José Paulo
Uma literatura marxista e protomarxista discutiu o problema
da revolução brasileira sem associá-la ao Risorgimento. Gramsci fala do
Risorgimento italiano como uma forma de revolução passiva, revolução sem
revolução. A história italiana moderna deixou um modelo de revolução
radicalmente distinto da revolução moderna europeia tout court.
Gramsci diz:
“a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos:
como ‘domínio’ e como ‘direção moral e intelectual’. Um grupo social é
dominante sobre grupos adversários aos quais tende a ‘liquidar’ ou a submeter
também com a força armada, e é dirigente com os grupos afins e aliados. Um
grupo social pode e inclusive deve ser dirigente antes de conquistar o poder
governamental (e esta é uma das condições principais para a mesma conquista do
poder); depois, quando detém o poder e inclusive se o tem fortemente nas mãos,
se transforma em dominante, porém deve continuar sendo igualmente ‘dirigente’.
(Gramsci. V. 3:2010-2011).
O Risorgimento italiano se caracteriza por uma especial
relação entre direita e esquerda no campo de poderes/saberes social pelo
fenômeno do <transformismo>. No campo de poderes, os moderados
(direita) dirigem “indiretamente’ o Partido de Ação (esquerda):
“Os moderados continuaram dirigindo o Partido de Ação também
depois de 1870 e 1876 e o chamado ‘transformismo’ é a expressão parlamentar
desta ação hegemônica intelectual, moral e política. Se pode assim dizer que
toda a vida estatal italiana de 1848 em diante está caracterizada pelo
transformismo, isto é, a formação de uma classe dirigente cada vez mais ampla
nos quadros fixados pelos moderados depois de 1848 e a queda das utopias
neoguelfas e federalistas, com a absorção gradual porém continua - obtida com métodos diversos como eficácia –
dos elementos saídos dos grupos aliados e também adversários que pareciam
inimigos irreconciliáveis. Neste sentido, a direção política se transforma em
um aspecto da função de dominação, enquanto a absorção das elites dos grupos
inimigos conduz à decapitação destes e a sua aniquilação por um período
frequentemente muito largo. Na política dos moderados aparece claro que se pode
e se deve realizar uma atividade hegemônica, inclusive antes da tomada do poder
e que não só é necessário contar com a força material que dá o poder para
exercer uma direção eficaz. Justamente a brilhante solução desses problemas tem
tornado possível o Risorgimento nas formas e nos limites em que realmente se
realizou, sem ‘terror’, como ‘revolução sem revolução’, para empregar uma
expressão de Cuoco”. (Gramsci. V. 3:2011).
A história brasileira contemporânea viu a esquerda tomar o
poder político por via eleitoral, depois, de tentar tomar o poder pelas armas,
sem muita certeza que este era o objetivo. A complexidade da situação política do
século XXI liga a esquerda brasileira à esquerda bolivariana que chegou ao
poder políticos na Venezuela, Bolívia, Uruguai e Equador. A revolução
bolivariana significa a fundação de um campo de poderes/saberes da esquerda na
América Latina.
No Brasil, o campo da esquerda construiu sua hegemonia antes
da tomada do poder político. Uma cultura literária frondosa (que começou na
década de 1930 como gramática marxista) se materializou no Partido dos
Trabalhadores (PT) e em Lula como o indivíduo que acabou por personificar a
revolução brasileira da esquerda.
O sucesso da esquerda se deve a um certo <transformismo> molecular e de massas.
Molecularmente, podemos citar a passagem do filósofo político Renato Lessa do
campo da direita para o campo da esquerda. Renato é um signo do transformismo
molecular petista.; outros intelectuais importantes aderiram ao bolivarianismo
como o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos.
Massas de classe média se tornaram massas-apoio
transformistas no campo da esquerda. Cito apenas, o movimento de mulher, negro
e LGBT como massas do nosso transformismo bolivariano. E a inserção de massas
universitárias no transformismo petista. O “Projeto Hegemonia” do PT foi um
agir transformista voltado para a decapitação pacífica dos intelectuais do
campo progressista: marxista e liberal.
O transformismo bolivariano brasileiro se colocou o problema
da unidade nacional submetido a uma unidade bolivariana latino-americana e
além, Aliás na própria Espanha, surgiu um partido político bolivariano que
naufragou com o fracasso do modelo econômico do campo da esquerda bolivariana
na Venezuela e no Brasil.
O campo de poderes/saberes da esquerda no poder político
significou uma ampliação da classe dirigente que ligou o Banco e parcela do
grande capital industrial urbano às massas proletárias, em geral, e à pequena
burguesia intelectualizada. A transformação da classe dirigente aparece como
conciliação da esquerda com setores da direita, do proletariado urbano com a
burguesia.
Pode-se falar de uma hegemonia intelectual, moral e política
no transformismo bolivariano?
A esquerda mexeu profundamente com o espaço moral da
sociedade brasileira, ao pôr mulher, negro e LGBT no comando da vida cotidiana
dos costumes e hábitos da moralidade pública e privada. Aliás, tem-se a
passagem da política do território para a política da grande personalidade
política (Lula).
O transformismo petista se entrelaçou com fenômenos do campo
de poderes/saberes progressista. Destaca-se a aliança do campo da esquerda com
o campo progressista materializado em fenômenos como a ciência brasileira e a
universidade estatal, bases subjetivas materiais de um Estado-Cientista brasileiro
(Châtelet:611).
Sucessora de Lula, Dilma Rousseff foi derrubada por uma agir
político parlamentar branco da direita. Seu vice-presidente da direita Michel
Temer fez parte da tomada do poder político que se desenvolveu como um
movimento político que acabou por levar Bolsonaro à presidência da República.
Por um lado, o rústico Bolsonaro personifica uma lógica de
destruição da possibilidade da esquerda voltar ao poder brasileiro. Por outro
lado, o governo Bolsonaro ataca a aliançada esquerda com o campo progressista.
Os alvos do governo de Bolsonaro são a universidade estatal, a ciência
brasileira, e a parcela da revolução do secularismo - que tem como signos:
mulher, negro e LGBT.
Bolsonaro fez aliança com o campo dos poderes/saberes cristão
do americanismo. Este campo abrange cerca de 40 milhões de pessoas no Brasil. O
campo da direita secular no poder político se mantém a partir de uma aliança
com frações sociais rotundas do campo religioso.
2
Há uma relação causal entre a ausência de Reforma Protestante
na Itália e o transformismo. (Gramsci. V. 32:1985). A Reforma Protestante produziu
um novo campo de poderes/saberes moderno-progressista, religioso, na Europa em
um contraponto ao campo de poderes tradicional do papado. Com a Reforma a seita
tomou o lugar da Igreja:
“Isto significa que a comunidade religiosa – a ‘Igreja
visível’ na linguagem das igrejas da Reforma – já não era considerada como um
tipo de fundação fideicomissória para fins extraterrenos, como uma instituição
que necessariamente incluísse, tanto os justos, como os injustos, seja para
aumentar a glória de Deus (calvinista), seja como um meio de trazer aos homens
os meios de salvação (católica e luterana), mas apenas como uma comunidade de
pessoas crentes e redimidas, e somente destas. Em outras palavras: não uma
igreja, mas uma ‘seita’”, (Weber: 102).
Um campo de poderes religioso centralizado e centralizador
passa a ter como rival um campo de poderes descentralizado e pluralista. A monarquia papal passa a disputar o terreno
da hegemonia do poder político indireto (poder de direção intelectual, moral e
política sobre as massas populares) com a democracia protestante de massas liberais
no mundo-da-vida.
No Brasil, a Reforma “Protestante” advém através de seitas
evangélicas do americanismo. Um campo de poderes religioso se ergue a partir da
gramática anarco-capitalista, ou seja, de uma ideologia econômica, religiosa,
extremista neoliberal. O espírito de seita evangélico confronta-se com a
hegemonia do papado sobre as massas populares e a hegemonia do Estado secular
sobre a sociedade civil.
O anarco-evangelismo dos pastores se aliou naturalmente ao
campo da direita extremista gerando um período de delírios políticos,
subjetivismo fanático e uma atmosfera irrespirável para o secularismo
progressista. A penetração do anarco-evangelismo nas estruturas do Estado
distorce a ideia de um Estado laico e republicano inscrito na Constituição 1988.
Assim chegamos a uma realidade político compósita e heteróclita impossível de
ser gramaticalizada pela população secular.
O dilema brasileiro é ser um país na terceira década do século
XXI sob comando de gramáticas civil/secular versus religiosa que não se
misturam na vida política. Quando se “misturam” produzem fenômenos bizarros
como o bolsonarismo. A política brasileira do presente é um Frankenstein.
As gramáticas do presente foram tecidas ao longo da história
brasileira na modelação e regulação dos campos de poderes habitados por
sujeitos-indivíduos, instituições e massas gramaticalizáveis, em alguma medida.
O caráter inconsistente dos sujeitos é um traço da vida brasileira. Os sujeitos
não suportam carregar gramáticas em sua subjetividade, não suportam a vida do
cotidiano como subjetividade. Um traço da gramática do anarco-evangelismo é a
consistência que ele inscreve no campo dos sujeitos. As massas evangélicas da
atualidade são massas políticas muito fiéis e até fanáticas ideologicamente.
Elas esperaram um líder até aparecer Bolsonaro.
A política brasileira transbordou as concepções modernas
secularistas. Não se pode fazer política, entre nós, excluindo dezena de
milhões de evangélicos. O debate de cultura política democrática brasileira tem
que incluir a religião como força prática da vida política e da organização do
Estado?
John Rawls põe e repõe o problema na sua exatidão e extensão:
“Portanto, coimo notei antes, o problema doo liberalismo
consiste em saber como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade
estável e justa de cidadãos livres e iguais, profundamente divididos por
doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis.”. (Rawls: 14).
A Constituição 1988 é um discurso virtual como gramática do
liberalismo político. As massas evangélicas na política são razoáveis?
3
O campo dos poderes da direita para conservar o poder político
tem que se comportar como os moderados italianos do Risorgimento? “Os moderados
conseguiram estabilizar o aparato (mecanismo) de sua hegemonia intelectual,
moral e política por meio da iniciativa individual, “molecular”, “privada”, e
não por um programa de partido elaborado e constituído segundo um plano de ação
prática e organizativa. Trata-se de um fato normal devido a estrutura e função
dos grupos sociais representados pelos moderados, e dos quais os moderados eram
a classe dirigente, os intelectuais orgânicos”. (Gramsci. V. 3:2011).
De fato, o poder de Estado e o parelho de Estado (Balibar:94)
sob comando de Bolsonaro aparece como um fator que bloqueia o campo da direita
de dar continuidade ao transformismo iniciado pelo campo da esquerda. Com
Bolsonaro, a ampliação da classe dirigente é interrompida e se estabelece uma
situação de regressão?
A articulação da hegemonia ocorre por meio do pessoal que
detém o poder de Estado econômico. O ministro da economia Paulo Guedes se impõe
como um intelectual “condensado” lembrando os moderados:
“Os moderados eram intelectuais ‘condensados’ e naturalmente
na organicidade de suas relações com os grupos sociais dos quais eram expressão
(para todo um setor deles se realizava a identidade de representante e
representados, o que significa que os moderados eram uma vanguarda orgânica, da
classe alta, porque eles mesmos pertenciam economicamente a classe alta; eram
intelectuais e organizadores políticos, e paralelamente chefes de latifúndios,
grandes agricultores ou administradores de propriedades, empreendedores
comerciantes e industriais etc.)”. (Gramsci. V. 3:2012).
O grupo de Paulo Guedes funciona como intelectual condensado,
representante do Banco, do Mercado Financeiro, e o pessoal do ministério da
agricultura é intelectual condensado representando o capital de commodities. O
próprio Bolsonaro e o ministro do meio ambiente representam o capital minerador,
madeireiros e pecuaristas na exploração da Amazônia. O ministro da educação
representa o capital privado do setor de ensino.
O bolsonarismo tem um projeto de poder de reprodução clânica.
Bolsonaro quer criar uma dinastia política plebeia se perpetuando no poder através
de seus filhos. Esse sonho bolsonarista é o fenômeno que quebra o transformismo
do campo da direita no poder político:
“Partindo desta condensação ou concentração orgânica, os
moderados exercitavam uma potente atração, de modo ‘espontâneo’, sobre toda a
massa de intelectuais de qualquer grau existente na península em estado ‘difuso’,
‘molecular’, inclusive pela necessidade, elementarmente satisfeita, da
instrução e a administração. Se põe de relevo aqui a consistência metodológica
de um critério de investigação histórico-política: não existe uma classe
independente de intelectuais, senão que todo grupo social tem seu próprio setor
intelectual ou tende a formá-lo; porém os intelectuais da classe historicamente
(e de maneira real) progressiva, em condições dadas, exercitam um poder tal que
termina, em última análise, subordinando aos intelectuais de outros grupos e
criando, um sistema de solidariedade entre todos os intelectuais com vínculos
de ordem psicológico (vaidade etc.) e , frequentemente, de casta (técnico-jurídico,
corporativo etc.) Este fato se verifica ‘espontaneamente’ nos períodos históricos
no qual o grupo social é realmente progressivo, faz avançar efetivamente a toda
a sociedade, satisfazendo não só suas exigências existenciais, como também ampliando
continuamente seus mesmos quadros por meio de uma continua tomada de possessão
de novas esferas de atividade econômico-produtivo”. (Gramsci. V. 3:2012).
A hegemonia do campo da direita teria que ocorrer através da cooptação
molecular dos intelectuais e também por uma cooptação en masse de intelectuais
do campo progressista. Estes fenômenos fazem pendant com a história econômica nacional.
O campo da direita de Bolsonaro e Paulo Guedes é ligado ao
desenvolvimento do subdesenvolvimento anarco-capitalista. Paulo Guedes é um
intelectual condensado com espírito de seita do privatismo neoliberal. Para ele,
a questão dos intelectuais inexiste. São Paulo Guedes não vê como um problema o
transformismo da classe dirigente do campo de poderes/saberes da direita. Ele é
possuído por uma visão de mundo economicista da história.
O campo da direita se expande se seguisse a tática do campo
da esquerda, que se expandiu penetrando no campo progressista. O Estado-cientista
(universidade estatal, ciência brasileira, instituições de pesquisas científicas
ligadas ao aparelho produtivo) é o fenômeno tático para um projeto de poder que
tenha como objetivo a construção de um novo modelo econômico.
O campo progressista de poderes/saberes é a chave para a invenção
da política brasileira da terceira década do século XXI. O Brasil pode se constituir
como um polo de hegemonia econômica nas Américas. Para isso, a classe dirigente
deve buscar uma unidade dialética como articulação de hegemonia e dominação (a
dominação deve ter como objetivo trazer a paz para as cidades sob domínio das
organizações criminosas). Esta articulação só pode acontecer se a classe
dirigente se tornar hegemonia economicamente com a construção de um modelo econômico capitalista que deixe para trás o
subcapitalismo (ersatz de capitalismo) na forma atual de capitalismo
subdesenvolvido neoliberal.
O campo da direita sob direção de Bolsonaro e Paulo Guedes é
o representante do subcapitalismo brasileiro. Toda uma superestrutura funciona como
um fenômeno de sustentação e reprodução do capitalismo subdesenvolvido
neoliberal. Economistas do Mercado Financeiro, grande imprensa, mass media, partidos
no parlamento e nos governos estaduais e municipais, Exército, universidade
privada, instituições culturais, e muitos outros fenômenos.
As forças econômicas de sustentação do subcapitalismo são bem
visíveis na atual conjuntura econômica. São elas: Banco, Mercado Financeiros,
capital comercial, grande setor de serviço, capitalismo de commodities bolsonarista,
classe média patrimonial, massas anarco-evangélicas, fantasma do capital
americano minerador do partido republicano, capital industrial em colapso,
capital digital americano da sociedade de comunicação de massa.
Enfim, o campo da direita no poder político significa o
transformismo em colapso.
BALIBAR, Étienne. Cinq études du matérialisme historique.
Paris: Maspero, 1974
CHÂTELET E PISIER-KOUCHNER, François e Évelyne. Les
conceptions politique du XX° siècle. Paris: PUF, 1981
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. V. 3. Torino:
Einaudi, 1977
RAWLS, John. Libéralisme politique. Paris: PUF, 1993
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo.
SP: Pioneira, 1981
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