as bocas); a contemplação da minha própria vida não é mais que a antecipação da recordação que essa vida deixará na memória dos outros – dos meus descendentes, da minha família, ou simplesmente dos meus próximos( a amplitude e o caráter biográfico de uma vida é variável)”. (Bakhtin; 167-168).
O poder gramatical narrativo da biografia cristã faz do passado um fenômeno estético e do futuro um fenômeno moral:
“O modo tranquilo em que se efetua a rememoração de meu passado remoto é de natureza estética e a evocação se aproxima formalmente da narrativa (as recordações aclaradas pelo futuro do sentido são recordações penitentes). A memória do passado é submetida a um processo estético, a memória do futuro é sempre de ordem moral”. (Bakhtin: 167).  
A biografia real é algo que necessita para acontecer de sujeitos em um campo de poderes como a comunidade cristã:
“A comunidade é uma unidade no espírito: ‘há um só corpo e um só espírito. (...) Há um só senhor, uma só fé, um só batismo; há um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, por meio de todos e em todos’, mas ‘a cada um de nós foi dada a graça pela medida do dom (charisma) de Cristo”. (Voegelin. V. 1: 226).
As biografias do campo de sujeitos fazem da política seu habitat no campo dos poderes/saberes. Na atualidade, biografias cristãs adentram à política e subvertem o campo dos poderes nas Américas. Trump e o Bolsonaro aparecem como signos desse fenômeno. Então, o que é a política?
Gramsci diz:
“A dificuldade de identificar em cada caso, estaticamente (como imagem fotográfica instantânea), a estrutura (econômica); de fato, a política é, e cada caso concreto, o reflexo das tendências de desenvolvimento da estrutura, tendências que não se afirma que devam necessariamente se realizar. Uma fase estrutural só pode ser concretamente estudada e analisada depois que ela superou todo o seu processo de desenvolvimento, não durante o próprio processo, a não ser por hipóteses (declarando-se, explicitamente, que se trata de hipóteses)”. (Gramsci. V. 1: 239).
Pensemos a política como hipótese dos reflexos do desenvolvimento da história econômica, que, portanto, não significa que devam se realizar. Na história econômica das Américas, o <cristianismo político> aparece como a superestrutura do desenvolvimento do capitalismo subdesenvolvido, inclusive nos EEUU. Nos EEUU, não significa que o capitalismo subdesenvolvido vai se tornar hegemônico na história econômica da América. No Brasil, trata-se de uma realidade visível - em uma tela gramatical econômica neoliberal - se desenvolvendo na nossa história econômica como <hegemonia cum dominação> .    
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A gramática cristã faz do próximo e da caridade seus fundamentos:
“Em Romanos 13, 9-10, Paulo se refere aos Dez Mandamentos como o corpo de regras que devem ser observadas e continua: ’Todos os preceitos se resumem nesta sentença: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.  A  caridade não pratica o mal contra o próximo. Portanto, a caridade é a plenitude da lei’”. (Voegelin. V. 1: 227).
Na gramática do cristianismo político não tem próximo ou caridade. Assim, esse cristianismo se livra da lógica freudiana <Credo quia absurdum> da leitura da fonte evangélica paulina:
“Acho que agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo: ‘É precisamente porque teu próximo não é digno de amor, ao contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo’. Compreendo então que se trata de um caso semelhante ao do <Credo quia absurdum>”. (Freud. v. XXI: 132).  
A gramática do cristão político se inscreve em campos de poderes, conjunturalmente. Aqui, há o amigo do cristão (que deve ser amado) e seu inimigo (que deve ser odiado). A política como reflexo da história política faz do amigo do cristão político todas as forças de sustentação e reprodução do capitalismo subdesenvolvido. O inimigo são as forças contrárias ao domínio do capitalismo subdesenvolvido.     
A gramática cristã original se caracteriza pela indiferença escatológica social: “Continua a prevalecer a indiferença aos problemas sociais que observamos em relação à atitude para com a propriedade privada”. (Voegelin. V. 1: 227).
O cristianismo político não é indiferente aos problemas sociais. A diferença entre mundo celeste e mundo mundano desaparece:
“A lealdade ao estatuto social converte-se, assim, em dever cristão, não porque Paulo e o autor de 1 Timóteo sejam conservadores ou advogados de interesse de classe, mas porque o estatuto social pertence a este mundo’ e, consequentemente, não deve ser objeto de grande interesse para o cristão renovado. A mesma regra se aplica às relações com as autoridades governamentais. Os magistrados do império romano têm que ser respeitados, porque ‘não há autoridade que não venha de Deus”. (Voegelin. V. 1: 228).
Com o cristianismo político, a aquisição de propriedade e riqueza material torna-se uma regra da ética cristã. O cristão político almeja se tornar um membro da sociedade do rico. A sociedade do rico cristão faz pendant com a sociedade do rico burguês (secular), como fator de desenvolvimento do capitalismo subdesenvolvido.
Ficar longe da autoridade (poder secular) não é uma regra da gramática do cristão político. Tomar o poder secular e transformá-lo em poder político evangélico é a regra de ouro da gramática do cristianismo político. O cristianismo político é a contrarrevolução que se choca com a revolução permanente do secularismo, que funda e refunda o campo de poderes/saberes progressista.
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A relação entre Reforma e capitalismo foi abordada por Weber:
“Por outro lado, não se pode sequer aceitar uma tese tola ou doutrinária segundo a qual o ‘espírito do capitalismo’ (sempre no sentido provisório que aqui usamos) somente teria surgido como consequência de determinadas influências da Reforma, ou que, o Capitalismo, como sistema econômico, seria um produto da Reforma. Já o fato de algumas formas importantes do sistema comercial capitalista serem notoriamente anteriores à Reforma, seria o bastante para sustar essa argumentação”. (Weber: 61). 
O cristianismo político da atualidade se apresenta como superestrutura do capitalismo subdesenvolvido. Ele é uma força prática subjetiva ou motor material do desenvolvimento do capitalismo subdesenvolvido.  No entanto, as forças práticas principais do aprofundamento do subdesenvolvimento, ou são políticas seculares, ou econômicas seculares, ou culturais seculares, como os mass media seculares.   
O capitalismo subdesenvolvido tem como motor material de seu desenvolvimento o Estado subdesenvolvido, famoso por desenvolver as desigualdades materiais, promover a acumulação de riqueza nas mãos de uma minoria rica, bloquear a formação de uma sociedade de consumo de bens de consumo imediatos e duráveis para a maioria da população.
A redução da sociedade industrial urbana ao mínimo (ou ao grau zero) é uma característica do capitalismo subdesenvolvido. A subtração da divisão do trabalho das profissões universitárias é uma conclusão econômica lógica.
O cristianismo político ataca as profissões universitárias urbanas seculares como um mal a ser aniquilado. Ele ataca o Estado-cientista, quer Ab-rogar o Estado-cientista que é contra a intepretação criacionista da história da vida, em geral. Assim, ele se transforma em uma força prática subjetiva da história econômica do subdesenvolvimento.
Um Estado evangélico vai aparecendo como a superestrutura natural do capitalismo subdesenvolvido. Trata-se de um Estado que abole o poder econômico - que cuida dos pobres e da população em geral. Fim do poder como <caritas>. Este traço do cristianismo político aproxima a ideia de Estado evangélico da ideia de Estado neoliberal como contraponto ao <biopoder> foucaultiano, um fenômeno do campo de poderes/saberes progressista.  
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A comunidade cristã política é a grande novidade da política das Américas, alcançando a própria África:
“A teoria dos charismata, dos diferentes dons espirituais no corpo único de Cristo, impedira que o cristianismo se transformasse em aristocracia religiosa e dera-lhe uma ampla base popular; potencialmente, a humanidade como um todo poderia organizar-se na nova comunidade”. (Voegelin. V. 1: 229).
O cristão político é um ser social que é atraído pela realidade dos países subdesenvolvidos. A humanidade subdesenvolvida é o seu ideal. Ele quer se ver e sentir como parte de uma aristocracia cristã. O campo de poderes do cristão político tem que ser subdesenvolvido. Essa é uma diferença com a gramática do cristão em uma leitura paulina, como autocrítica:
“O reconhecimento da estrutura social existente, além disso, compatibilizava a comunidade com qualquer sociedade em que o cristianismo se difundisse, influenciando as relações sociais somente através da força do amor fraterno, lentamente transformador. E, finalmente, a autoridade governamental foi integrada na comunidade ordenada por Deus, tornando a comunidade compatível com qualquer forma de governo. Estava esboçado a criação de um novo povo a partir do espírito de Cristo, de um povo que crescesse cada vez mais no mudo existente, transformando lentamente as nações e civilizações no reino de Deus”. (Voegelin. V. 1: 229-230).  
O cristianismo original metabolizava a existência do Estado secular. O cristianismo político é uma força em choque com o Estado secular capitalista. Sua vontade de potência quer um Estado cristão como superestrutura do capitalismo subdesenvolvido.
O cristianismo político é uma força retrógrada, pois, contrária a linha de força econômica central do capitalismo globalizado. O cristianismo político é uma força que quer Ab-rogar da realidade o mundo cibernético no comando do capitalismo desenvolvido avançado no Ocidente e Ásia Oriental.
O problema da história brasileira é a existência de dezena de milhões de pessoas que se constituem como força prática subjetiva da política nacional. O cristianismo político não tem pátria, como o dinheiro. Ele é um fenômeno do tribalismo mundial, de Maffesoli:
“Pode-se dizer igualmente que a simples administração das coisas tem aí sua origem. De fato, conforme Salomon Reinach, a história da humanidade é <uma laicização progressiva>: os padres vão racionalizar o religioso, codificar os tabus e canalizar as expressões mais excessivas da religiosidade ambiente e natural. Encontra-se aí uma ideia desenvolvida com frequência no século XIX: <as religiões tendem a laicizar-se> em político”. (Maffesoli: 57).    
Os pastores cristãos são parte de uma laicização do mundo subdesenvolvido capitalista ou não capitalista; eles racionalizam o religioso; eles racionalizam o subdesenvolvimento.  
A tribo cristã política tem na África profunda seu território natural.  

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. SP: Martins Fontes, 1992
FREUD. Sigmund. Obras Completas. V. XXI. RJ: Imago, 1974
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. V. 1. RJ: Civilização Brasileira, 2015
MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político. A tribalização do mundo. Porto Alegre: Sulinas, 1997
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. SP: Pioneira, 1981
VOEGELIN, Eric. Helenismo, Roma e cristianismo primitivo. História das ideias políticas. V. 1. SP: Realizações Editora, 2012