segunda-feira, 4 de novembro de 2019

DITADURA E DEMOCRACIA: a questão do Estado


José Paulo



O campo da gramática marxista é um campo aberto às contribuições de outros campos de saber. Tudo fica mais fácil se um grande pensador como Foucault é traduzido para o campo marxista como o fez Deleuze. Seguiremos essa linha de força de pensamento político para abordar a questão do Estado moderno no Brasil da atualidade.
A gramática marxista de pensamento político se constrói na junção de Foucault com Deleuze e Gramsci. Demostro.
A estatização do campo de poderes é um fenômeno medieval:
“L’accumulation de la richesse et du pouvoir des armes et la constitution du pouvoir judiciaire dans les mains de qualques-uns sont un même processus qui a été en vigueur dans la haut Moyen Âge et a atteint sa maturité au moment de la formation de la première grande monarchie médiévale, au milieu ou à la fin du XII° siècle. À ce moment apparaissent des choses totalement nouvelles par rappot à la société féodale, à l’Empire carolingien et aux vieilles règles du droit romain”. (Foucault. V. 2: 579).
A acumulação de riqueza faz emergir um campo de poderes econômico. O campo de poderes político surge com a constituição do poder das armas e do poder judiciário. A Igreja é o poder religioso que faz pendant com o poder do império carolíngio. Então, ocorre a estatização dos campos de poderes com a monarquia medieval.  
Deleuze diz:
“Il n’y a pas d’Etat, mais seulement une étatisation (...) Si la forme-Etat, dans nos formations historiques, a capturé tant de rapports de pouvoir, ce n’ets pas parce qu’ils en dérivent; au contraire, c’est parce qu’une opération d’<étatization continue>, d’ailleurs très variable suivant le ecas, s’est produite dans l’ordre pédagogique, judiciaire, économique, familial, sexuel, visant à une intégration globale. Em tout cas, l”Etat suppose les rapports du pouvoir, loin d’en être la source. Ce que Foucault exprime en disant que le gouvernement est premier par rapport à l’Etat, si l’on entendent par <gouvernement> le pouvoir d’affecter sous tous ses aspects (gouverner des enfants, des âmes, des malades, une famille”. (Deleuze: 82-83).
Na gramática marxista, o Estado moderno é definido como hegemonia e dominação, sociedade política civil e sociedade política, democracia e ditadura”. (Buci-Klucksmann: 114).
Gramsci diz:
“Ma cosa significa ciò se non che per Stato deve intendersi oltre all'apparato governativo anche l'apparato <privato> di egemonia o società civile”> (Gramsci. V. 2: 801).
Para se entender o governo em Gramsci, o governo (quem governa?) será sempre o governo de um <principe>:
“Para se traduzir em linguagem política moderna a noção de <príncipe>, da forma como  ela se apresenta no livro de Maquiavel, seria necessário fazer uma série de distinções.: <Príncipe> poderia ser um chefe de Estado, um chefe de governo, mas também um líder político que pretende conquistar um Estado ou fundar um novo tipo de Estado; neste sentido, em linguagem moderna, a tradução de <Príncipe> poderia ser <partido político>. Na realidade de todos os Estados, o <chefe do Estado>, isto é, o elemento equilibrador dos diversos interesses em luta contra o interesse predominante, mas não exclusivo num sentido absoluto, é exatamente o <partido político>; ele, porém, ao contrário do que se verifica no direito constitucional tradicional, nem reina nem governa juridicamente: tem <o poder de fato>, exerce a função hegemônica e, portanto, equilibradora de interesses diversos, na <sociedade civil>; mas de tal modo esta se entrelaça de fato com a sociedade política, que todos os cidadãos sentem que ele reina e governa”. (Gramsci. 1980: 102).
Gramsci parece falar de uma gramática do Estado como campo de poderes político. O príncipe é o sujeito que governa o aparelho de Estado (conserva o poder político), ou aquele que toma o poder político, ou ainda, aquele que funda um novo campo de poderes político. No campo de poderes político moderno, <príncipe> é o <partido político> (uma massa intelectual gramaticalizada por pela junção de cultura econômica e cultura política determinadas), elemento equilibrador dos diversos interesses contra o interesse predominante, mas não exclusivo em um sentido absoluto. O <partido político> nem reina nem governa juridicamente. Ele detém o <poder fático>, exerce a função de articulação hegemônica (democracia), portanto, equilibradora de interesses diversos, na sociedade civil em junção com a dominação na sociedade política (ditadura).
Um detalhe é essencial: “todos os cidadãos sentem que ele reina e governa”. Reinar e governar juridicamente como aparências de semblância (Arendt: 30-31) é um fato imprescindível para o governo do <partido político>.  


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O Estado democrático liberal para existir e se reproduzir depende da engenharia política do <príncipe> ou <partido político>.   No caso brasileiro 2019, há um governo sem <partido político>. O governo se define por práticas de expansão da ditadura e, ao mesmo tempo, por tentar reduzir ao grau zero o espaço da democracia constitucional 2019.
O governo bolsonarista define a política como arte da guerra política:
“Jomini, comme tous les théoriciens du XVIII°siècle, considérait l’acquisition de territoires comme l’objet essentiel de la guerre”. (Earle:108).
Mesmo Foucault diz que a política é a continuação da guerra por outros meios:
“Si l’on a bien dans l’esprit que ce n’est pas la guerre qui est la continuation de la politique, mas la politique que est la continuation de la guerre par d’autres moyens”. (Foucault. V. 2: 704).
A política como guerra de aquisição de território da sociedade política e da sociedade civil cai como luva na “era’ Bolsonaro. Bolsonaro já governa o <Estado de polícia> federal, tem o Congresso como aliado irresoluto, o STF neutralizado, um STJ subserviente.
Na sociedade civil, mass media e grande imprensa não rompem a ordem do consenso burguês neoliberal. Este faz do ministro Paulo Guedes o chefe de governo da ordem do capitalismo subdesenvolvido neoliberal. O consenso de ferro neoliberal é a aquisição de território de Bolsonaro na sociedade civil supracitada. 
A gramática marxista pensa o presente como crise:
“ – L’ordre ne se trompe jamais, ne peut jamais, se trompeur”.
“- Non, bien sûr. Il peut commettre des erreurs stratégiques, mais il ne se trompe pas. La seule forme véritablement actualle du discours, c’est l’impératif, c’est-à-dire le langage du pouvoir. Et, à partir du momento où l’intellectuel fonctionne en marge, il ne peut penser le présent qu’en tant que crise”. (Foucoult. V. 2: 703).
A gramática marxista pensa o presente brasileiro como crise do Brasil, Brasil em colapso:
“ -  Mais comment réagissez-vous lorsque vous entendez parler de cette crise?”
“ – Lorsque j’en entends parler d’une façon journalistique, je ne ris pas. Mais lorsque j’en entends parler d’une façon sérieuse, philosophique, là je commence à en rire. Car c’est le journaliste qui a le rôle sérieux, c’est lui qui la fait fonctionner de jour en jour, d’heure en heure”. (Foucault. V. 3: 704).  
A crise do presente é produzida pela política bolsonarista. Esta já se apresenta como política do <Ato Institucional> (política do famigerado AI-5 da ditadura militar 1968). Trata-se da política da guerra civil real para tornar a democracia um grau zero no campo de poderes constitucional 1988.
A política do fake news bolsonarista é a guerra civil cibernética aberta. Neste terreno, a democracia é amplamente derrotada. A política do AI-5 é a política bolsonarista definida, pelo chefe da polícia secreta bolsonarista (general Heleno), como a forma de política que inaugura a conjuntura política em novembro 2019.
Estamos diante de formas da guerra política que precisa ser gramaticalizada. A política como continuação da guerra por outros meios tem como meios a linguagem do poder como única forma verdadeiramente de discurso, discurso imperativo. A linguagem do poder é a máquina de guerra discursiva. O intelectual funcionando a margem tem que pensar o presente como crise da ordem neoliberal mundial:
“brève référence à la République (V, 470) en ce lieu où Platon oppose la guerre proprement dite (pólemos) à la guerre civile, à la rébellion ou au soulèvement (stásis). Sans préciser quel est le type de cette liaison, Schmitt y rappelle l’insistance de Platon sur la distinction <liée> (verbunden) à celle des deux types d’ennemi (polémios et ekhthrós), à savoir la distinction entre pólemos (<la guerre>) et stásis (<´´emeute, soulèvement, rébellion, guerre civile>). (Derrida: 109-110).  
A política bolsonarista não distingue os dois tipos de inimigos supracitados. A formação pedagógica do capitão paraquedista Bolsonaro cria uma identidade risível entre polémios e ekhthrós, tomada como séria, inconscientemente, pelo jornalismo.
  Fazendo a análise concreta da situação concreta bolsonarista:
Habituados a ver o campo de poderes como Estado-substância, a esquerda aparece possuída por um discurso incoerente, irracional. A esquerda diz: “vivemos em uma DITADURA". Ela está dizendo que vivemos em um Estado ditatorial?
No livro “Foucault”, Deleuze diz que não existe Estado-substância ou Estado-sujeito. Há sim estatização do campo de poderes. Assim, a Constituição 1988 é um discurso virtual de gramaticalização dos fenômenos do campo de poderes. (É também a gramaticalização dos sujeitos [indivíduo ou massas] do campo dos sujeitos).
Todo campo de poder em democracias liberais é articulado como dialética entre hegemonia e dominação, ou seja, entre democracia e ditadura. A luta entre os sujeitos institucionais no poder político usa a democracia ou a ditadura para alcançar vitórias táticas.
A luta do governo central contra seus adversários (parlamento, governos locais, fração do STF) pode usar a ditadura (Estado de polícia, por exemplo) contra o inimigo. O governo central procura expandir o poder da ditadura sobre a democracia, com o auxílio de seus aliados no STF, STJ, poder judicial natural, Congresso. Muito abstrato?
A luta de Bolsonaro contra o governador Witzel ocorre no interior do Estado de polícia local. Bolsonaro quer a federalização do caso Marielle para escapar das garras do governador do estado do Rio de Janeiro. A federalização fará do caso Marielle um objeto do Estado de polícia de Moro e Aras, fies aliados de Bolsonaro.
Bolsonaro confessou que obstruiu a justiça no caso Marielle. Assim, ele se enquadra no crime de responsabilidade, estando sujeito ao impeachment. E, todavia, ninguém do mundo jurídico protocola na Câmara de deputados o pedido de impeachment, como fizeram juristas do PSDB com Dilma Rousseff.
FHC é contra o impeachment de Bolsonaro!
Parece que ninguém do mundo jurídico quer confrontar a ditadura bolsonarista materializada no Estado de polícia federalizado, maioria do STF, Grupo Globo, e na posição da Congresso neoliberal, sob direção intelectual, moral e política da ditadura econômica anarco-capitalista de Paulo Guedes.
A oposição está perdida, confusa, pois foi desossada em seu corpo político = pensamento político. Na estatização do campo de poderes da direita, a ditadura (dominação) come a democracia (hegemonia), diminui ao grau zero o território da democracia.
Uma forma de mudar o equilíbrio de força favoravelmente à democracia é o STF decidir pelo fim da prisão em segundo grau (instância), sem restrições como decretar que o fim não é retroativo.
Sem retroação significa retirar de Lula a canga coativa judicial. Isto seria um modo de restaurar o território da democracia sobre a ditadura real bolsonarista. No entanto, tudo depende do voto da juíza Carmen Lúcia.
Carmen Lúcia é o mais político dos juízes da corte. Seu voto na decisão política costuma seguir a linha de força dominante na política. Ora, esta é a linha de força ditatorial, Carmen Lúcia votará contra o fim da prisão em segundo grau para permitir o voto de minerva do presidente do STF, Dias Toffoli.
Toffoli vem das hostes petistas stalinistas; ele se inclina ideologicamente, naturalmente, para a ditadura contra a democracia. Toffoli modulará a decisão do fim da prisão em segundo grau com o dispositivo retroativo. Ou seja, a decisão não será retroativa. Lula permanece com canga. A ditadura engole a democracia.
No STF, a materialidade da política diz que tudo está consumado no domínio da DITADURA sobre a democracia constitucional.
Aliás, juristas bolsonaristas clamam por uma nova Assembleia Nacional Constituinte.
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A falta do <príncipe> como <partido político>´´é a causa política da crise do presente, ou do presente em colapso. Ao contrário, a política de aquisição de território pode avançar ainda mais. Uma lei que altere a aposentadoria obrigatória no STF de 75 para 70 anos pode criar uma maioria bolsonarista irrevogável.
A convocação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte pode substituir a Constituição 1988 (Constituição cidadã) por uma gramática constitucional anarco-capitalista. A Constituição bolsonarista pode instituir virtualmente uma forma de regime no qual a ditadura subsuma a democracia. Assim, nasceria constitucionalmente um novo campo de poderes/saberes político da direita ditatorial civil. Esta hipótese é a alternativa a política da guerra civil que significa a desintegração do Brasil:
RUMO À DESINTEGRAÇÃO DO BRASIL?
A política bolsonarista leva à guerra civil, se for a vera. O clã Bolsonaro diz que não se submete às leis do país e ao poder judiciário. O Estado de polícia avança em investigações policiais que podem tornar réus os filhos do presidente da República. Toda a política bolsonarista consiste em evitar o cárcere para a família e, sobretudo, não ser humilhada pelo Estado de polícia, como foi Lula.
A guerra civil do Ai-5 é uma ideia do general Heleno e da família do presidente da República. Como o general Heleno tem influência no Exército do Rio de Janeiro, a guerra civil passaria pelo comando do Exército derrubando Witzel, e assumindo o poder político no Rio de Janeiro. O Exército pode dominar as forças policiais do Rio com certa facilidade.
Em São Paulo, o Exército teria de enfrentar a polícia militar de Dória. Se vencesse, com a adesão do governador de Minas Gerais ao golpe de Estado de Bolsonaro, o Sudeste seria parte do Estado bolsonarista.
O Nordeste se levantaria como um só homem contra o golpe de Estado bolsonarista. As massas populares nordestinas e as elites dessa região se negariam a fazer parte de um Estado ditatorial bolsonarista. Assim, a separação do Nordeste do país de Bolsonaro poderia iniciar um federalismo separatista de outras regiões. O Brasil regrediria a primeira metade do século XIX e seu destino não seria a da restauração da unidade territorial. Ao contrário, seria a da desintegração da unidade territorial.
O que a classe dominante não vê é que a política de Bolsonaro significa o fim da própria classe econômica dominante nacional, classe dominante brasileira. A economia capitalista seria feita em pedações regionais e teria que passar por uma profunda reorganização em sua história econômica, agora, história econômica regional. A sociedade industrial urbana deixaria de existir como possibilidade de um futuro econômico redentor. O capitalismo de commodities ou industrial rural unificaria o Centro-Oeste como economia, política e cultura.
Também a classe dirigente deixaria de ser brasileira e se regionalizaria, se fragmentaria em <classes dirigentes regionais>. Economias regionais mais pobres tornariam a vida das classes dirigentes regionais algo pouco atrativo para as elites regionais, para as elites de regiões agora constituídas em países.
Algo a ser imaginado é o que vai acontecer com a Amazônia. O Exército sediado na Amazônia seria capaz de integrar esta região ao Estado ditatorial bolsonarista? Assim, a exploração mineral da Amazônia seria entregue, de porteira fechada, ao capitalismo minerador americano do partido republicano.
Quanto as profissões corporativas do Estado brasileiro, elas desapareceriam em uma nuvem de gafanhotos. O desemprego em massa de juízes, procuradores, professores universitários, advogados e outras profissões se tornaria a realidade existencial do presente.
Claro que para parar o processo em curso basta interromper o governo Bolsonaro + General Mourão. Não se trata de uma operação para amadores da política ou para uma classe dirigente apátrida: pouco nacional!
Hic Rhodus, hic salta!
Aqui está Rodes, salta aqui!

ARENDT, Hannah. A vida do espírito. O pensar, o querer, o julgar. RJ: UFRJ, Relume Dumará, 1992
BUCI-GLUCKSMANN, Chistine. Gramsci et l’Ètat. Paris: Fayard, 1975
DELEUZE, Gilles. Foucault. Paris: Minuit, 1986
DERRIDA, Jacques. Politiques de l’amitié. Paris: Galilée, 1994
EARLE, Edward Mead. Les maitres de la stratégie, v. 1. Paris: Flammarion, 1980
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. V. 2. Paris: Gallimard, 1994
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. V. 2. Torino: Einaudi, 1977
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. RJ: Civilização Brasileira, 1980 

    


  

  

    
                                                                    





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