quinta-feira, 7 de novembro de 2019

GRAMÁTICA DO LIBERALISMO POLÍTICO


José Paulo



A gramática do liberalismo político em colapso compõe uma das crises do presente. No Brasil, o liberalismo político em colapso significa o fim da Constituição 1988. A confusão da linguagem política na democracia 1988 é uma força subjetiva que bloqueia a leitura da crise fática do liberalismo político, entre nós. Este é o ponto-de-partida desse texto
O problema do liberalismo se concentra na relação do espaço político público com os outros espaços políticos considerados domínios da vida privada: religião, família, associações econômicas etc. O estabelecimento e desenvolvimento de contradições entre o político e o privado seriam a causa da crise do presente político no Ocidente.
Para evitar a crise política, uma sociedade liberal tem que buscar o
<consenso sobreposto>.
O que é o <consenso sobreposto>?
Rawls diz:
“Assim, o liberalismo político visa uma concepção política de justiça enquanto posição independente. Não propõe nenhuma doutrina metafísica ou epistemológica particular, além daquela que a própria concepção política implica. Enquanto interpretação de valores políticos, uma concepção política auto independente não nega a existência de outros valores que se apliquem, digamos, àquilo que é pessoal, familiar, ou próprio das associações; tampouco afirma que os valores políticos são separados de outros valores ou que estejam em descontinuidade com eles. Um objetivo, como disse, é especificar a esfera política e sua concepção de justiça de tal forma que as instituições possam conquistar o apoio de um consenso sobreposto. Nesse caso, os próprios cidadãos, no exercício de sua liberdade de pensamento e consciência, e considerando suas doutrinas abrangentes, veem a concepção política como derivada – ou congruente com – outros valores seus, ou pelo menos não em conflito com eles”. (Rawls: 35).
Traduzindo para o domínio da gramática da política, o liberalismo aparece como uma gramática materialista da política articulando sujeitos (cidadãos, pessoas, famílias, associações, instituições, massas) em um campo de poderes/saberes político. 
O liberalismo político é a gramática do campo progressista na política da civilização ocidental. Em geral, liga-se o liberalismo político as interpretações de Benjamin Constant e Tocqueville. Aqui, sigo o caminho de pensar o liberalismo político como gramática da história política das nações ocidentais:
“No século XIX, o Estado-Nação se constitui mais ou menos por toda parte, na ordem interna, como Estado liberal: o liberalismo político é a sua filosofia dominante. As concepções liberais dominantes pretendem resolver principalmente a <questão política>, entendida essencialmente como o problema das relações entre o indivíduo e o Estado”. (Châtelet. 73).
A história política da França se torna uma referência para se pensar a gramática <liberalismo político>:
“C’était la révélation de l’esprit de 1789 qui imposait à l’Assemblée la mission sacrée de donner une Constituition à la France et faisait d’elle une incarnation même du pays. Cette grande aventure intellectuelle, qui n’avait pas de précédent dans le passé depuis le temps de lycurgue et de Solon, qui allait établir le bonheur futur non seulement des Français mais des hommes sur les bases indestructibles de la raison, exaltait, dans un mouvement de générosité et audace, nobles libéraux, cures égalitaires, obscurs légistes provinciaux”. (Jardin: 97).
  
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Os direitos individuais constituem uma das peças jurídica do projeto de Constituição de 1823, no Brasil. Um golpe de Estado de d. Pedro I dissolve a Assembleia Nacional Constituinte liberal política. A Constituição de d. Pedro I de 1824 suprime o capítulo sobre direitos individuais. Trata-se de uma Constituição absolutista regendo um campo de poderes político representativo como simulacro. (Nabuco:988).
A Constituição republicana de 1891 é retórica no capítulo dos direitos individuais. Rigorosamente, a gramática constitucional republicana não é um discurso virtual liberal político. Não há uma gramática liberal política articulando o campo de poderes da República Velha.
Em 1930, o Brasil é usurpado pela ditadura de Getúlio Varga. Em 1934, a primeira ditadura getulista acaba com a Constituição de 1934. A Constituição tem um capítulo da Lei de Segurança Nacional. Esse capítulo é uma peça da gramática constitucional que vai regular o campo de poderes político democrático, totalitariamente. A democracia getulista nasce totalitária. No entanto, há um capítulo sobre os direitos e garantias individuais. Rigorosamente, a Constituição da democracia getulista contém uma gramática liberal política, que permanece no papel. Não se transforma em uma tradição política - como a <lei de segurança nacional>.
Getúlio desfere um golpe de Estado na democracia 1934. Surge a Constituição de 1937, do Estado Novo. Há um capítulo sobre direitos e garantias individuais que significa um simulacro de gramática liberal política. Trata-se de uma ficção constitucional pura, pois jamais foi atualizada no Estado totalitário getulista, que flerta com o fascismo. A lei de Segurança Nacional é a peça da Constituição que se atualiza na política brasileira.
Com o fim da segunda ditadura getulista, temos a Constituição democrática de 1946. Esta não tem o capítulo Lei de Segurança Nacional. O capítulo sobre direitos e garantias individuais funcionará na prática política e no mundo-da-vida, precariamente.  O liberalismo político constitucional não se tornará efetivamente a gramática da <democracia populista>.
Em 1964, um golpe de Estado instaura um Estado militar e a Constituição de 1967. Esta recupera a tradição da lei de segurança nacional, que se tornará uma gramática do campo de poderes político-militar. O Estado militar 1964 mantem em sua Constituição 1967 o capítulo sobre direitos e garantias individuais, que será usado pela oposição em sua luta contra os governos dos generais.
O golpe de Estado do AI-5 (Ato Institucional) destrói o Estado liberal-militar 1964. A Emenda Constitucional N° 1, de 17 de outubro de 1969 instaura a Constituição do Estado militar-totalitário 1969. O capítulo da Segurança Nacional retoma a tradição <lei de segurança nacional>, que será atualizada na luta contra a guerrilha urbana e rural. A Constituição outorgada 1969 tem um capítulo sobre direitos e garantias individuais com o Artigo 154 totalitário:
“O abuso de direito individual ou político, com o propósito de subversão do regime democrático ou de corrupção, importará a suspensão daqueles direitos de dois a dez anos, a qual será declarada pelo Supremo tribunal Federal, mediante a representação do Procurador-Geral, sem prejuízo da ação civil ou penal que couber, assegurada ao paciente ampla defesa”.
A Constituição 1969 é um texto legal que define a ditadura militar como regime democrático. O capítulo sobre direitos individuais e a menção ao regime democrático são elementos do discurso político-militar que quer criar aparências de semblância democráticas para a ditadura. Por outro lado, o artigo supracitado diz que o STF e a PGR são instituições realmente existentes subjugadas à ditadura militar 1969.
Com o fim da ditadura militar 1969, uma Assembleia Nacional Constituinte fabrica a Constituição liberal democrática 1988. A Constituição começa com os direitos e garantias fundamentais. A tradição política lei de segurança nacional é excluída da Carta Magna.
Artigo 1°. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II - a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - O pluralismo político
A Constituição 1988 funda, virtualmente, o campo de poderes/saberes progressista; ela não é de direita ou de esquerda. Uma PGR (Procuradoria Geral da República) como poder independente do governo é o signo político que anunciava a Assembleia Nacional Constituinte como pensamento político de uma vida brasileira como fenômeno progressista. 
O campo da direita 2019 acaba com a PGR independente do governo central. 
O campo da direita no poder 2019 gera uma narrativa na qual o país se desfaz da soberania nacional. Os valores do trabalho são degradados pela reforma trabalhista neoliberal da Constituição, que estabelece uma nova legislação trabalhista, baseada na precariedade do trabalho assalariado. Rigorosamente, a virtual dignidade da pessoa humana jamais foi atualizada pelo regime 1988. A cidadania é violada com a decisão do STF de tornar letra morta o trânsito em julgado, definindo a prisão após o segundo grau.
Artigo 3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
II erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.  
O Artigo 3° encontra-se em contradição com a narrativa e a prática do campo da direita no poder. A direita no poder é contraconstitucional. A sociedade que a direita quer estabelecer não é livre (pois faz por onde para destruir a liberdade no domínio da cultura secular, por enquanto); não tem projeto nacional para erradicar a pobreza, e as desigualdades, pois seu lema é “pobre não poupa”; ao optar pelo capitalismo subdesenvolvido neoliberal (ersatz de capitalismo) se choca com a ideia constitucional de garantir o desenvolvimento capitalista  da nação.  

 Uma história das nossas Constituições revelaria a gramática da política fazendo pendant com o discurso constitucional liberal seja como farsa, seja como discurso virtual sem atualização, ou seja, como ficção política, seja como discurso que não é a gramática do campo de poderes/saberes  
O campo da direita no poder político já fala em uma nova Assembleia Nacional Constituinte. A Constituição da direita quer inclusive constitucionalizar na gramática da política um poder evangélico. Assim, a ideia de <consenso sobreposto> da Constituição 1988 seria substituído por uma gramática da política, agora, com um quarto poder: <poder político evangélico>.
Trata-se de uma alteração no campo de poderes/saberes político que funde o público com o privado. A separação entre o público e o privado é parte da gramática constitucional estabelecida na Constituição:
Capítulo I do Título II. VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
Uma nova Constituição seria a confissão de que a gramática 1988 encontra-se em contradição com o campo de poderes da direita no poder político. Assim, a nova democracia surgiria como um acontecimento que, por um lado, retomaria o espírito da Constituição 1969; por outro lado, ela aparece como o regime político do capitalismo subdesenvolvido neoliberal.  
  
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Como interpretação da Constituição 1988, o populismo dos juízes do STF surge com a opinião pública de que a Constituição é um instrumento legal de proteção de ricos e poderosos. <Ir ao povo>se tornou a palavra de ordem do populismo legal para submeter a Constituição à uma visão anarco-constitucionalista do direito.
O populismo legal <foraclui> da gramática legal da vida brasileira o inciso LVII do Artigo 5° que fala do trânsito em julgado:
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”;
O inciso LVII regula a prisão penal, não a prisão cautelar, obviamente.
A Ab-rogação do Inciso LVII como uma peça constitucional do campo de poderes, Ab-rogação que tem na Lava Jato sua força prática, se estabelece como dialética política entre Bolsonaro (campo da direita) e Lula encarcerado (campo da esquerda). A Ab-rogação em tela estabelece a prisão em segundo grau. Ela vem servindo para definir a diminuição de força ao grau zero do campo da esquerda.
Uma nova sessão do STF vai definir pelo populismo legal ou pelo retorno do inciso LVII. Trata-se de um ponto de inflexão no funcionamento do campo de poderes político.  
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O essencial da vida política brasileira é a escolha do modelo de democracia do campo da direita. Ela escolhe o modelo Bentham relido como subdesenvolvimento capitalista neoliberal:
“Embora John Stuart Mill tivesse a esperança de que a classe trabalhadora pudesse no futuro tornar-se bastante racional de molde a aceitar as leis da economia política (tal como ele as entendia), não podia esperar que ela aceitasse o modo de vida de Bentham para quem a classe trabalhadora estava inevitavelmente condenada à quase indigência. Nem pretendia ele que a classe trabalhadora aceitasse aquele modo de ver, que ele acreditava falso. Ele pensava que os trabalhadores podiam reagir e sair de sua miserável condição”. (Macpherson:52).
A gramática utilitarista benthamniana é a força prática subjetiva de articulação do campo de poderes da direita 2019 - como capitalismo subdesenvolvido neoliberal. As elites no poder são possuídas por um pensamento econômico do americanismo da década de 1970 a partir do qual se fundou o campo de poderes mundial neoliberal.
Entramos em uma conjuntura mundial que abandonou a gramática neoliberal. No entanto, o Brasil aparece como o último refúgio do pensamento econômico neoliberal remando contra a Nova Ordem Mundial de economia mista cibernética no Ocidente e na Ásia Oriental.
O abandono do modelo econômico fático neoliberal e a invenção de um modelo econômico cibernético para a América Latina é o desafio no campo de poderes brasileiro - que a direita no poder parece ignorar ou desconhecer como pensamento  econômico do século XXI.  

CHÂTELET E DUHAMEL E PISIER-KOUCHNER. Histoire des idées politiques. Paris: PUF, 1982     
Dias, Floriano de Aguiar (org). Constituições do Brasil. 2 volumes. RJ: Liber Jures, 1975
Constituição da República Federativa do Brasil 1988
JARDIN, André. Histoire du libéralisme politique. De la crise de l’absolutisme à la Constituition de 1875. Paris: Hachete, 1985
MACPHERSON, C.B. A democracia liberal. Origens e evolução. RJ: Zahar Editores, 1978
NABUCO, Joaquim. Um estadista do império. V. 2. RJ: Topbooks, 1997
RAWLS, John, Libéralisme politique. Paris: PUF, 1993  




  
   

   

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