domingo, 29 de dezembro de 2019

FOUCAULT e as gramáticas do capitalismo globalizado


José Paulo


GRAMÁTICAS DA ECONOMIA [da política] E ENUNCIADO

A história acabada articula-se como campo de enunciado, gramática da sociedade e/ou da política, acaso e contingência.
O campo de enunciado põe a gramática em relação com o campo de objetos, campo de poderes/saberes, posições subjetivas no campo de sujeitos. O campo de exercício da função enunciativa aloja o enunciado nos espaços supracitados em que são considerados, utilizados e repetidos. (Foucault.2017:129).
O livro “A arqueologia do saber’ constrói uma ponte, virtual, com a gramática da economia ou discurso econômico (Foucault. 2017: 131). Não há gramática da economia que não seja cruzada pelo campo do enunciado. (Foucault. 2017: 138). A existência do campo do indivíduo, sujeito, ou melhor, campo do <autor>, individual ou coletivo (Foucault. 2017: 130) é condicionada pela existência do campo do enunciado e pelas gramática do capitalismo.
A linguagem econômica ou gramática da economia é, também, em seu aparecimento e seu modo de ser o campo do enunciado:
“A linguagem, na instância de seu aparecimento e seu modo de ser, é o enunciado”. (Foucault. 2017: 138).
A política é uma modalidade de utilização da gramática política ou formação de discurso político, sendo o discurso:
“um conjunto de enunciados que se apoia um mesmo sistema de formação; é assim que poderei falar do discurso clínico, do discurso econômico, do discurso da história natural, do discurso psiquiátrico”. (Foucault. 2017: 131).
Mesmo Lacan reconhece a existência do discurso político como gramática do significante atravessada pelo campo do enunciado e contingência ou real:
“Mas, ao entrar o discurso político – atente-se para isso – no avatar, produziu-se o advento do real, a alunissagem, aliás, sem que o filósofo que há em todos nós, por intermédio do jornal, se comovesse com isso, a não ser vagamente”. (Lacan. 2003: 535).
Foucault fixa a gramática do significante em um campo do enunciado articulador das posições de sujeito em um campo de poderes/saberes:
“Trata-se de suspender, no exame da linguagem, não apenas o ponto de vista do significado (o que já é comum agora), mas também o do significante, para fazer surgir o fato de que em ambos existe linguagem, de acordo com domínios de objetos e sujeitos possíveis, de acordo com outras formulações e reutilizações eventuais”. (Foucault. 2017: 136).
A formação discursiva é o ponto-de-partida para a abordagem do porto que queremos conquistar:
“a formação discursiva é o sistema enunciativo geral ao qual obedece um grupo de performances verbais – sistema que não o rege sozinho, já que ele obedece, ainda, e segundo suas outras dimensões, aos sistemas lógico, linguístico, psicológico. O que foi definido como ‘formação discursiva’ escande o plano geral das coisas ditas no nível específico dos enunciados. As quatro direções em que analisamos (formação de objetos, formação das posições subjetivas, formação dos conceitos, formações das escolhas estratégicas) correspondem aos quatro domínios em que se exerce a função enunciativa”. (Foucault. 2017: 142).
Trabalhando com os campos das gramáticas (sociedade, economia, política, história), o objetivo é fazer pendant desses campos com o campo de enunciado individualizado na formação discursiva:
“da mesma forma, que a descrição dos enunciados e da maneira pela qual se organiza o nível enunciativo conduz à individualização das formações discursivas”. (Foucault. 2017: 142).
Ou ainda:
“Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva”. (Foucault. 2017: 143).
A formação discursiva é o habitat do campo de enunciado regido também pelas gramáticas supracitadas. Há determinação ou sobredeterminação do campo do enunciado sobre as gramáticas?
O campo de enunciado articulado às gramáticas depende da “prática discursiva”:
“é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiriam, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa”. (Foucault. 2017: 144).
A prática discursiva se realiza, ou individualiza, ou se atualiza em uma dada <formação social gramatical>. A prática discursiva política <democracia liberal> foi fabricada por campos de poderes/saberes habitados por indivíduos/sujeitos/ autores na formação social gramatical ocidental. No entanto, ela precisa ser vivida nas formações sociais (países, grupos de países, nações) regradas por gramáticas da história econômica.
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A prática discursiva econômica da gramática da sociedade capitalista se apoia no campo de enunciado, que tem como enunciado-mestre: <o capital é uma relação social mediado por coisas>. Então, pode-se falar de uma formação social gramatical capitalista.
As gramáticas do capitalismo desenvolvido necessitam para a acumulação capitalista e reprodução ampliada de capital da formação social gramatical subdesenvolvida. O marxismo é a subjetividade que fala com efeitos do campo enunciativo da economia política. (Foucault. 2017:149):
“mas como o conjunto das coisas ditas, as relações, as regularidades e as transformações que podem aí ser observadas, o domínio do qual certas figuras e certos entrecruzamentos indicam o lugar singular de um sujeito falante e podem receber o nome de um autor. ‘Não importa quem fala’, mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar. É considerado, necessariamente, no jogo de uma exterioridade”. (Foucault. 2017: 150).  
Um enunciado marxista encontra-se registrado no autor Rosa Luxemburgo, agora, relido na subjetividade que fala <gramática marxista da economia>. O enunciado liga a formação capitalista desenvolvida à subdesenvolvida:
“Considerada historicamente, a acumulação capitalista é uma espécie de metabolismo que se verifica entre os modos de produção capitalista e pré-capitalista.  Sem as formações pré-capitalistas, a acumulação não se pode verificar, mas, ao mesmo tempo, ela consiste na desintegração e assimilação delas. Assim, pois, nem a acumulação de capital pode realizar-se sem as estruturas não-capitalistas nem estas podem sequer se manter. A condição vital da acumulação do capital é a dissolução progressiva e contínua das formações pré-capitalistas”. (Rosa: 363).
O enunciado de Rosa relido pela gramática marxista é o fenômeno da recorrência:
“Todo enunciado compreende um campo de elementos antecedentes em relação aos quais se situa, mas que tem o poder de reorganizar-se e de distribuir segundo relações novas. Ele constitui seu passado, define naquilo que o precede, sua própria filiação, redesenha o que torna possível ou necessário, exclui o que não pode ser compatível com ele. Além disso, coloca o passado enunciativo como verdade adquirida, como um acontecimento que se produzia, como uma forma que se pode modificar, como matéria a transformar, ou ainda, como objeto de que se pode falar. Em relação a todas essas possibilidades de recorrência, a memória e o esquecimento, a redescoberta do sentido ou sua repressão, longe de serem leis fundamentais, não passam de figuras singulares. (Foucault. 2017: 152).
Rosa é retomada como parte do <arquivo> marxista: “O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares”. (Foucault. 2017: 158).   
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No domínio das gramatas do capitalismo e do subdesenvolvimento, o capitalismo desenvolvido, avançado, cibernético existe em uma formação social gramatical (EUA, Ásia oriental, Alemanha), que necessita para a acumulação capitalista e reprodução ampliada de capital da formação social gramatical capitalista subdesenvolvida.
Para existir, a gramática do capitalismo desenvolvido cibernético cria e recria as gramáticas do subdesenvolvimento na América Latina, África e outras regiões econômicas.
Um caso clássico é a destruição da formação capitalista industrial dependente na América Latina e a passagem de países como Argentina, México, Brasil e Chile para o subdesenvolvimento capitalista.
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Um campo de enunciados neoliberal sustenta-se no enunciado <o livre mercado no comando da economia e do Estado>. O campo de enunciado neoliberal articula uma política de destruição do Estado social periférico e a tolerância à desarticulação da sociedade industrial capitalista dependente. Enfim, o enunciado neoliberal prepara o terreno para a gramática do subdesenvolvimento capitalista., sem que haja sucessão entre eles.  
A história econômica das gramáticas em tela parece dizer que a formação social gramatical subdesenvolvida é um universo em expansão planetária. Essas seria a característica do capitalismo globalizado na terceira década ado século XXI.
Países industrializados desenvolvidos podem vir a fazer parte da formação social gramatical subdesenvolvida. Nem a Europa ocidental está livre desse processo histórico do presente.
A história econômica supracitada planetária mexe e remexe com a política da democracia liberal. Não se trata de um determinismo econômico. A história econômica em tela abala a estrutura da democracia liberal em todo o mundo ocidental. Ela parece evocar no espaço político uma repetição histórica: fascismo. 
A produção política da contemporaneidade subdesenvolvida vai criando suas formas políticas sem um campo de enunciados correlatos, na América Latina? A política subdesenvolvida em tela dará margem à produção de um campo de enunciados invisíveis, para a cultura nacional pública,  a partir do campo de indivíduos/sujeitos/autores existindo em um campo de poderes/saberes.  
Um enunciado constitucional como <direitos individuais fundamentais> se tornou objeto de uma luta política entre as forças neoliberais, as forças do subdesenvolvimento e as forças progressistas que querem fazer a transição dos países subdesenvolvidos para as gramáticas do desenvolvimento capitalista cibernético.
É uma evidência que a Alemanha luta para encontrar seu lugar na formação social gramatical, capitalista, desenvolvida, cibernética. A democracia liberal não se encontra ameaçada na Alemanha, mesmo com o avanço de movimentos extremistas.
A política capitalista subdesenvolvida de Trump é uma ameaça ao curso natural da história econômica capitalista desenvolvida cibernética na formação social norte-americana. A burguesia republicana segue sob comando de Trump para derrotar a burguesia democrata na próxima eleição presidencial. Trata-se de um ponto de inflexão na história econômica dos Estados Unidos.     
 No campo de poderes/saberes, a posição de sujeito da burguesia republicana já significa a progressão acelerada do <capitalismo criminoso> (Platt:45-55) e do <criminostat> (Virilio: 55), fenômenos de desenvolvimento do subdesenvolvimento capitalista na América. O <criminostat> é uma forma de Estado noir da gramática do capitalismo subdesenvolvido.  
O discurso econômico subdesenvolvimento existe, também, em um campo de poderes/saberes do enunciado neoliberal. Ele é um objeto da luta política gramatical com sua estratégia e táticas:
“ele aparece como um bem – finito, limitado, desejável, útil – que tem suas regras de aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização; um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não simplesmente em suas ‘aplicações práticas), a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objeto de uma luta, e de uma luta política”. (Foucault. 2017: 148).
Pôr o neoliberalismo e o capitalismo subdesenvolvido em um arquivo do presente requer a aceitabilidade de que há um ersatz de gramática do arquivo discursivo:
“A arqueologia busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos, mas os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras”. (Foucault. 2017: 169). 
O discurso econômico ou economia política do subdesenvolvimento é reescrito na gramática marxista da economia. Esta é a reescrita da economia política em geral:
“Nada além e nada diferente de uma reescrita: isto é, na forma mantida da exterioridade, uma transformação regulada do que já foi escrito. Não o retorno ao próprio segredo da origem; é a descrição sistemática de um discurso-objeto”. (Foucault. 2017: 171).
O <período enunciativo> (Foucault. 2017: 182) da economia política marxista não acabou, pois, a gramática da economia política é sua regularidade homogênea/heterogênea como enunciabilidade, sem ser a análise bipolar do antigo e do novo. (Foucault. 2017: 173).  
A gramática da economia política em oposição à economia política deve ser tomada como oposição de momentos funcionais determinados, que assegura um <desenvolvimento adicional> do campo enunciativo”. (Foucault. 2017: 190). 
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O arquivo do subdesenvolvimento se desenvolve como uma prática discursiva em um espaço de diálogo?
   Há o passado discursivo do subdesenvolvimento da CEPAL, de Celso Furtado, e do marxismo americano. O subdesenvolvimento atual é um fato econômico ou artefato (“fato dito”) da gramática marxista da economia. Há diálogo entre o passado e o presente? Há sim uma reescrita da escrita do subdesenvolvimento do passado.
Aliás, há o desenvolvimento adicional do campo enunciativo das Américas:
“abrem sequencias de argumentação, de experiencia, de verificações, de inferências diversas; permitem a determinação de objetos novos, suscitam novas modalidades enunciativas, definem novos conceitos ou modificam o campo de aplicação dos que já existem, mas sem que nada seja modificado no sistema de positividade do discurso”. (Foucault. 2017: 190).   
Talvez, o estratégico do subdesenvolvimento sejam as práticas não-discursiva que envolvem o subdesenvolvimento como prática discursiva:
“A análise arqueológica individualiza e descreve formações discursivas, isto é, deve compará-las, opô-las, umas às outras na simultaneidade em que se apresentam, distingui-las das que não têm o mesmo calendário, relacioná-las no que podem ter de específico com as práticas não discursivas que as envolvem e lhes servem de elemento geral”. (Foucault. 2017: 192).
As práticas não discursivas das forças (econômica, política, cultural) do subdesenvolvimento têm uma modalidade de articulação que significa mais dominação do que hegemonia em uma formação social. Banco, Mercado Financeiro, mass media, Estado de segurança policial/privado, capitalismo criminoso, criminostat constituem a prática não discursiva que envolve a gramática da economia do subdesenvolvimento.
Em um momento no qual a consciência histórica nacional deixou de ser um enunciado de um campo enunciativo, o subdesenvolvimento avança progressivamente sem que os povos subdesenvolvidos saibam que sabem de seu destino subdesenvolvido.
Descrever enunciativamente o subdesenvolvimento nos leva para a o envolvimento da gramática da economia com as práticas não discursivas:
“é também para descrever, ao mesmo tempo que eles e em correlação com eles, um campo institucional, um conjunto de acontecimentos, de práticas, de decisões políticas, um encadeamento de processos econômicos em que figuram oscilações demográficas, técnicas de assistência, necessidade de mão de obra, níveis diferentes de desemprego etc.”. (Foucault. 2017: 192).  
Estabelecer a relação do campo enunciativo com os domínios não-discursivos, eis uma tática essencial da gramática do subdesenvolvimento:
“A arqueologia faz também com que apareçam relações entre as formações discursivas e os domínios não discursivos (instituições, acontecimentos políticos, práticas e processos econômicos)”. (Foucault. 2017: 198).
O aparecimento da formação discursiva do subdesenvolvimento se estabelece com o acontecimento político governo Bolsonaro e seu ministro Paulo Guedes. A instituição parlamento 2019 está no comando legislativo de práticas e processos econômicos, que têm em determinadas forças econômicas sua realidade possível. Elos fracos ligam o parlamento neoliberal ao capitalismo subdesenvolvido que desenvolvem o capitalismo criminoso e o criminostat como formas específicas de articulação subdesenvolvida.
A gramática da arqueologia:
“ela tenta determinar como as regras de formação de que depende – e que caracterizam a positividade a que pertence – podem estar ligadas a sistemas não discursivos: procura definir formas específicas de articulação”. (Foucault. 2017: 198).
Chegará um momento em que as formas específicas de articulação subdesenvolvida definirão a vida econômica e o próprio mundo da vida. Aí, a simples farmácia das cidades cosmopolitas (São Paulo, Rio, Buenos Aires) deixarão de funcionar, regularmente, como a parte final de vínculo do consumidor com o mercado farmacêutico do capitalismo industrial.  
O governo Bolsonaro instituiu uma política de destruição do capitalismo farmacêutico. Com isso inúmeros laboratórios nacionais e estrangeiros foram fechados. A falta de remédios de primeira necessidade já é uma realidade no Rio.  Crianças não são vacinadas por falta de vacina. A articulação do subdesenvolvimento tem como motor o governo neoliberal materializado no governo Bolsonaro e parlamento do presidente da Câmara Rodrigo Maia.    
Primeiro temos que descartar a relação casual da política nacional com o subdesenvolvimento capitalista:
“ Uma análise causal, em compensação, consistiria em procurar saber até que ponto as mudanças políticas, ou os processos econômicos, puderam determinar a consciência dos homens da ciência – o horizonte e a direção de seu interesse, seu sistema de valores, sua maneira de perceber as coisas, o estilo de sua racionalidade; assim, em uma época em que o capitalismo industrial começa a recensear suas necessidades de mão de obra, a doença tomou uma dimensão social: a manutenção da saúde, a cura, a assistência aos doentes pobres, a pesquisa das causas e dos focos patogênicos tornaram-se um encargo coletivo que o Estado devia, por um lado, assumir, e, por outro, supervisionar. Daí, resultam a valorização do corpo como instrumento de trabalho, o cuidado de racionalizar a medicina pelo modelo das outras ciências, os esforços para manter o nível de saúde de uma população, o cuidado com a terapêutica, a manutenção de seus efeitos, o registro dos fenômenos de longa duração”. (Foucault. 2017: 199).
Na Argentina e, especialmente no Brasil, a sociedade industrial em colapso muda a relação da política com a população, especialmente com os pobres doentes. Um Estado social industrial é dissolvido pela política não pela relação causal da história econômica com a política.
A formação discursiva neoliberal é um campo de enunciado no qual desfazer o Estado social é um enunciado reitor.  O discurso neoliberal antecipa a história econômica do subdesenvolvimento capitalista. O neoliberalismo é uma formação discursiva inventada nos Estados Unidos na década de 1970 e utilizada, pela primeira vez, no Chile do general Pinochet.
O que o subdesenvolvimento faz é destruir os campos de demarcação dos objetos médicos abertos na Europa a partir dos séculos XVIII e XI, abertos pela prática política europeia moderna:
“mas ela abriu novos campos de demarcação dos objetos médicos (tais como são constituídos pela massa da população administrativamente enquadrada e fiscalizada, avaliada segundo certas normas de vida e saúde, analisada segundo formas de registro documental e estatístico; são constituídos, também pelos grandes exércitos populares da ´época revolucionaria e napoleônica, com sua forma específica de controle médico; são constituídos, ainda, pelas instituições de assistência hospitalar que foram definidas, no final do século XVIII e no início do século XIX, em função das necessidades econômicas da época e da posição reciproca das classes sociais”. (Foucault. 2017: 200).  
O modelo de história do subdesenvolvimento capitalista se articula especificamente como descompromisso com a história da política europeia do capitalismo industrial, em função das necessidades econômicas da época e da posição das classes sociais em processo de proletarização.
A política não constitui a prática discursiva do subdesenvolvimento. No entanto, como a medicina, o subdesenvolvimento é um campo de enunciados que se articula em práticas que lhe são exteriores e que não são de natureza discursiva, como já apontamos:
“Não se trata, portanto, de mostrar como a prática política de uma dada sociedade constitui ou modificou os conceitos médicos e a estrutura teórica da patologia, mas como o discurso médico, como prática que se dirige a um certo campo de objetos, que se encontra nas mãos de um certo número de indivíduos estatutariamente designados, que tem, enfim, de exercer certas funções na sociedade, se articula em práticas que lhe são exteriores e que não são de natureza discursiva”. (Foucault. 2017: 201).
A política do subdesenvolvimento é exterior ao discurso do subdesenvolvimento. Aliás, o discurso não aparece no plano psicológico da representação ou como ideologia do mundo da vida. A gramática do subdesenvolvimento capitalista é conhecida pelos poucos capazes de suportá-la, pois, ela é a linguagem da vida real. Algo próximo ao real impossível de ser suportado.
No Brasil, o discurso subdesenvolvido não tem consciência, ele não se aloja em uma forma externa da linguagem; não é uma língua, com um sujeito para falá-lo; ele é uma prática que tem suas formas próprias de encadeamento e de sucessão.
A história foucaultiana das ideias do subdesenvolvimento fala de cortes, falhas, aberturas, formas inteiramente novas de positividade e redistribuição súbitas. (Foucault. 2017:202, 206).
A política neoliberal da curta duração entre o governo Temer e o Governo Bolsonaro não significa uma sucessão da ideia de subdesenvolvimento entre eles. A ideia de subdesenvolvimento é uma ideia desenvolvida, como prática governamental e legislativa, inteiramente, no governo Bolsonaro mais parlamento 2019, de Rodrigo Maia. A diferença entre o neoliberalismo de Temer e o de Bolsonaro consiste na diferença que a prática discursiva subdesenvolvida aí instala.
O subdesenvolvimento discursivo substitui uma formação discursiva da sociedade industrial dependente, que pode ser encontrada em autores como Fernando Henrique Cardoso e Ruy Mauro Marino. Destaco o livro “Dependência e desenvolvimento na América Latina”, nacionalizado nas culturas universitárias da América Latina.  No entanto, esses autores, obviamente, não determinam o aparecimento do acontecimento sociedade industrial na periferia do capitalismo industrial desenvolvido. (Foucault. 2019: 208-209).     
A acontecimento da substituição de um discurso por outro é a não necessidade de uma sociedade industrial da contemporaneidade no subdesenvolvimento capitalista.
Enfim, falar da substituição de um campo de enunciado por outro significa:
“Dizer que uma formação discursiva substitui outra não é dizer que todo um mundo de objetos, enunciações, conceitos, escolhas teóricas absolutamente novas surge já armado e organizado em um texto que o situaria de uma vez por todas; mas sim que aconteceu uma transformação geral de relações que, entretanto, não altera forçosamente todos os elemento; que os enunciados os enunciados obedecem a novas regras de formação e não que todos os objetos ou conceitos, todas as enunciações ou todas as escolhas teóricas desapareçam. (Foucault. 2017: 210).
A realidade do subdesenvolvimento vai se transformando em uma gramática da economia política periférica das gramáticas capitalista desenvolvidas, cibernéticas. 
A economia política do subdesenvolvimento é uma formação discursiva que estabelece um vínculo enunciativo entre Marx e a gramática da economia como fenômeno de <deslocamento segmentar>:
“Daí os fenômenos de ‘deslocamento segmentar’ de que se pode citar, pelo menos, um outro exemplo notório: conceitos como o de mais-valia ou de baixa tendencial da taxa de lucro, tais como se encontram em Marx, podem ser descritos a partir do sistema de positividade que já é empregado em Ricardo; ora esses conceitos (que são novos, mas cujas regras de formação não o são) aparecem – no próprio Marx – como referentes, ao mesmo tempo, a uma prática discursiva inteiramente diversa; são aí formados segundo leis específicas, ocupam outra posição, não figuram nos mesmos encadeamentos; essa positividade nova não é uma transformação das análises de Ricardo; não é uma nova economia política; é um discurso cuja instauração teve lugar em virtude da derivação de certos conceitos econômicos, mas que, em compensação, define as condições nas quais se exerce o discurso dos economistas e pode, pois, valer como teoria e crítica da economia política”. (Foucault. 2017: 212-213).
A falta e/ou a destruição da sociedade industrial cibernética desenvolvida é o acontecimento que assiná-la um emaranhado de continuidade e descontinuidade, de modificações internas às positividades, da formação discursiva subdesenvolvimento capitalista.
Um planeta estratificado por várias gramáticas econômicas capitalista e campos de enunciados de formações sociais gramaticais está em processo de construção.

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramáticas do capitalismo. Lisboa; Chiado Books, 2019
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje. Lisboa: Chiado Books, 2019
CARDOSO, Fernando Henrique. Dependência e desenvolvimento na América Latina. RJ: Zahar Editores, 1973 
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. RJ: Forense Universitária, 2017
LACAN, Jacques. Outros escritos. RJ: Jorge Zahar Editor, 2003
PLATT, Stephen. Capitalismo criminoso. SP: Cultrix, 2017
ROSA LUXEMBURGO. A acumulação do capital. RJ: Zahar Editores, 1970
VIRILIO, Paul. Vitesse et politique. Paris: Galilée, 1977
     
   
                                                                        

  
  


 
 
                
     



    
 

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

EUROPA


José Paulo



  O que se denomina como moderno significa, simplesmente, uma <nova época> na história mundial? Ou significa um corte no fluxo histórico que define a ideia de época? A ascensão da Europa no comando da história mundial é o espírito do mundo, que encarna a ideia, sendo levado avante por paixões de indivíduos, em especial os “indivíduos históricos mundiais", como Alexandre, César e Napoleão? (Inwood:162).
A época pode ser definida como a passagem da história da política para a história da economia? Ou definida pelo surgimento de um campo de poderes/saberes no comando da história mundial? Assim, o surgimento do campo de poderes/saberes econômico definiria a ideia de época, ou melhor, a ideia de época moderna?
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Em uma explosão intelectual, Hegel associa a dissolução da Idade média com o nascimento de um campo de saberes científico moderno?
Hegel viveu uma parte de sua visa adulta quando a sociedade industrial inglesa se erguera em um império liberal capitalista, que determinará o rumo da história mundial no século XIX.
A ciência moderna e a técnica industrial se tornam as forças produtivas da sociedade de classes da modernidade. O trabalho livre como força produtiva de produção de mais-valia e da riqueza capitalista de um império industrial muda a ideia de colonialismo dos grandes descobrimentos, cuja América é o símbolo maior.
Hegel diz sobre a dissolução da Idade Média:
“No lugar do formalismo escolástico, surgiu um outro conteúdo. Platão tornou-se conhecido no Ocidente, e com ele surgiu um novo mundo humano. As novas representações encontraram o instrumento principal para a sua propagação na recém-inventada <arte da impressão de livros>, que corresponde - assim com a pólvora ao caráter moderno, e atende às necessidades de estabelecer um relacionamento ideal com os outros. E já que, no estudo dos antigos, se exprime o amor por virtudes e atos humanos, a Igreja não viu nisso nada de mal, não notando que naquelas obras estrangeiras encontrava-se um princípio bem alheio – e que se opunha a ela”.  (Hegel.1995: 340). 
A técnica é vista como definindo o caráter moderno em antagonismo com o campo de poderes/saberes da Igreja.  A era de Gutemberg põe o mercado de livros como força propulsora da cultura moderna em um desenvolvimento do antagonismo do presente moderno com o passado medieval.
MacLuhan diz:
Quer dizer, o leitor da palavra impressa está, em relação ao autor, em posição completamente diferente do leitor dos manuscritos. A palavra impressa gradativamente esvaziou de seu sentido a leitura em voz alta e acelerou o ato de ler até o ponto em que o leitor pôde sentir-se ‘nas mãos de’ seu autor. Veremos que, do mesmo modo que a palavra impressa foi a primeira coisa produzida em massa, foi também o primeiro ‘bem’ ou ‘artigo de comércio’ a repetir-se ou reproduzir-se uniformemente. A linha de montagem de tipos móveis tornou possível um produto que era uniforme e podia repetir-se tanto quanto um experimento científico. Esse caráter não se encontra no manuscrito. Os chineses ao imprimir por meio de blocos de madeira, no século oitavo, ficaram sobremodo impressionados com o caráter repetitivo da operação impressora, considerando-a um processo ‘mágico’ e a utilização como forma alternativa para a roda de orações”. (MacLuhan: 176-177).
O campo de poderes/saberes tem na ciência moderna seu signo e poder transformador da realidade, que a Igreja toma como inimigo figadal:
“Ela se separou da ciência, da filosofia e da literatura humanística, e logo teve a oportunidade de exprimir sua aversão à ciência. O célebre Copérnico descobriu que a Terra e os planetas giravam em torno do Sol, mas a Igreja declarou-se contrária a essa progressão. Galileu, numa discussão sobre razões favoráveis e desfavoráveis dessa descoberta de Copérnico, declarando-se ele mesmo a ela favorável, foi obrigado, de joelhos, a pedir perdão por essa calúnia”. (Hegel. 1995: 347-348).
O campo de poderes/saberes moderno começa com a matematização galilaica da natureza. A razão moderna significa matematização da realidade e do mundo da técnica, que se constituiria como técnica industrial e força produtiva do modo de produção especificamente capitalista do século XIX:
“A matemática, como domínio do conhecimento (e da técnica, sob sua instrução) genuinamente objetivo, estava para Galileu, e já antes dele, no foco do interesse que move o homem ‘moderno’ para um conhecimento filosófico do mundo e uma prática racional. Tem de haver método de medidas para tudo aquilo que abrangem, na sua idealidade e aprioridade,, a geometria ou a matemática das figuras. E o mundo concreto inteiro terá de se revelar como matematizavel e objetivo, se seguirmos aquelas experiencias singulares e medirmos efetivamente tudo o que lhe é atribuível como pressuposto da geometria aplicada, ou melhor, se construirmos os métodos de medida correspondentes. Se assim fizermos, o lado das ocorrências especificamente qualitativas tem <indiretamente> de se <comatematizar>”. (Husserl:29-30).
Como técnica, a ciência moderna é uma força produtiva motriz da história econômica do capitalismo industrial. (Marx. 1978:55).           
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Spaltung do mundo medieval e nascimento do mundo moderno fazem pendant com a cultura moderna do livro. Por ora, anuncia-se a fundação futura de um campo de poderes/saberes moderno na política mundial.  
Para Hegel, o tempo moderno está associado à vontade subjetiva, na atividade particular da vontade na cultura como forma universal, ou seja, o próprio pensamento:
“Até a cultura pertence à forma; a cultura é a confirmação da forma do universal, e isso é o próprio pensamento. O direito, a propriedade, a moralidade objetiva, o governo e a Constituição, entre outras coisas, têm, agora que ser determinados de maneira universal para que sejam adequados e razoáveis ao conceito de livre vontade. Só assim o espírito da verdade pode surgir na vontade subjetiva, na atividade particular da vontade. Se a intensidade do livre espírito subjetivo decide-se pela forma da universalidade, então, o espírito objetivo pode se manifestar. Nesse sentido, é preciso compreender que o Estado foi constituído na religião. Estados e leis não são mais do que o surgimento da religião nas relações da realidade”. (Hegel. 1995: 346).
A religião é uma espécie de fenômeno cultural no real? Se Hegel afirma tal fato, onde o Estado é, também, um efeito da cultura, então, a história da política (como história das diferentes formas de Estado) é também a história da cultura. A era moderna seria a passagem da história da cultura para a história da técnica moderna em uso na era da grande navegação:
“O terceiro momento principal que devemos mencionar exteriorização do espírito, esse desejo do homem de conhecer o seu mundo. O espírito cavaleiro dos heróis marinheiros de Portugal e Espanha encontrou um novo caminho para as Índias Orientais e descobriu a América. Também esse progresso aconteceu sem transgressão aos limites da Igreja. O objetivo de Colombo era particularmente de caráter religioso: os tesouros dos ricos países hindus a serem descobertos deveriam, na sua opinião, ser utilizados para uma nova cruzada e para converter os seus habitantes pagãos ao cristianismo. O homem descobriu que a Terra era redonda, portanto, para ele, algo delimitado, e as viagens marítimas foram favorecidas pela introdução da bússola, deixando assim de ser mera navegação costeira. A técnica aparece quando existe a necessidade”. (Hegel.1995: 340).
Hegel não vê a história da economia como força motriz da era das grandes descobertas europeias? Ele é refém de uma concepção de tempo moderno cultural? Ao contrário, ele assinala a passagem da história cultural para a história das forças técnicas produtivas como fundadora da época moderna.
Marx entende a época moderna pela história da acumulação primitiva de capital europeu:
“A chamada acumulação primitiva é apenas o processo histórico que dissocia o trabalhador dos meios de produção. É considerada primitiva porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção capitalista”. (Marx.1996: 830).
A colônia é o território econômico não-capitalista usado como parte da acumulação primitiva do capital europeu, como quer Rosa Luxemburgo:
“Se o capitalismo vive das formações e das estruturas não-capitalistas, vive mais precisamente da ruína dessas estruturas, e, se necessita de um meio não-capitalista para a acumulação, necessita-o basicamente para realizar a acumulação, após tê-lo absorvido. Considerada historicamente, a acumulação capitalista é uma espécie de metabolismo que se verifica entre os modos de produção capitalista e pré-capitalista. Sem as formações pré-capitalistas, a acumulação não se pode verificar, mas, ao mesmo tempo, ela consiste na desintegração e assimilação delas. Assim, pois, nem a acumulação do capital pode realizar-se sem as estruturas não-capitalistas nem estas podem sequer se manter. A condição vital da acumulação do capital é a dissolução progressiva e contínua das formações pré-capitalistas”. (Rosa: 363).
Rigorosamente, o “capital comercial” que liga a economia da metrópole europeia com a economia da colônia não deve ser definido como <capital>:
“De início, descobriu Wakefield, nas colônias, que a propriedade de dinheiro, de meios de subsistência, de máquinas e de outros meios de produção não transformam um homem em capitalista, se lhe falta o complemento, o trabalhador assalariado, o outro homem que é forçado a vender-se a si mesmo voluntariamente. Descobriu que o capital não é uma coisa, e sim uma relação social entre pessoas efetivada através de coisas”.  Marx. 1996: 885).
A ideia de liberdade cultural moderna é aquela do homem livre, do homem não subjugado ao poder da Igreja, em Hegel. Trata-se do homem europeu não submetido ao campo de poderes/saberes da Igreja. É a liberdade como fenômeno da cultural política europeia germânica com Lutero e Calvino.
 “Este é o conteúdo da Reforma: o homem está determinado por si mesmo a ser livre”. (Hegel. 1995: 346).
E a liberdade civil republicana onde entra no discurso político hegeliano? 
Em Marx, o homem livre se refere ao homem comum no modo de produção capitalista, homem livre, mas forçado, a vender sua força de trabalho: proletariado assalariado do capital industrial.
O campo de poderes/saberes da modernidade tem a sociedade de classes como centro econômico, político e cultural na Europa. Burgueses e proletários são os símbolos e sujeitos da história econômica capitalista com efeitos pertinentes na política na cultura ou domínio das ideologias de classe social.
No discurso marxista, a liberdade civil republicana será tida como liberdade da sociedade civil burguesa em luta contra a sociedade do trabalho. A luta de classes é um fenômeno político que põe em xeque-mate a liberdade civil republicana para todos. Ao proletariado, a ordem burguesa nega os direitos políticos constitutivos da liberdade civil republicana. Daí, os marxistas falarem em ditadura burguesa (igual a democracia burguesa) a ser substituída por uma ditadura do proletariado. 
A liberdade hegeliana é um produto da Reforma protestante. A cidade moderna em contraposição ao campo tradicional é o habitat desse movimento de cultura política que para Hegel é o corte no fluxo histórico, que instaura a modernidade política:
“As nações eslavas eram agricultoras. Essa relação carrega consigo aquela de senhores e servos. Na agricultura, prevalece o ímpeto da natureza. A atividade humana e subjetiva, com efeito, prevalece menos nesse trabalho, por isso os eslavos são mais lentos e mais difíceis de se conquistar para o sentimento básico do ser subjetivo, para a consciência do universal, para aquilo que anteriormente denominamos poder estatal, e em decorrência desses fatores não puderam participar da liberdade que então nascia”. (Hegel. 1995: 348).
A liberdade de hegeliana associa liberdade cultural e política moderna? Trata-se da liberdade como fenômeno da cultura política universal condensada na ideia de <poder estatal>.
Com Marx, temos a universalização do poder estatal como fenômeno moderno, assim que o Estado se define como aparelho de Estado e poder de Estado. (Balibar:94). Essa invenção política europeia foi copiada por inúmeros povos em vários continentes. Então, o poder estatal aparece como expressão da sociedade de classes, capitalista, industrial da luta de classe da burguesia contra o proletariado. Assim, a existência do poder estatal não se remete a uma cultura política universal hegeliana, e sim a universalização da sociedade de classes moderna industrial.
A propósito, na América Latina, o poder estatal só existiu com a sociedade industrial capitalista em países como Argentina, Brasil e México - na segunda metade do século XX. O desaparecimento da sociedade industrial nesses países hoje significa a desintegração do poder estatal. Então, inúmeros fenômenos estranhos tomam conta do mundo urbano. Por exemplo, a grande cidade se torna uma articulação arqueopolítica do crime organizado.
No Brasil com Bolsonaro, o poder estatal se torna quase a propriedade privada de um senhor. O Estado da sociedade industrial capitalista perde seu caráter de universalidade. A articulação da <política do subdesenvolvimento> (Bandeira da Silveira. 2019b: 133) desfaz o Estado como poder de Estado e aparelho de Estado. Este último se torna propriedade privada de um senhor. As gramáticas do modo de produção e circulação do subdesenvolvimento adquirem uma universalidade americana em um contraponto às gramáticas do capitalismo industrial, avançado, cibernético. (Bandeira da Silveira. 2019a:141).  
“O Estado precisa ter uma última vontade decisiva; mas se um indivíduo deve ser considerado o poder decisório final, ele o deve ser de forma determinada e natural, e não por escolha, opinião ou método desse gênero. Mesmo entre os gregos livres, o oráculo era o poder exterior que determinava os principais assuntos; aqui, o <nascimento> é o oráculo. Algo independente de toda arbitrariedade. Já que o líder de uma monarquia pertencia a uma família, o domínio era uma propriedade privada – portanto, seria como tal divisível -, mas, com a divisão, opõe-se ao conceito de Estado, e então os direitos dos monarcas e de suas famílias tiveram que ser especificados. Os domínios não pertenciam a um único senhor, mas à família como <fideicomissos>, e as <classes> tinham a garantia, pois, deviam manter a unidade. Dessa forma, o principado perdeu o sentido de propriedade particular, de posses de bens e domínios, de jurisdição etc., passando a ser propriedade e assunto estatal”. (Hegel. 1995: 353).  
Com Bolsonaro, o poder estatal é substituído por uma outra forma de poder político, com o presidente da república em posse de um aparelho de Estado <inquisitorial>. Assim, aparece a ideia prática de um <poder político inquisitorial>:
“O instrumento utilizado para estabelecer o poder real na Espanha foi a <Inquisição>. Esta, introduzida com o fim de perseguir judeus, mouros e hereges, logo tomou caráter político ao se voltar contra os inimigos do Estado. A Inquisição fortaleceu o despotismo dos reis, estava acima de bispos e arcebispos, e podia submetê-los ao tribunal. Constantes confiscos de bens, um dos mais habituais castigos, enriqueceram, na ocasião, o Tesouro nacional. A Inquisição, além disso, era um tribunal de suspeita., e já que exercia u enorme poder sobre o clero, tinha o seu verdadeiro apoio no orgulho nacional. Todo espanhol queria ser de sangue cristão, e esse orgulho coincidiu com as intenções e a tendência da Inquisição. Algumas províncias da monarquia espanhola, como Aragón, ainda mantinham muitos direitos especiais e privilégios, mas, a partir do rei espanhol Filipe II, eles foram abolidos”. (Hegel. 1995: 354).  
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Hegel pensa a gramática moderna europeia?                
A gramática europeia se estabelece como interioridade, ou seja, como subjetividade universal através do pensamento: “O pensamento considera tudo em forma de universalidade e, por isso, é a atividade e produção do universal”. (Hegel. 1995: 360).
A Europa produz o capitalismo industrial moderno como pensamento universal que conquista a América. Esta inventa uma gramática capitalista cibernética que define o rumo da história econômica do planeta a partir do final do século XX.
No século XXI, a gramática do capitalismo avançado, cibernético se constrói como uma sociedade industrial na Ásia Oriental. Assim, a China desponta como potência industrial fazendo pendant com os Estados Unidos. No nosso presente da terceira década do século XXI, a maioria dos países da Europa vão se tornado periferia subdesenvolvida (industrial ou não) do capitalismo desenvolvido cibernético asiático.
A ideia de liberdade subjetiva universal de Hegel parece ter abandonada a Europa?
“O interesse prático precisa dos objetos, consome-os. O teórico observa-os com a segurança de que eles não são diferentes em si. Assim, o ápice da interioridade é o pensamento. O homem não é livre se não pensa, apenas mantém com o mundo à sua volta uma relação com uma outra forma de ser”. (Hegel. 1995: 361).
O campo de poderes/saberes moderno inventado pela Europa está naufragando. Ele se tornou obsoleto. Anote-se, no entanto, que ao naufrágio da economia política corresponde o aparecimento das gramáticas do capitalismo cibernético desenvolvido e do subdesenvolvimento do século XXI, nas Américas.

BALIBAR, Étienne. Cinq études du materialisme historique. Paris: Maspero, 1974
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramáticas do capitalismo. Lisboa: Chiado, 2019a
 BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje. Lisboa: Chiado, 2019b
HEGEL. Filosofia da história. Brasília: UNB, 1995
HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. RJ: Forense Universitária, 2012
INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. RJ: Jorge Zahar Editora, 1997
MCLUHAN, Marshall A galáxia de Gutenberg. SP: Editora Nacional/USP, 1972
MARX. O capital. Livro 1, capítulo VI (inédito). SP: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978
MARX. O capital. Livro 1. Volume 2. RJ: Bertrand Brasil, 1966
ROSA LUXEMBURGO. A acumulação do capital. RJ: Zahar, 1970
       

         




sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

AMÉRICAS para americanos hoje


José Paulo



O objetivo é estabelecer a gramática política da América. Começo pela gramática em si.
 Estabelece-se com clareza a gramática da sociedade como homóloga à Constituição moderna (discurso legal virtual)? Ao contrário, a gramática de uma formação social em uma história econômica faz pendant com o estado de exceção soberano:
“E como a linguagem pressupõe o não-linguístico como aquilo com o qual deve poder manter-se em relação virtual (na forma de uma <langue>, ou mais precisamente, de um jogo gramatical, ou seja de um discurso cuja denotação atual é mantida indefinidamente em suspenso), para poder depois denotá-lo no discurso em ato, assim a lei pressupõe o não-jurídico (por exemplo, a mera violência enquanto estado de natureza) como aquilo com o qual se mantém em relação potencial no estado de exceção. A exceção soberana (como zona de indiferença entre natureza e direito) é a pressuposição da referência jurídica na forma de sua suspensão”. (Agamben: 28).   
A gramática de uma sociedade é o discurso virtual homóloga na política à exceção soberana.
Foucault diz:
“Atrás do sistema acabado, o que a análise das formações descobre não é a própria vida em efervescência, a vida ainda não capturada, mas sim uma espessura imensa de sistematicidades, um conjunto cerrado de relações múltiplas. Além disso, essas relações, por mais que se esforcem para não serem a própria trama do texto, não são, por natureza, estranhas ao discurso. Pode-se mesmo qualifica-las de pré-discursivas’, mas com a condição de que se admita que esse pré-discursivo pertence, ainda, ao discurso, isto é, que elas não especificam um pensamento, uma consciência ou um conjunto de representações que seriam, mais tarde, e de uma forma inteiramente necessária, transcritas em um discurso, mas que caracterizam certos níveis de discurso, definem regras que ele <atualiza> enquanto prática singular. Não procuramos, pois, passar do texto ao pensamento, da conversa ao silêncio, do exterior ao interior, da dispersão espacial ao puro recolhimento do instante, da multiplicidade superficial à unidade profunda. Permanecemos na dimensão do discurso”. (Foucault.2012:90-91).  

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Tocqueville escreve:
Já discorri o bastante para colocar sob sua verdadeira luz o caráter da civilização anglo-americana. Ela é produto (e este ponto de partida deve estar presente sem cessar no pensamento) de dois elementos perfeitamente distintos, que aliás muitas vezes se combateram mutuamente, mas que, de certa forma, os americanos conseguiram incorporar um ao outro e combinar maravilhosamente. Refiro-me ao <espírito de religião> e ao <espírito de liberdade>”. (Tocqueville: 90).
Citando um outro texto meu:
 A América do Norte é a invenção de uma nova gramaticada política na qual o <legislator> americano combina, sincreticamente, a política moderna (republicanismo democrático) com a cultura judaica da antiguidade:
“Nada é mais singular e ao mesmo tempo mais instrutivo que a legislação daquela época: é nela, principalmente, que se encontra a chave do grande enigma social que os Estados Unidos apresentam ao mundo em nossos dias.
Entre esses monumentos, distinguiremos particularmente, como um dos mais caraterísticos, o código de leis que o pequeno Estado de Connecticut promulgou em 1650. Em primeiro lugar, ocuparam-se os legisladores de Connecticut das leis penas; e, para redigi-las, concebem a estranha ideia de se abeberarem nos textos sagrados.
‘Quem quer adorar outro Deus que não seja o Senhor – dizem eles, para começar, - aquele certamente morrerá’. Seguem-se dez ou doze disposições da mesma natureza, tomadas de empréstimo, textualmente, ao Deuterônimo, ao Êxodo e ao Levítico. A blasfêmia, bruxaria, o adultério e o estupro são castigados com a morte; a ofensa cometida por um filho contra seus pais é capitulada na mesma pena. Dessa forma, a legislação de um povo rude e semicivilizado era transportada ao seio de uma sociedade cujo espírito era esclarecido e brandos os costumes; em consequência, jamais se viu a pena de morte mais frequentemente prescrita nas leis, nem mais raramente aplicada”. (Tocqueville:82-83).
Há além da Constituição formal americana dos “pais fundadores” o discurso virtual ou gramática da formação social americana, enfim, da política americana. Esta se define pela política americana na plurivocidade de campo de poderes/saberes local ou regional, nacional [e internacional].  
O que é <política>?
Na cultura grega da antiguidade, a política tem uma dimensão ética. O vocabulário político (polis, polites, politikós) não especificava um domínio político distinto da ética. Na cultura romana, a política faz pendant com um vocabulário político como civilis societas e iures societas. Não se trata da sociedade doa sociologia moderna ou da formação social marxista.
A política grega associada às formas de governo pode ser a política do democrata (da multidão), do oligarca (dos poucos) e do tirano (do um).
No vocabulário latino, a res publica ou coisa comum, coisa da cidade, interesse geral, se contrapõe ao império e à polis e polites. Na república moderna, trata-se de uma ideia política que designa uma forma de Estado (oposta à monarquia) de um poder político centralizado e burocrático que se contrapõe as ideias de politeia, de res publica e de common weal.
É um truísmo que Maquiavel pensou a política como domínio separado da ética, da moral e, principalmente, da religião. Pode-se, então, falar de uma gramática da política, de um fenômeno específico.
Na cultura medieval, a política aparece entrelaçada com a religião, o poder religioso em luta contra o poder temporal pelo domínio do mundo político, da sociedade. A Idade Média se caracteriza por uma plurivocidade de revolução do secularismo. Na política, o vocabulário político secular inclui o regnum, império não submetido ao poder papal, a cidade-Estado, as repúblicas da Idade Média tardia, uma certa Igreja secular, Igreja-Estado.  
Uma ideia verdadeiramente distinta sobre política se encontra em Hobbes. Ele define a política como o poder de inventar palavras, de defini-las, de impô-las aos súditos. (Sartori:163). Esta ideia maravilhosa da política faz do político o governante da linguagem, o gramático da língua política. Trata-se da ideia de Gramsci do político como intelectual condensado ao mesmo tempo homem político prático e inventor da linguagem política na história de uma formação social.
Pode-se medir, com régua e compasso, a elite política por seu poder de inventas, criar e recriar, a linguagem política.
Não é obra do acaso a América ter criado, na sociedade, uma linguagem da política latino-americana da atualidade: linguagem neoliberal. No entanto uma prática política latino-americana produziu uma linguagem que se contrapõe ao neoliberalismo. Trata-se da linguagem do bolivarianismo. 
O choque antagônico entre o campo da direita neoliberal e o campo da esquerda bolivariana está levando à destruição da plurivocidade do campo de poderes/saberes na A. L. Com efeito, ambos os campos em tela evitam falar no subdesenvolvimento de hoje como motor da política da A. L.
Aliás, a cultura anglo-americana tem um vocabulário específico para designar <política>. Politics é a luta pelo acesso ao poder político, a conquista do governo em um Estado nacional. Policy é o desenvolvimento das medidas adotadas pelo governante, os diferentes níveis da administração, mas também todo agir definido por ser vantajoso ou útil. (Colas:12-13). Em resumo, política é a política do governante representativo.   
A política pode ser a combinação de dominação (coerção) e hegemonia ou articulação política através de ideias e do domínio do político pela invenção e reinvenção da língua política nacional, em um campo de poderes/saberes, que articula o local, o nacional com o internacional.
Um exemplo de governante ou gramático da língua política é Carl Schmitt. Ele definiu a ideia de política que uma força prática (fascismo) usou para tentar dominar a política mundial, sendo derrotada na guerra.
A ideia é a seguinte:
“Uma determinação conceitual do político só pode ser obtida mediante a descoberta e identificação das categorias especificamente políticas. É que o político tem seus critérios próprios, que de maneira peculiar se tornam eficazes diante dos domínios diversos e relativamente independentes do pensamento e do agir humano, especialmente o moral, o estético e o econômico. O político precisa, pois situar-se em algumas distinções últimas, às quais pode reportar-se toda ação especificamente política. Admitamos que as distinções últimas no âmbito moral sejam bom e mau; no estético, belo e feio; no econômico, útil e prejudicial ou, por exemplo, rentável e não rentável. A questão, então, é se também existe uma distinção peculiar não semelhante ou analógica às demais, porém independente delas, autossuficiente, e como tal evidente, como critério simples do político, e em que ela consiste.
A distinção especificamente política a que podem reportar-se as ações e os motivos políticos é a discriminação entre <amigo> e <inimigo>. (Schmitt:51).
A ideia schmittiana da política está sendo usada pelo campo da direita latino-americana aliada aos Estados Unidos na terceira década do século XXI para destruir a política como plurivocidade de campo de poderes/saberes.  

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A política americana é uma invenção hobbesiana de uma língua política de articulação da hegemonia (junção elite e povo) na história capitalista da modernidade?
Tocqueville diz que a América funda a gramática da sociedade democrática. Precisamos descobrir quem é o gramático que inventa a gramática da sociedade?
Trata-se de um gramático sociológico?
Tocqueville escreve:
“O estado social é, de ordinário, resultado de um fato, às vezes das leis, as mais das vezes da reunião dessas duas causas; uma vez, porém, que ela existe, podemos considerá-la em si mesma a causa primeira da maior parte das leis, dos costumes e das ideias que regem a conduta das nações; aquilo que não produz, ela o modifica. Para conhecer a legislação e os costumes de um povo, convém começar, por isso mesmo, estudando o estado social”. (Tocqueville: 94).
Marx desenvolveu todo um vocabulário a partir da ideia que a sociedade civil é o palco da história. Tocqueville e Marx parece terem criado a ideia de sociologia, como ensina os mestres da sociologia universitária.
Em Tocqueville e Marx, a política é uma expressão da sociedade. Em Tocqueville, ela é a expressão do grande proprietário privado de terra americano. Em Marx, a política em sua forma acabada é expressão da sociedade industrial. Trata-se da diferença na origem entre política americana e política europeia.  
Poulantzas define política assim: “A prática política é o ‘motor da história’ na medida em que o seu produto constitui afinal a transformação da unidade de uma formação social, nos seus diversos estágios e fases. Isto porém, não em um sentido historicista: a prática política é quem transforma a unidade, na medida em que o seu objeto constitui o ponto nodal de condensação das contradições entre os diversos níveis, com historicidades próprias e desenvolvimento desigual”. (Poulantzas.1977: 39-40).
A prática política é o gramático ou governante da sociedade industrial. O gramático da política só existe se uma <força prática> (Lenin: 29) fizer pendant com uma teoria concreta da sociedade de classes moderna: marxismo. Assim, política é idêntica à revolução social.
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Na origem da América moderna, a gramática da sociedade democrática é maior que as forças pessoal e/ou grupal. Trata-se de um fato ininteligível para os latinos americanos, pois, neste continente, a sociedade faz pendant com a força pessoal e/ou grupal. Temos uma espécie de <filosofia do sujeito> como motor da história latino-americana. 
“Ao contrário, o tempo, os acontecimentos e as leis tornaram o elemento democrático não apenas preponderante, mas, também, único. Não se deixa perceber nele nenhuma influência de família nem de grupo; em geral, com efeito, não seria possível perceber nele nenhuma influência de família ou de grupo; muitas vezes, com efeito, não seria possível descobrir nele influências individuais ainda que pouco duráveis”. (Tocqueville: 103). 
A política democrática é aquela da igualdade:” Ora, não conheço mais que duas maneiras de fazer reinar a igualdade no mundo político: é preciso que se deem direitos a cada cidadão, ou que não sejam dados a ninguém”. (Tocqueville: 104).
Os povos democráticos não têm a liberdade como objeto principal da vida política, e sim a igualdade.:
“Por outro lado, quando os cidadãos são todos mais ou menos iguais, é difícil para eles defender a sua independência contra as agressões do poder. (...) Como primeiro povo que se submeteu àquela alternativa temível que acabo de descrever, os anglo-americanos foram bastante felizes para escapar ao poder absoluto”.  (Tocqueville: 104).
Os americanos escapam de um destino funesto através da soberania popular que é o poder da sociedade reconhecido nos costumes e leis:
“Na América, o princípio da soberania popular jamais fica escondido ou estéril, como em certas nações; é reconhecido pelos costumes, proclamado nas leis; estende-se com toda liberdade e sem obstáculos atinge as suas últimas consequências. Se existe um único país no mundo onde podemos esperar apreciar em seu justo valor o dogma da soberania popular, estudá-lo na sua aplicação aos negócios da sociedade e julgar as suas vantagens e os seus perigos, esse país é, sem dúvida, a América”. (Tocqueville: 106-107). 
A soberania popular faz pendant com a igualdade entre os cidadãos. Ela não se presta à sociedade aristocrática onde a desigualdade é própria da natureza da política. A soberania popular é a instituição política (“a lei das leis”) de uma sociedade que atualiza a gramática da sociedade democrática na política. A ideia de governante moderno é uma construção da gramática da soberania popular. 
“Estalou a Revolução Americana. O dogma da soberania popular saiu da comuna e apoderou-se do governo; todas as classes comprometeram-se pela sua causa; travaram-se batalhas e alcançaram-se vitórias em seu nome; e ele se transformou em lei das leis”. (Tocqueville: 107).
Na América Latina, a soberania popular não é uma instituição política da gramática da sociedade nacional igualitária. Ela aparece nas Constituições como algo artificial, como artefato produzido por uma imitação dos povos democráticos. Aliás, a soberania popular na Constituição é um poder popular representativo em contradição com uma América Latina habitada por uma sociedade hierárquica.  Ela não é um dado natural da história política do povo latino-americano. Em geral, a elite latino-americana interpreta a soberania popular como um fenômeno que deve servir à personalidade política ou a facção política. Assim, o partido político latino-americano ou é situacionista (serve ao poder político do presidente da república) ou se torna mera ficção política, na oposição. A ideia de partido político, entre nós, nunca foi gramaticalizada.
Hegel traça uma diferença entre o passado da América do Norte e o da América do Sul que chega até o presente:
“Vemos a prosperidade da América do Norte, graças ao desenvolvimento da indústria e da população, à ordem civil e uma firme liberdade; toda a confederação constitui apenas um Estado e tem os seus centros políticos. Ao contrário, na América do Sul as repúblicas repousam somente no poder militar, toda a sua história é uma revolução permanente: Estados confederados separam-se; outros, que estavam separados, unem-se de novo, e todas essas mudanças são operadas por revoluções militares”. (Hegel: 76).
A sociedade democrática americana se apoia na igualdade entre os cidadãos que constrói o <poder civil>. A América Latina não se define pela busca da igualdade política; ao contrário, se define pela desigualdade da distribuição do poder político entre o estrato militar e o povo civil. O estrato militar cria uma república hierárquica (no Brasil e na América espanhola) avessa à liberdade civil.
No campo de poderes das Américas, os Estados Unidos usaram o domínio do poder militar sobre o quase inexistente poder civil, entre nós, em longa duração, para controlar a América do Sul na era do populismo econômico, que foi um esforço da elite latino-americana para retirar certos países do subdesenvolvimento.  
o populismo econômico gerou um campo de poderes/saberes na América Latina, na época da Guerra Fria, em um antagonismo com o campo de poderes do imperialismo americano. A direita militar latina e os Estados Unidos destruíram este campo de poderes populista econômico, que era o motor de uma história econômica de retirada dos países do subdesenvolvimento da periferia do imperialismo americano.
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O lugar do pobre na política é um fato que distingui a América do Norte da América do Sul:
“O novo continente transformara-se num refúgio, num ‘asilo’ e num ponto de encontro dos pobres; aí havia surgido uma nova raça de homens, ‘unidos pelos laços de seda de um governo moderado’, e vivendo em condições de ‘uma agradável uniformidade’, da qual ‘ a pobreza absoluta, pior do que a morte’, havia sido banido (...) Não foi a Revolução Americana e suas preocupações com o estabelecimento de um novo organismo político, de uma nova forma de governo, mas sim a América, o ‘novo continente’, o americano, o ‘novo homem’, ‘a adorável igualdade, no dizer de Jefferson, ‘que os pobres usufruem justamente com os ricos’, que revolucionou o espírito dos homens”. (Arendt: 20).
No século XXI, o lugar do pobre na política da América do Sul mudou de posição social no campo de poderes de nosso continente. O <bolivarianismo> tomou o lugar do populismo latino-americano se constituindo como um campo de poderes antagônico ao campo de poderes norte-americano. Na Bolívia, o indígena pobre se tornou o poder da soberania popular que fabricou um Estado inédito, entre nós, e uma <economia popular progressista>, onde o pobre é protagonista da história econômica. O campo da direita boliviana oligárquico, em aliança com os Estados Unidos, através de um golpe de Estado militar-policial, vem procurando destruir o bolivarianismo indígena, mesmo que isso signifique destruir o país.
As Américas para os norte-americanos é o símbolo político de uma história que, com o neoliberalismo, mergulhou a A. L. em uma espécie de novo subdesenvolvimento capitalista na periferia do capitalismo globalizado cibernético.     

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. V. 1. Belo Horizonte: UFMG, 2002
ARENDT, Hannah. Da revolução. SP/Brasília: Ática/UNB, 1988
COLAS, Dominique. Sociologie politique. Paris: PUF, 1994
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. RJ: Forense Universitária, 2017
HEGEL. Filosofia da história. Brasília: UNB, 1995
LENIN: Cuadernos filosóficos. Madrid: Editorial Ayuso, 1974
POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. SP: Martins Fontes, 1977
SARTORI, Giovanni. A política. Brasília: UNB, 1981
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Petrópolis: VOZES, 1992
TOCQUEVILLE, Alexis de. De la démocratie en Amérique. V. 1. Paris: Gallimard, 1961