José Paulo
O <Risorgimento> é o evento da história da produção da unidade italiana. Gramsci é o autor intelectual que revela para
o leitor a unidade cultural política, cultural econômica e literária (fenômenos
contidos na formação ideológica italiana) da gramática Risorgimento.
Começo com uma proposição de Gramsci: “‘A inúmera variedade
dos sucessos revolucionários’ se somente atribui em bloco a um ente
‘Revolução”, no lugar de ‘assignar cada fato ao indivíduo ou aos grupos de
indivíduos reais que foram historicamente autores’. (Gramsci. V. 3: 1981).
Para ler a história é necessário investigar e descobrir os
autores históricos dela.
O Risorgimento se define como um problema histórico: a
história da formação da unidade italiana, da Itália como nação moderna, problema
da gramática histórica (Gramsci. V. 3:2341-2342) da formação do moderno Estado nacional
italiano. (Gramsci. V. 3:1981).
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O PROBLEMA do Risorgimento brasileiro é uma história que
começa no século XIX. Neste século, há aquela formação de um Estado “nacional” com
banhos de sangue vertidos no computo dos interesses “nacionais”, internacionais
e locais. A monarquia foi o autor decisivo da constituição do Estado territorial
centralizado e centralizador contra indivíduos e grupos de indivíduos
envolvidos com as lutas da divisão do país em diversos países.
No nosso século XIX, o Risorgimento foi uma realidade fática.
Ele não foi produzido a partir das lutas intelectuais e da pequena burguesia
contra as forças das classes econômicas atrasadas e politicamente incapazes.
(Gramsci. V. 3: 1980).
Comparando com a Itália, o Brasil é uma história de
anarco-empirismo glorioso; “Realmente a unidade nacional é percebida como
aleatória, porque forças ‘selvagens’ não conhecidas com precisão, elementarmente
destrutivas, se agitam continuamente em sua base. A ditadura de ferro dos
intelectuais, de alguns grupos urbanos e da propriedade terratenente, mantém
sua coerência sobre excitando a seus elementos militantes com este mito da
fatalidade histórica, mais forte do que carência e que qualquer inépcia
política e militar”. (Gramsci. V. 3: 1980).
No Brasil, a produção de uma literatura capaz de se aliar ao
fenômeno político Risorgimento teve um escasso alcance nacional. Tal literatura
floresce, na história moderna, nos momentos mais característicos de crises
político-social, quando a separação entre governantes e governados se torna
mais profunda e parece anunciar sucessos catastróficos para a vida nacional
(Gramsci. V. 3:1975).
O século XIX brasileiro, foi um século catastrófico na sua
primeira metade. E, no entanto, não foi produzida uma literatura que interpretasse
a situação catastrófica, que elaborasse a situação como um problema nacional.
Que propusesse soluções para a saída da crise histórico-política.
Uma outra característica do passado brasileiro é a ausência
de produção literária voltada para a formação de ideologias que ligassem as
massas à classe dirigente. Certamente, a ausência de massas civis e
livres foi uma causa dessa faceta da história. O modo de produção escravista
cria uma classe dirigente que não é, realmente como cultura política, uma
classe dirigente. Assim, não há necessidade da existência de uma esfera
ético-política, esfera intelectual da articulação da hegemonia.
Gramsci diz:
“as reações espontâneas (e enquanto o sejam) das massas
populares podem só servir para indicar a ‘força’ direcional das classes altas;
na Itália, os liberal-burgueses descuidaram sempre das massas populares”. (Gramsci. V. 3:1973).
Sem massas populares livres tout court, sem sociedade
civil, sem intelectuais voltados para a articulação da hegemonia das massas, a
unidade “nacional” foi uma obra da dominação da monarquia. Corrigindo. A
monarquia estabelece a unidade territorial, não a unidade nacional. Toda uma cultura literária foi produzida
desvinculada de movimentos social, político ou cultural. Daí o livro
“Abolicionismo”, de Joaquim Nabuco, ser exceção à regra.
O passado pesa como chumbo no cérebro dos vivos. Na quase
terceira década do século XXI, a história brasileira se movimenta como o avesso
do Risorgimento. Forças de uma potência indescritível trabalham abertamente
para dissolver o Brasil-Nação, sem destruir a unidade territorial “nacional”.
Esse fenômeno se apresenta como não afetando a geografia política do país. Ele
não é um fenômeno político geográfico. Como é possível acabar com a unidade
nacional sem destruir a unidade territorial? O que acontece, acontecerá, com o simulacro
de simulação do Estado moderno nacional?
A falta de aparecimento de novos correntes ideológicas de
sublimação da unidade territorial sem unidade nacional, a falta de uma
literatura que gere uma consciência desse fenômeno é uma atualização do nosso
passado do Risorgimento monárquico (e republicano).
O nosso Risorgimento faz a transição da monarquia para a
república sem cultura política objetiva (Gramsci. V. 3:1965). Parafraseando
Gramsci: “inclusive é evidente que a debilidade orgânica de um complexo
‘vertebrado’ no curso do desenvolvimento é a origem desse desenfrear, de
‘subjetivismo’ arbitrário, muito frequentemente caprichoso, bizarro e
extravagante”. (Gramsci. V. 3: 1974).
A república não chega a se articular como cultura política
criada em fontes ideológicas de autores ou escolas de literatura política. Lima
Barreto escreveu a gramática do republicanismo democrático no início da
República e foi, completamente, ignorado. A república jamais se constituiu como
um problema histórico sério para os intelectuais e a pequena burguesia
republicana. Estas forças que ligam, historicamente, o Risorgimento ao Estado
republicano moderno.
Na atualidade do avesso do Risorgimento como história da
unida nacional, o conjunto das interpretações da crise do Brasil-nação são de
caráter político-ideológico imediato, ou seja, não histórico. Um filósofo
universitário, paulista, marxista-cultural, fala da inutilidade de
interpretação histórica do presente. Temos um presente e um futuro sem passado.
Gramsci diz:
“Para que um evento ou um processo de sucessos históricos
possa dar lugar a um gênero tal de literatura, é de imaginar o seguinte: que
seja pouco claro e justificado em seu desenvolvimento pela insuficiência das
forças ‘intimas’ que o produziram; pelas escassez de elementos objetivos
‘nacionais’ aos quais referir-se; pela inconsistência e gelatinosidade do
organismo estudado”. (Gramsci. V. 3: 1974).
Se há cultura política brasileira, ela é inconsistente e
gelatinosa. O mesmo sentido se aplica à classe dirigente, às massas populares.
Estas podem explodir em movimento expontaneísta sem este se traduzir em
ideologias políticas fabricadas pela atividade dos intelectuais, que se
atualizem como campo de poderes/saberes progressista capaz de criar um fato
nacional-popular de massas.
A destruição da unidade nacional (unidade mesmo que só virtualmente
definido na Constituição 1988) não
encontra resistência em um ambiente onde o popular-nacional é coisa de festa
caipira e folclore midiático. Elites nacionais só existem na junção com fatos
do nacional popular de massas urbanas.
Toda a inconsistência e gelatinosidade da cultura
nacional-popular acaba por gerar um ambiente favorável ao uso da linguagem “nacional”
anarco-empirista. Esta é a irmã do subjetivismo na linguagem (política e
econômica). Não há uma linguagem objetiva para se fazer política e tratar dos
problemas econômicos nacionais. Nem para se tratar do avesso do Risorgimento
supracitado.
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O nosso Risorgimento produz um pensamento político? O
sociólogo Raymundo Faoro diz:
“A consciência da exploração do sistema colonial se expressa
na ideologia liberal, que é, ao mesmo tempo, uma filosofia política. O
pensamento político – tal como o conceituamos neste ensaio, como integrado na
práxis - tem conexão necessária com o liberalismo? Por que, sem exame crítico,
identificar a inassimilação, que não chegou a criar uma consciência nacional,
como um tipo cultural?”. (Faoro: 58).
Faoro prossegue:
“Um pensamento político sem liberalismo, essa a conclusão? Na
verdade, um pensamento político que o arredou, que vitoriosamente lutou para
arredá-lo da vida nacional – o que não é a mesma coisa”. (Faoro: 84).
O Risorgimento italiano se caracteriza por ser um fenômeno
liberal e moderno?
“O século XVIII foi visto desde o ângulo visual do Risorgimento,
e como Risorgimento ele mesmo; com sua burguesia agora nacional; com seu
liberalismo que abarca tanto a vida econômica como a religiosa e depois a
política, e que não é tanto um ‘princípio’ quanto uma exigência dos produtores;
com aquelas primeiras concretas aspirações a uma forma qualquer de unidade”. (Gramsci.
V. 3: 1969).
Talvez já seja a hora de admitir que não existe pensamento
político brasileiro:
“574. Uma frase e, por isso, num outro sentido, um pensamento
podem ser a ‘expressão’ da crença, da esperança, da expectativa etc., mas crer
não é pensar. (Uma anotação gramatical). Os conceitos de crer, esperar, ter
esperança são de espécies menos diferentes uma da outra do que o são o do
conceito de pensar”. (Wittgenstein:157).
A política brasileira não faz pendant com o pensamento
político. Ela é do domínio da crença, da esperança, da expectativa. O Brasil
não metaboliza o pensamento político gramatical.
O Risorgimento italiano encontra sua gramática no pensamento
político de Gramsci?
Gramsci diz:
“da história do Risorgimento, pequena história,
insuficientemente regada de sangue; da unidade, donde uma fortuna propicia mais
que o mérito adquirido pelos italianos; do Risorgimento, obra de minorias
contra a apatia da maioria. Esta tese originada na incapacidade do materialismo
histórico de compreender em si a grandeza moral, sem a estatística empírica da
abundância de sangue vertida e o computo dos interesses (tinha uma
especificidade fácil e estava destinado a ser divulgada em todas as revistas e
diários e a fazer que os ignorantes denegrissem a obra perdurável de Mazzini e
Cavour), esta tese servia de base a Marconi para una argumentação moralista de
estilo vociano”. (Gramsci. V. 3: 1982).
O Risorgimento brasileiro não encontra na República seu autor
capaz de produzir uma gramática da unidade nacional indefectível. Ao contrário,
a gramática italiana é dita assim:
“As observações críticas de Omodeo à concepção do
Risorgimento como ‘pequena história’ são mal-intencionadas e triviais, e não
conseguem captar como tal concepção foi a única tentativa um pouco séria de
‘nacionalizar’ as massas populares, isto é, criar um movimento democrático com
raízes e exigências italianas”. (Gramsci. V. 3: 1983).
A gramática da história é aquela da história do presente:
“E se escrever história significa fazer a história do
presente, é um grande livro de história aquele que no presente auxilia as
forças em desenvolvimento a converter-se em mais conscientes de si mesmas e,
por isso, mais concretamente ativas e factíveis”, (Gramsci. V. 3:1983-1984).
A diferença básica entre gramática e ideologia parece no
parágrafo seguinte:
“O defeito máximo de todas estas interpretações ideológicas
do Risorgimento consiste no seguinte: que tem sido meramente ideológicas, ou
seja, não se dirigiam a suscitar forças políticas atuais. Trabalho de
literatos, de dilettantis, construções acrobáticas de homens que queriam
fazer ostentação de talento e não de inteligência, ou bem, inclinados a
pequenas rusgas intelectuais sem futuro, ou bem, escritas para justificar as
forças reacionárias em perigo, emprestando-lhes intenções que não tinham, fins
imaginários e, portanto, prestando-lhes
pequenos serviços de lacaios intelectuais (o tipo mais completo destes lacaios é
Mario Missiroli) e de mercenários da ciência”. (Gramsci. V. 3:1984).
As interpretações ideológicas são do domínio do
anarco-empirismo:
“Estas interpretações ideológicas da formação nacional e
estatal italiana devem ser estudadas de outro platô: o que acontece é
‘acrítico’, por iniciativas individuais de personas mais ou menos ‘geniais’, é
um documento do primitivismo dos velhos partidos políticos, do empirismo
imediato (grifo meu) de toda ação construtiva (compreendida a do Estado),
da ausência na vida italiana de todo movimento ‘vertebrado’ que tenha em si a
possibilidade de desenvolvimento permanente e contínuo”. (Gramsci. V. 3:1984).
O domínio das ideologias anarco-empiristas na interpretação
do Risorgimento conota falta de gramática, sgrammaticatura:
“A falta de perspectiva histórica nos programas de partido,
perspectiva construída ‘cientificamente’ – isto é, com seriedade escrupulosa,
para basear em todo o passado o fim a alcançar no futuro e propor ao povo como
uma necessidade com a qual colaborar conscientemente – tem permitido o florescimento de tantas novelas ideológicas,
que constituem na realidade a premissa (o manifesto) de movimentos que são
abstratamente supostamente necessários mas, para despertá-los, nada é feito
então na prática (Gramsci. V. 3: 1984).
A ideologia anarco-empirista não é constituída por um rol de
ideias práticas, e sim por abstrações caprichosamente arbitrárias, bizarras. As
ideais práticas são fabricadas na atualização da gramática virtual da política,
por autores, em uma situação concreta dada.
O abstracionismo midiático é parte de uma gramática da
sociedade de comunicação de massa (incluindo os cibernautas), que aparece,
antecipadamente, em uma cena da imprensa italiana:
“Este modo de proceder muito útil as operações das que,
frequentemente, se designam como ‘forças ocultas’ ou ‘irresponsáveis’ que têm
por porta-voz aos ‘diários independentes’; os que tem necessidade, de vez em
quando, de criar movimentos ocasionais de opinião pública e de suscitar acessos
de paixão até alcançar determinados objetivos e deixá-los depois languidescer e
morrer. São manifestações como ‘as empresas de mercenarismo’, verdadeiras e
próprias <corporações econômicas> de mercenarismo ideológico, prontas
a servir aos grupos plutocráticos ou de outras naturezas, frequentemente,
precisamente, fingindo lutar contra a plutocracia. Organizador típico de tais
“companhias” foi Pippo Naldi, discípulo também ele de Oriani e administrador de
Mario Missiroli e de suas improvisações jornalísticas”. (Gramsci. V. 3:
m1984-1985).
No Brasil, o patriarca Roberto Marinho deixou como herança
familial o Grupo Globo. Roberto seria o nosso Mário Missilori? O Grupo Globo a
corporação econômica com táticas homólogas ao dos “diários independentes”
italianos da década de 1930.
Retomaremos na parte 2.
FAORO, Raymundo. Existe um pensamento político brasileiro?
SP: Ática, 1994
Gramsci, Antonio. Quaderni del Carcere. V. 3. Torino: Einaudi,
1977
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. SP: Abril
Cultural, 1975
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