quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

CAPITALISMO SUBDESENVOLVIDO EVANGÉLICO


José Paulo


Nas páginas policiais da grande imprensa, o capitalismo criminoso é o sujeito de uma narrativa jornalística macabra. O capitalismo criminoso é a junção de práticas criminosas (tráfico de drogas, tráfico de seres humanos, tráfico de armas, economia miliciana, lavagem de dinheiro etc.) com Bancos e Mercado Financeiro (Platt: 45, 101, 174)). O dinheiro gerado no crime é objeto de uma lavagem de dinheiro no departamento 3 da economia capitalista globalizada. Departamento da produção de dinheiro, circulação de dinheiro, produção dos meios de troca. (Rosa: 73).
O capitalismo globalizado é plurivocidade de história econômica. Assim, parto da distinção entre história econômica capitalista desenvolvida, industrial, cibernética e história econômica subdesenvolvida capitalista com indústria tradicional - ou subdesenvolvida sem indústria.
O capitalismo criminoso é a expansão do capitalismo como economia ilegal. A relação dele com o Estado nacional aparece na forma do <criminostat> (Virilio: 55).  O Estado criminoso é parte de uma gramática da política que transforma gramaticalmente o conceito weberiano de Estado como monopólio legítimo dos meios de violência, ou a política como legitimidade instituída a partir do modelo de legalidade das práticas do Estado nacional:
“Todas as organizações têm perfis políticos, mas apenas no caso do Estado é que envolve a consolidação de um poder militar em associação ao controle dos meios de violência dentro de uma extensão territorial. Um Estado pode ser definido como uma organização política cujo domínio é territorialmente organizado e capaz de acionar os meios de violência para sustentar esse domínio. Tal definição é próxima daquela de Weber, mas não destaca uma reivindicação ao monopólio dos meios de violência ou o fator legitimidade”. (Giddens: 45).
O Estado nacional profano sem legitimidade e sem monopólio da violência real tem no Brasil da terceira década do século XXI um exemplar escarrado. O Estado empírico brasileiro é uma espécie bem desenvolvida de <criminostat> como forma política do capitalismo criminoso do subdesenvolvimento.
O <criminostat> aparece na forma política do <Estado de segurança policial/militar, público/privado evangélico>. Este Estado de segurança desfechou um golpe de Estado na democracia representativa boliviana e, parece, ter destruído a política legal boliviana. No Brasil, ele pode vir a ser a força histórica de destruição do Estado democrático da Constituição 1988.
A história econômica do subdesenvolvimento não é um monopólio da periferia do capitalismo globalizado. Nos Estados Unidos, Donald Trump se tornou o condottiere do desenvolvimento da história econômica do capitalismo subdesenvolvido industrial, nuclear, minerador, petrolífero etc. E com Trump, o Estado nacional americano se enfraqueceu diante da expansão do capitalismo criminoso no território econômico/estatal americano.  A aliança informal entre Trump e Bolsonaro obedece a essa lógica do desenvolvimento do subdesenvolvimento via capitalismo criminoso e <criminostat>, no Estados Unidos e no Brasil. 
A eleição americana presidencial próxima será movida pela contradição entre a conquista, integral, da “hegemonia” da história econômica subdesenvolvida (com ênfase no capitalismo ilegal) e a resistência do capitalismo desenvolvido, industrial, cibernético.  
Com a categoria de subdesenvolvimento capitalista com 10% de indústria, o Brasil evita a vir fazer parte dos países subdesenvolvidos sem indústria, dos países africanos integrados ao capitalismo globalizado através das redes de comércio e exploração extrativista, predatória colonial, de minérios para a indústria tradicional e indústria cibernética da China, por exemplo. 
O esforço do governo Bolsonaro parece ser o de destruir os 10% da indústria em solo brasileiro. No caso brasileiro, o subdesenvolvimento sem indústria urbana (apenas com indústria rural de commodities) aponta para a “hegemonia” absoluta do capital financeiro no bloco no poder (Poulantzas:65-70) neoliberal do subdesenvolvimento.
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O capitalismo desenvolvido funciona por uma relação entre princípio da realidade e princípio do prazer distinta do capitalismo subdesenvolvido. Ele busca sua legitimação pelo alto da divisão do trabalho das profissões do trabalho universitário. Para os países subdesenvolvidos tradicionais, o Estado-cientista (Châtelet: 607, 610) é a forma política de uma presença do princípio da realidade lacaniano que se ancora na fantasia (Lacan. S. XIX: 75) da passagem do subdesenvolvimento para o desenvolvimento capitalista.  A sociedade industrial do capitalismo cibernético asiático é a fantasia lacaniana da inserção de países asiáticos na luta da história econômica desenvolvida contra a história econômica subdesenvolvida.
A sociedade do capitalismo desenvolvido é baseada em uma fantasia da responsabilidade e da autonomia do trabalho em relação as cadeias hierárquicas tradicionais da divisão do trabalho na fábrica e nasociedade:
“Todos os dispositivos associados ao novo espírito do capitalismo – quer se trate da terceirização, quer da proliferação nas empresas de centros autônomos de lucro, de círculos de controle de qualidade ou das formas de organização do trabalho – de fato vieram, em certo sentido, atender às demandas de autonomia e responsabilidade que se fizeram ouvir no início da década de 70 em tom reivindicativo: os executivos desligados de suas linhas hierárquicas para assumirem ‘centros autônomos de lucro’ ou para realizar ‘projetos’ e os operários subtraídos às formas mais divisionárias de organização do trabalho em linha de montagem, realmente perceberam que seu nível de responsabilidade aumentou, ao mesmo tempo que era reconhecida sua capacidade para agir de maneira autônoma e para demonstrar criatividade”. (Boltanski: 430).
Trata-se de uma clara junção do princípio de realidade e princípio do prazer na divisão do trabalho profissional universitário e fabril. O gozo da responsabilidade aliado ao da autonomia criativa pôr o princípio do prazer como elemento definitivo no processo de trabalho do capitalismo desenvolvido e na administração fabril deste capitalismo.    
A história econômica do subdesenvolvimento disputa passo a passo a hegemonia com o capitalismo desenvolvido:
“Faltam ao trabalho informal as qualidades de vínculos empregatícios normais. Estes consistem sobretudo em contratos regulares e judicialmente cobráveis, na proteção contra demissões sem justa causa, na previdência social, na representação dos interesses dos trabalhadores pelos sindicatos, nos direitos de ser ouvido e de cogestão, nos salários e jornadas de trabalho que permitem uma vida digna. Por um lado, os dados sobre o trabalho informal, a economia informal ou paralela [<Schattenwirtschaft>, <black economy>] – esses dois conceitos designam cautela. Mas independentemente de como se mede e avaliam os dados, aumenta o significado da informalidade, isto é, o número dos que foram excluídos da economia formal. Isso vale sobretudo para os países do chamado Terceiro Mundo, e desde o colapso do socialismo real também existe nos países em vias de transformação na Europa Central e Oriental. Em muitas regiões do mundo, principalmente na América Latina, na África e na Ásia, o número de trabalhadores com empregos informais é superior ao daqueles com empregos formais. Também nos países industriais desenvolvidos da América do Norte e da Europa o ‘vínculo empregatício normal’ regulamentado desde a década de 1970 pelos direitos trabalhistas e social perde a sua dominância empírica e sua função normativa como ideal norteador (conforme constatou recentemente também o Banco Central alemão no seu relatório de julho de 2005). No início do século XXI, a segurança socioeconômica, tal como definida pela OIT, parece ter se tornado um privilégio de uma minoria social na maioria dos países do mundo”. (Altvater: 293).
No Brasil, a sociedade do trabalho precário substitui a sociedade salarial moderna como forma econômica da passagem da sociedade industrial dependente para a sociedade subdesenvolvida:
‘A vitória do capital sobre o trabalho aparece como uma catástrofe para a sociedade capitalista, pois, ela sofre uma involução em termos de direitos da modernidade. A era dos direitos é substituída pela era do não direito: precarização da vida em sociedade na falta do discurso do direito moderno articulatório: direito como laço social capitalista moderno civilizatório”. (Bandeira da Silveira: 182)

No subdesenvolvimento da América Latina, especialmente no Brasil, o emprego informal faz pendant com o emprego formal precário constitucionalizado:
“O capitalismo globalizado neoliberal aprofunda a insegurança socioeconômica com a expansão do emprego informal. A sociedade salarial não é mais o palco da luta de classes por direitos trabalhistas. A proletarização neoliberal forçada faz da sociedade do trabalho um espaço de precariedade econômico-existencial absoluta”. (Bandeira da Silveira: 182).    
   A propósito, a relação do subdesenvolvimento capitalista com a natureza segue a mesma linha de força de tornar a sociedade brasileira uma sociedade da precariedade absoluta:
“O governo Bolsonaro desmantelou o Estado nacional (Estado-cientista) protetor da Floresta Amazônica. O resultado é uma aceleração das queimadas em uma escala que se tornou uma ‘crise internacional’. O governo fala em proletarizar 20 milhões de ´pessoas dos povos amazônicos. Uma alteração radical na relação natureza e economia tem a mediação do Estado predador neoliberal entre o capital agrário e a natureza. O resultado imediato disso é a politização das condições de produção capitalista subdesenvolvida”.
“Um bloco no poder neoliberal com forte presença da burguesia rural industrial (agrária, mineradora, madeireira, pastoril) ocupa uma posição tática no Estado neoliberal alterando o equilíbrio de força entre a natureza e o capitalismo. Tal evento desenvolve o subdesenvolvimento neoliberal (aprofunda o subdesenvolvimento do século XXI). No novo equilíbrio de forças, os povos da Floresta, bichos, enfim, fauna e flora existem como direitos perdidos, direitos consagrados feito letra morta na desatualização da Constituição 1988”. (Bandeira da Silveira: 181).
A história econômica do subdesenvolvimento faz pendant com a revolução cibernética do capitalismo industrial globalizado na medida em que esta afeta a linguagem da cultura econômica mundial:
“A revolução cibernética do capitalismo globalizado produz outra história que varreu para as calendas gregas a linguagem econômica e a linguagem do campo de poderes político mundial pré-diluviano. Categorias como imperialismo, colonialismo ou neocolonialismo, Estado desenvolvimentista, nação, Estado-nacional, socialismo, subdesenvolvimento, periferia, países dependentes etc. se tornam obsoletas, são foracluídas da cultura econômica mundial. Outras categorias aparecem como países emergentes, países em desenvolvimento na África e se mantem a categoria país desenvolvido avançado”. (Bandeira da Silveira: 172). 
A crítica da linguagem econômica neoliberal retoma o fenômeno do subdesenvolvimento como expansão irrefreável da história econômica capitalista da globalização subdesenvolvida em luta pela hegemonia com o capitalismo desenvolvido, industrial, cibernético.
As gramáticas do capitalismo globalizado desenvolvido fazendo pendant com o capitalismo subdesenvolvido devem ser observadas assim:
“A revolução cibernética é o corte no fluxo histórico do campo de ´poderes/saberes econômico que criou o departamento 4° do capitalismo mundial: departamento cyber. Este é o motor econômico dinâmico de acumulação capitalista e de reprodução ampliada do capital cyber. É também o modo de articulação dos outros departamentos produtivos e do departamento 3°, ou seja, do departamento do dinheiro cyber. O departamento 4° mudou em profundidade o complexo industrial-militar mundial”. (Bandeira da Silveira: 171-172).
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O capitalismo evangélico subdesenvolvido é uma vontade de poder que se afina com práticas criminosas e vontade de instituir um Estado subdesenvolvido neoliberal noir legitimado pelo campo de saber da fé religiosa. Trata-se de um Estado que já não é um Estado tout court.   
O capitalismo evangélico subdesenvolvido abarca o capitalismo criminoso das igrejas em junção com práticas criminosas no mundo da vida e golpe de Estado no Estado democrático na América Latina. No Brasil, a militarização policial de certas igrejas neopentecostais tem o claro objetivo de preparação de um golpe de Estado que possibilite a implantação de uma ditadura bolsonarista?
O capitalismo criminoso é composto por grupos intermediários não assujeitados à autoridade soberana do Estado legal. Eles fazem parte do fenômeno bizarro Estado noir, do criminostat, de um certo anarco-empirismo institucional do capitalismo subdesenvolvido evangélico. O anarcocapitalismo é um fenômeno que se desenvolve de forma acabada com o capitalismo subdesenvolvido evangélico. Os grupos intermediários evangélicos agem como massas da política olocrática de assalto ao poder político do Estado legal, que vai deixando de ser um Estado em si.  
Em 2018, os grupos evangélicos elegeram Bolsonaro presidente da república em uma aliança com o campo da direita neoliberal. Assim, se constitui um bloco no poder do capitalismo evangélico subdesenvolvido com as massas evangélicas como “classe-apoio”.
Os grupos intermediários do cristão político são a base social de um campo de poderes/saberes da conquista do poder político e conservação deste pelo campo da nova direita.
O capitalismo subdesenvolvido evangélico põe e repõe um problema elementar para as nações: é possível um país manter sua unidade política ou territorial sem sociedade política tout court?
“Longe de estar em antagonismo com esse gruo social detentor da autoridade soberana, mas especialmente chamado de Estado, o Estado lhe supõe a existência; só existe onde eles existem. Não havendo grupos secundários, não haverá autoridade política ou, quando menos, não haverá autoridade que, sem impropriedade, possa ser assim chamada”. (Durkheim: 42).
Com os grupos secundários criminosos do subdesenvolvimento em antagonismo urbano com o a autoridade política soberana ainda se pode falar de sociedade política?
A sociedade política real se define assim:
“é a sociedade política, que definiremos como formada pela reunião de um número mais ou menos considerável de grupos sociais secundários, sujeitos à mesma autoridade, independente, ela própria, de qualquer outra autoridade superior regularmente constituída”. (Durkheim: 41).
Com os fenômenos políticos do capitalismo evangélico subdesenvolvido supracitados, a sociedade política passa a ser apenas um artefato de uma narrativa ficcional. A sociedade política ficcional é um artefato do discurso das instituições da ordem política legal em colapso, do cientista político turrão e do jornalista neoliberal.   
O capitalismo subdesenvolvido evangélico é anarcocapitalismo, pois, formado por grupos secundários anti-Estado nacional moderno:
“chamaremos mais especialmente de Estado os agentes da autoridade soberana, e de sociedade política o grupo complexo do qual o Estado é o órgão eminente”. (Durkheim: 44).  
O anarcocapitalismo subdesenvolvido dissolve o Estado tout court:
“Quando o Estado pensa e se decidi, não cabe dizer que é a sociedade que se decidi por ele, e, sim, que ele pensa e se decidi por ela. O Estado não é simples instrumento de canalizações e concentrações; é, em certo sentido, o centro organizador dos próprios subgrupos”. (Durkheim: 46).
O fim do fluxo histórico Estado aparece no desenvolvimento do subdesenvolvimento anarcocapitalista evangélico:
“O que define o Estado é um grupo de funcionários <sui generis,> onde se elaboram representações e volições que envolvem a coletividade, embora não sejam obra da coletividade”. (Durkheim: 46).
Ao contrário, o capitalismo subdesenvolvido evangélico é o culto ao indivíduo religioso que quer usar a fé (campo de saber/poder) para enriquecer rápido e ter um corpo saudável, pois a religião cuida da vida psíquica no templo. Trata-se de uma recusa de aceitar a vida como materialidade e como materialismo. É um novo episódio do partido espiritualista contra o partido materialista.
A pobreza e a doença não são vistas como fenômeno do mundo da matéria, mas como tendo solução no mundo espiritual. Vive-se o avesso da vida da modernidade, já que esta tem como objetivo lutar contra a pobreza e a doença (luta das massas proletarizadas e dos intelectuais como sujeito). Torna-se obsoleto fenômenos como medicina social, Estado social, biopoder, todos base do materialismo da vida ocidental a partir do final do século XVIII e da sociedade industrial capitalista.
O Estado é abolido como órgão de pensamento social voltado para um fim político, e não especulativo ou espiritual. O Estado perde sua função de hegemonia, ou melhor, de liderança intelectual e moral no campo dos indivíduos/sujeitos:
“O Estado é, para falar com rigor, o órgão mesmo do pensamento social. Nas condições presentes, esse pensamento está voltado para um fim prático e não, especulativo. O Estado, ao menos em geral, não pensa por pensar, para construir sistemas de doutrinas e, sim, para dirigir a conduta coletiva, isso não tira que sua função essencial seja pensar”. (Durkheim: 47).  
Povoado por narrativas milenaristas, o que o século XXI nos reserva é uma vida sem sociedade política real, pois, esta tem que estar voltada para o indivíduo profano fazendo pendant com o bem comum. O indivíduo profano é o real da realidade das gramáticas capitalismo desenvolvido. O indivíduo evangélico é o real da vida do capitalismo subdesenvolvido.
O nosso século XXI destrói os significantes políticos profanos como hegemonia, dominação jurídico-política, democracia liberal etc. No lugar deles, aparecem narrativas de uma hegemonia e dominação ficcionais. Trata-se da destruição da política como a conhecemos em uma época de apocalipse ecológico.
A fusão de grupos evangélicos com grupos de aparelhos repressivos de Estado legal retira destes sua modernidade de ser uma força a serviço da luta da burguesia contra o proletariado. Esvazia, também, o aparelho repressivo como órgão voltado para a manutenção da ordem publica e da paz social.
A luta evangélica toma o lugar da luta de classes. A olocracia religiosa das massas pobres e doentes é a força histórica que permite profundas transformações na realidade do contemporâneo.
O antagonismo do evangélico noir com o Estado legal profano restaura a dialética social na relação entre elite e massas banhada pela plurivocidade de história econômica capitalista.

ALTVATER, Elmar. O fim do capitalismo como o conhecemos. RJ: Civilização Brasileira, 2010
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje. Lisboa: Chiado Books, dezembro 2019
BOLTANSKI E CHIAPELLO. O novo espírito do capitalismo. SP: Martins Fontes, 2009
CHÂTELET, PISIER-KOUCHNER. Les conceptions politiques du XX° Siécle. Paris: PUF, 1981
GIDDENS, Anthony. O Estado-Nação e a violência. SP: EDUSP, 2001
DURKHEIM, Emile. Lições de sociologia. A moral, o direito e o Estado. SP: T. A. Queiroz/USP, 1983
LACAN, Jacques. Le Seminaire. Livre XX. Encore. Paris: Seuil, 1975
PLATT, Stephen. Capitalismo criminoso. SP: Cultrix, 2017
POULANTZAS, Nicos. Pouvoir politique et classes sociales. V. 2. Paris: Maspero, 1971  
ROSA LUXEMBURGO. A acumulação do capital. RJ: Zahar, 1970
VIRILIO, Paul. Vitesse et politique. Paris: Galilée, 1977
  

   






   


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sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

St° TOMÁS - POLÍTICA E SOCIEDADE


José Paulo



Seguindo a leitura de Michel Bastit, ST° Tomás pensou a lei como um saber – constituído por regras jurídicas [de um campo de poderes]. A lei obedece ao princípio da razão em sua qualidade de princípio primeiro da ação de ordenar em direção a um fim., logo de ser fonte da regra e da medida das realidades e dos atos dos sujeitos em um campo de poderes estatizados.  
A lei é da ordem da obrigação, da obediência que não deve ser confundida com a sanção, com a coerção. A lei é um saber racional (<aliquid rationis>) e a sanção, coerção, é uma consequência deplorável, impertinente desse campo de saber/poder racional. (Bastit: 52-53).
Próximo da noção de hegemonia de Gramsci, ou seja, a hegemonia como direção intelectual e moral, a obrigação é uma relação que dispensa a força:
“Il peut donc bien y avoir, et il y a certainement rapport de moyen à fin, mais un certain rapport, qui est bien plutõt de convenance que d’obligation. Une loi seule oblige, parce que seule elle lie; c’est pourquoi, expression. de la raison législatrice divine, la conscience chrétienne prescrit toujours l’action comme une <obligation morale>, notion qui nous est aujourd’hui devenue si familière que nous oublions le tempo où elle apparut comme une nouveauté, et par qui elle fut inventée”. (Gilson.1989a:335).
A obrigação moral com as leis sociais sem recompensa encontra-se na base da gramaticalização do moderno conceito de hegemonia:
“C’est que la loi ne vise pas à récompenser le bien ou à punir le mal moral, mais à mantenir l’ordre dans la société”. (Gilson. 1989a: 330).  

A lei é a regra de uma atividade. Ela é, mais, precisamente, uma obrigação fundada sobre as exigências de alguma espécie de racionalidade. Em um país onde a irracionalidade política é vivida como um fato da natureza do povo e a elite, falar da razão é como mostrar forca em casa de enforcado:
“Chaque fois, en effet, qu’ une activité se soumet à une règle, c’est qu’elle en fait pour ainsi dire la mesure de as légitimité, qu’elle s’y attaché par conséquent comme à son priincipe et qu’elle s’oblige à la respecter. Or, quel príncipe régulateur des activités connaissons-nous jusqu’à présent, sinon la raison? C’est elle qui, dans tout les domaines, apparaît comme la régle et la mesure de ce qui se fait, de telle sorte que la loi, si vraiment elle n’est rien de plus que la formule de cette règle, se présente immédiatement comme une obligation fondée sur les exigences de la raison”. (Gilson. 1989b: 329)  

Há em ST° Tomás a ideia da regra jurídica articulando um campo de poderes/saberes racional?  
Há campo de saber jurídico desligado do campo de poderes estatizado ou não?
Com sua cultura universitária (Gilson. 1995:526), St° Tomás  pensa a política real na época das monarquias inglesa e francesa. (Châtelet: 20).  A universidade é um centro de poder gramatical, teológico e filosófico. A universidade de Paris era considerada pelos os papas como a segunda Atenas (Heidegger: 51-52), ao lado do poder eclesiástico no campo de poderes/saberes medieval. (Libera:413).  
O campo de saber jurídico é aquele do conhecimento prático possuído pela razão na luz a partir da qual nós podemos medir nossos atos, e os retificar se for preciso, para melhor aceder ao nosso fim que é estabelecer a conduta humana segundo o bem comum prático.
Laureano Robles e Ángel Chueca respondem as nossas indagações, sem vacilação:
“La existência del Estado nace de la misma naturaleza social, racional y libre del hombre. Esta naturaliza humana exige una autoridad o gestor encargado de procurar el bien común, y reclama a la vez que los hombres esclarecidos y destacados por su virtude y saber se pongan a la cabeza y al servicio de sus semejantes dirigiédolos. El hombre por naturaleza es um ser social y sociable, como había ya indicado Aristótoles. Para Tomás de Aquino un hombre asocial, o es um genio, um ser sobrehumano, o un animal; la vida asocial, o aestatal es un signo de naturaliza ‘beluina’, de infrahumanidad. Por debajo del hombre está, como ser no social, sino gregario, el animal; por encima del hombre, Dios”. (ST° Tomás: XLI).
O homem é sujeito social, sujeito estatal vivendo, portanto, em um campo de poderes/saberes estatizado:
“Pero corresponde a la naturaleza del hombre ser un animal sociable y político que vive en sociedad, más aún que el resto de los animales, cosa que nos revela su misma necesidad natural”. (St°Tomás:6).
O dirigente é da ordem do necessário na política: “Luego es preciso que en toda sociedad haya algo que la dirija”. (St° Tomás: 8). A política fazendo pendant com a sociedade significa a passagem do particular para o universal ou bem comum.:
Luego si la naturaleza del hombre exige que viva en uma sociedad plural, es preciso que haya en los hombres algo por lo que se rija la mayoría. Pues, al existir muchos hombres y preocuparse cada uno de aquello que le beneficia, la multitud se dispersaría en diversos núcleos a no ser que hubiese alguien em ella que cuidase del bien de la socieedad, como el cuerpo del hombre o de cualquier animal se desvanecería si no hubiese alguna fuerza común que lo dirigiera a buscar el bien común de todos sus membros”. (St° Tomás: 7).
A política pode ser aquela da liberdade ou da servidão:
“Porque es libre quien es por causa de sí mesmo, mientras que siervo es quien, cuanto es, lo es por causa de otro; luego si la sociedade de los libres es dirigida por quien gobierna hacia su bien común, se da un régime recto y justo, como corresponde a los libres. Si, por el contrario, el gobierno se dirige no al bien común de la sociead, sino al bien individual de quien gobierna, se dará um régime injusto y perverso (...). luego si llega un régime injusto solamente a causa de una persona, que busca en el gobierno su proprio beneficio pero no el bien de la sociedad a él sometida, tal dirigente es llamado <tirano>, nombre derivado de la palavra <fuerza>, porque oprime, con la fuerza y no gobierna con la justicia”. (St° Tomás: 8-9).
A política tirânica pode ser a política de uns poucos (oligarquia). Forma política de imensa atualidade em países subdesenvolvidos do século XXI, especialmente, na América Latina:
“Pero si en vedad no llega a haber un régime injusto solamente a causa de uno sino de vários, aunque no sean muchos, se le llama <oligarquia>, o sea, gobierno de poucos, cuando unos pocos oprimen a su pueblo, por ejemplo, por medio de las riquezas, diferenciándose del tirano únicamente en la pluralidad”. (St° Tomás: 9).
É possível pensar o Bem Comum em sociedades capitalistas? 
A ideia de fim perseguido pela política da sociedade permite que se possa pensar o bem comum como eixo da política:
“Pero sucede que los hombres se dirigen al fin apetecido de modos diversos, cosa que la misma diversidad de las inclinaciones y las acciones humanas nos muestra. Luego el hombre necesita alguien que lo dirija a su fin”. (St° Tomás: 5).
O governante é parte da política que se dirige a um fim. Em um país como o Brasil, a política do campo da direita tem como fim desenvolver o subdesenvolvimento capitalista. Se toma como impossível, irrealista, buscar um fim que seja o de países como China e Índia.
China e Índia fizeram um percurso que acabou por combinar duas histórias econômicas. A história econômica do subdesenvolvimento faz pendant com a história econômica do capitalismo desenvolvido cibernético. Esta sobredetermina aquela e é hegemônica na política da China e da Índia através da instalação de uma sociedade de classes industrial cibernética, que acaba por funcionar como força produtiva e motor econômico desses países. A história econômica desenvolvida subsome a história subdesenvolvida.
Na China e na Índia, a política da sociedade tem como finalidade o bem comum através do desenvolvimento da sociedade capitalista, industrial, avançada, cibernética. Esta faz desses países territórios geoeconômicos de reprodução ampliada de capital e acumulação capitalista cibernéticos do capitalismo globalizado. Esses países se apresentam como buscando um fim que desloca a lógica <fim do capitalismo> (Marx) para uma conjuntura na qual o capitalismo globalizado cibernético tenha exaurido sua possibilidade de existência como acumulação ampliada capitalista.
A sociedade industrial capitalista cibernética pode funcionar como motor da diminuição da desigualdade econômica em uma conjuntura de luta de classes sociais gramaticais.  
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 O capitalismo subdesenvolvido tem sua forma acabada com fenômenos como <capitalismo criminoso> (Platt:19,39-44)) e <criminostat> (Virilio:55). Trata-se do desenvolvimento de práticas criminosas e do estabelecimento da organização criminosa como economia com sua infrapolítica. A consequência mais visível é a perda da paz como bem comum da sociedade.
A perda da paz social põe e repõe o problema da salvação como uma questão governamental: “La intención de cualquier gobernante debe dirigirse a que cuanto él se encarga de regir procure la salvación”. (St° Tomás: 13).
O que é a salvação de uma sociedade? Este problema desapareceu da vida da sociedade subdesenvolvida. A política subdesenvolvida subtrai da cultura nacional pública a questão da salvação:
“Pues el bien y la salvación de la sociedad es que se conserve su unidad, a la que se llama paz, desaparecida la cual desaparece asimismo la utilidad de la vida social, e incluso la mayoría que disiente se vuelve una carga para sí mesma. Luego esto es a lo que há de tender sobre todo el dirigente de la sociedad, a procurar la unidad en la paz”. (St° Tomás: 13).
A política útil é um fenômeno foracluido da vida do subdesenvolvimento. Tanto faz se o governante é útil ou inútil. No lugar do estado de paz como um fim útil e bem comum, o estado de guerra não é metabolizado como uma coisa insuportável. Na política, o estado de guerra não é vivido como o real impossível de ser suportado.  
O regime político não é gramaticalizado como útil ou inútil:
“Luego un régime será tanto más útil cuanto más eficaz fuere en conservar la unidad de la paz. Y llamamos más útil a lo que conduce mejor a su fin”. (St° Tomás: 14).  
O opúsculo “De regno” (“De regimine principum”) , de 1266, define a monarquia pura como a forma de governo mais útil, e não o regime político misto. Há um a razão forte para tal fato intelectual:
“Si, en 1266, les liges apparaissaient em Chipre comme des champions de l’anarchie et le roi comme le seul défenser possible de l’ordre public, on pourrait s’expliquer que dans le “De regimine principum” saint Thomás n’ait pas exprime sa préférence pour le gouvernement mixte et ait recommandé la monarchie pure”. (Chenu. 1993: 287)



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St° Tomás vive na conjuntura da metabolização pelos sujeitos  e afirmação histórica da monarquia europeia. O Estado para ele é o <regno> como uma entidade política que agrega uma reunião de cidades. O rei é o centro político e o símbolo através do qual a comunidade política se articula como campo de poderes/saberes racional jurídico, estatizado.
 O Estado é pensado a partir do campo dos indivíduos/sujeitos. O bem comum é o que exige constituir-nos em sociedade e instalar sobre os indivíduos mesmos a autoridade ou o poder político que une e governa o campo de sujeitos; é também, ao mesmo tempo, a razão de ser do Estado.
É pensado, também, como já vimos, a partir da regra jurídica articulando o campo de poderes/saberes racional, estatizado. A regra jurídica é o saber jurídico sem o qual o funcionamento do campo de poderes é sgrammaticatura (Gramsci: 2342), ou seja, com grau zero de gramática da política.
O regime político é a forma de unidade do campo de poderes/saberes. A forma política do regime faz pendant com as leis (verdadeiras leis ou leis corruptas) a forma do dirigente (um, poucos, multidão), e a modalidade de exercício do poder (visando o bem comum ou interesses particularistas) e a finalidade do governo que busca conservar a unidade social, ou sociedade, a paz. .
O poder político pertence por direito natural à comunidade política. Esta transfere a uma, ou várias ou a multidão o exercício do poder político. A comunidade política realiza uma concessão, em virtude da qual se transfere o exercício do poder como um ofício público. Portanto, o poder político só pode ser exercido a título de representante ou gestor da comunidade.
Na “Suma teológica”, o regime misto de poder aparece como a melhor forma de governo. Ele é constituído por um rei (princípio monárquico), um corpo de senadores (princípio aristocrático) e uma assembleia de éforos de eleição popular (princípio democrático).
O regime misto tem seu correlato moderno com o presidente da república eleito pelo voto popular no lugar do rei, um senado eleito pelo voto popular e uma câmara de deputados eleita pelo voto popular. O regime misto corresponde à moderna democracia liberal.  
A deposição legítima do governante em situação de crise da forma do poder político aparece como um fenômeno natural no caso da finalidade do governo político concorrer para a dissolução da sociedade.   
O critério para se saber se a forma de governo é passível de desarticulação se prende à relação dela com o bem comum:
“Además en este régime se vuelve injusto cuando, depreciado el bien de la sociedad, tiende al bien privado do dirigente”. (St° Tomás: 18).
Na leitura atual, o privado significa uma classe política que usa o poder político em benefício próprio ou da classe dominante. O poder político é usado para a apropriação da riqueza pública e concentração da riqueza nas mãos da classe dominante, da sociedade do rico. O signo dessa política é a crescente desigualdade econômica entre o rico e o povo.
As formas de governo podem se separar do bem comum e se tornarem formas injustas de poder político:
“Más se separa del bien común la oligarquia, en la que se busca el bien de unos pocos, que la democracia, en que busca el bien de muchos”. (St° Tomás: 18).
O bem comum é um significante que contempla a totalidade da economia das classes da sociedade. Ele contempla, especialmente, o rico (oligarquia) e a multidão (democracia). O bem comum tem como referente social o governo misto. A democracia é a forma de governo menos injusta, pois menos distante do bem comum. A tirania, é a forma de governo que mais distante se encontra do bem comum, pois ela, é a privatização do poder político em prol do um:
“Luego si llega a haber un régime injusto solamente a causa de uma persona, que busca en el gobierno su próprio beneficio pero no el bien de la sociedad a él sometida, tal dirigente es llanmado <tirano>, nombre derivado de la palavra <fuerza>, por que oprime, com la fuerza y no gobierna con la justicia”. (St° Tomás: 9).
Como poder político, a tirania aparece na contemporaneidade ligada ao governo presidencial em aliança com o poder oligárquico do parlamento. Esse acontecimento é próprio do desenvolvimento do subdesenvolvimento capitalista em países da América Latina.  
A forma de governo encontra-se, no capitalismo, em junção com a história econômica das formações sociais. A expansão do subdesenvolvimento capitalista, industrial, nuclear, por exemplo, nos Estados Unidos é o responsável pela forma tirânica do governo de Donald Trump em aliança com a forma oligárquica do Senado sob controle do partido social republicano, ou seja, pela burguesia republicana.
Os Estados Unidos fazem uma política tirânica nas relações internacionais.
A democracia americana é uma forma política que se sustenta a partir da história econômica do capitalismo industrial desenvolvido cibernético. O choque entre a história econômica desenvolvida e a história econômica subdesenvolvida gera uma realidade americana política bizarra.
A terceira década do século XXI vai assistir à produção de formas políticas inéditas que tem como motor o choque da história econômica desenvolvida e subdesenvolvida nas formações sociais capitalistas.

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