terça-feira, 17 de dezembro de 2019

EUROPA


José Paulo



  O que se denomina como moderno significa, simplesmente, uma <nova época> na história mundial? Ou significa um corte no fluxo histórico que define a ideia de época? A ascensão da Europa no comando da história mundial é o espírito do mundo, que encarna a ideia, sendo levado avante por paixões de indivíduos, em especial os “indivíduos históricos mundiais", como Alexandre, César e Napoleão? (Inwood:162).
A época pode ser definida como a passagem da história da política para a história da economia? Ou definida pelo surgimento de um campo de poderes/saberes no comando da história mundial? Assim, o surgimento do campo de poderes/saberes econômico definiria a ideia de época, ou melhor, a ideia de época moderna?
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Em uma explosão intelectual, Hegel associa a dissolução da Idade média com o nascimento de um campo de saberes científico moderno?
Hegel viveu uma parte de sua visa adulta quando a sociedade industrial inglesa se erguera em um império liberal capitalista, que determinará o rumo da história mundial no século XIX.
A ciência moderna e a técnica industrial se tornam as forças produtivas da sociedade de classes da modernidade. O trabalho livre como força produtiva de produção de mais-valia e da riqueza capitalista de um império industrial muda a ideia de colonialismo dos grandes descobrimentos, cuja América é o símbolo maior.
Hegel diz sobre a dissolução da Idade Média:
“No lugar do formalismo escolástico, surgiu um outro conteúdo. Platão tornou-se conhecido no Ocidente, e com ele surgiu um novo mundo humano. As novas representações encontraram o instrumento principal para a sua propagação na recém-inventada <arte da impressão de livros>, que corresponde - assim com a pólvora ao caráter moderno, e atende às necessidades de estabelecer um relacionamento ideal com os outros. E já que, no estudo dos antigos, se exprime o amor por virtudes e atos humanos, a Igreja não viu nisso nada de mal, não notando que naquelas obras estrangeiras encontrava-se um princípio bem alheio – e que se opunha a ela”.  (Hegel.1995: 340). 
A técnica é vista como definindo o caráter moderno em antagonismo com o campo de poderes/saberes da Igreja.  A era de Gutemberg põe o mercado de livros como força propulsora da cultura moderna em um desenvolvimento do antagonismo do presente moderno com o passado medieval.
MacLuhan diz:
Quer dizer, o leitor da palavra impressa está, em relação ao autor, em posição completamente diferente do leitor dos manuscritos. A palavra impressa gradativamente esvaziou de seu sentido a leitura em voz alta e acelerou o ato de ler até o ponto em que o leitor pôde sentir-se ‘nas mãos de’ seu autor. Veremos que, do mesmo modo que a palavra impressa foi a primeira coisa produzida em massa, foi também o primeiro ‘bem’ ou ‘artigo de comércio’ a repetir-se ou reproduzir-se uniformemente. A linha de montagem de tipos móveis tornou possível um produto que era uniforme e podia repetir-se tanto quanto um experimento científico. Esse caráter não se encontra no manuscrito. Os chineses ao imprimir por meio de blocos de madeira, no século oitavo, ficaram sobremodo impressionados com o caráter repetitivo da operação impressora, considerando-a um processo ‘mágico’ e a utilização como forma alternativa para a roda de orações”. (MacLuhan: 176-177).
O campo de poderes/saberes tem na ciência moderna seu signo e poder transformador da realidade, que a Igreja toma como inimigo figadal:
“Ela se separou da ciência, da filosofia e da literatura humanística, e logo teve a oportunidade de exprimir sua aversão à ciência. O célebre Copérnico descobriu que a Terra e os planetas giravam em torno do Sol, mas a Igreja declarou-se contrária a essa progressão. Galileu, numa discussão sobre razões favoráveis e desfavoráveis dessa descoberta de Copérnico, declarando-se ele mesmo a ela favorável, foi obrigado, de joelhos, a pedir perdão por essa calúnia”. (Hegel. 1995: 347-348).
O campo de poderes/saberes moderno começa com a matematização galilaica da natureza. A razão moderna significa matematização da realidade e do mundo da técnica, que se constituiria como técnica industrial e força produtiva do modo de produção especificamente capitalista do século XIX:
“A matemática, como domínio do conhecimento (e da técnica, sob sua instrução) genuinamente objetivo, estava para Galileu, e já antes dele, no foco do interesse que move o homem ‘moderno’ para um conhecimento filosófico do mundo e uma prática racional. Tem de haver método de medidas para tudo aquilo que abrangem, na sua idealidade e aprioridade,, a geometria ou a matemática das figuras. E o mundo concreto inteiro terá de se revelar como matematizavel e objetivo, se seguirmos aquelas experiencias singulares e medirmos efetivamente tudo o que lhe é atribuível como pressuposto da geometria aplicada, ou melhor, se construirmos os métodos de medida correspondentes. Se assim fizermos, o lado das ocorrências especificamente qualitativas tem <indiretamente> de se <comatematizar>”. (Husserl:29-30).
Como técnica, a ciência moderna é uma força produtiva motriz da história econômica do capitalismo industrial. (Marx. 1978:55).           
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Spaltung do mundo medieval e nascimento do mundo moderno fazem pendant com a cultura moderna do livro. Por ora, anuncia-se a fundação futura de um campo de poderes/saberes moderno na política mundial.  
Para Hegel, o tempo moderno está associado à vontade subjetiva, na atividade particular da vontade na cultura como forma universal, ou seja, o próprio pensamento:
“Até a cultura pertence à forma; a cultura é a confirmação da forma do universal, e isso é o próprio pensamento. O direito, a propriedade, a moralidade objetiva, o governo e a Constituição, entre outras coisas, têm, agora que ser determinados de maneira universal para que sejam adequados e razoáveis ao conceito de livre vontade. Só assim o espírito da verdade pode surgir na vontade subjetiva, na atividade particular da vontade. Se a intensidade do livre espírito subjetivo decide-se pela forma da universalidade, então, o espírito objetivo pode se manifestar. Nesse sentido, é preciso compreender que o Estado foi constituído na religião. Estados e leis não são mais do que o surgimento da religião nas relações da realidade”. (Hegel. 1995: 346).
A religião é uma espécie de fenômeno cultural no real? Se Hegel afirma tal fato, onde o Estado é, também, um efeito da cultura, então, a história da política (como história das diferentes formas de Estado) é também a história da cultura. A era moderna seria a passagem da história da cultura para a história da técnica moderna em uso na era da grande navegação:
“O terceiro momento principal que devemos mencionar exteriorização do espírito, esse desejo do homem de conhecer o seu mundo. O espírito cavaleiro dos heróis marinheiros de Portugal e Espanha encontrou um novo caminho para as Índias Orientais e descobriu a América. Também esse progresso aconteceu sem transgressão aos limites da Igreja. O objetivo de Colombo era particularmente de caráter religioso: os tesouros dos ricos países hindus a serem descobertos deveriam, na sua opinião, ser utilizados para uma nova cruzada e para converter os seus habitantes pagãos ao cristianismo. O homem descobriu que a Terra era redonda, portanto, para ele, algo delimitado, e as viagens marítimas foram favorecidas pela introdução da bússola, deixando assim de ser mera navegação costeira. A técnica aparece quando existe a necessidade”. (Hegel.1995: 340).
Hegel não vê a história da economia como força motriz da era das grandes descobertas europeias? Ele é refém de uma concepção de tempo moderno cultural? Ao contrário, ele assinala a passagem da história cultural para a história das forças técnicas produtivas como fundadora da época moderna.
Marx entende a época moderna pela história da acumulação primitiva de capital europeu:
“A chamada acumulação primitiva é apenas o processo histórico que dissocia o trabalhador dos meios de produção. É considerada primitiva porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção capitalista”. (Marx.1996: 830).
A colônia é o território econômico não-capitalista usado como parte da acumulação primitiva do capital europeu, como quer Rosa Luxemburgo:
“Se o capitalismo vive das formações e das estruturas não-capitalistas, vive mais precisamente da ruína dessas estruturas, e, se necessita de um meio não-capitalista para a acumulação, necessita-o basicamente para realizar a acumulação, após tê-lo absorvido. Considerada historicamente, a acumulação capitalista é uma espécie de metabolismo que se verifica entre os modos de produção capitalista e pré-capitalista. Sem as formações pré-capitalistas, a acumulação não se pode verificar, mas, ao mesmo tempo, ela consiste na desintegração e assimilação delas. Assim, pois, nem a acumulação do capital pode realizar-se sem as estruturas não-capitalistas nem estas podem sequer se manter. A condição vital da acumulação do capital é a dissolução progressiva e contínua das formações pré-capitalistas”. (Rosa: 363).
Rigorosamente, o “capital comercial” que liga a economia da metrópole europeia com a economia da colônia não deve ser definido como <capital>:
“De início, descobriu Wakefield, nas colônias, que a propriedade de dinheiro, de meios de subsistência, de máquinas e de outros meios de produção não transformam um homem em capitalista, se lhe falta o complemento, o trabalhador assalariado, o outro homem que é forçado a vender-se a si mesmo voluntariamente. Descobriu que o capital não é uma coisa, e sim uma relação social entre pessoas efetivada através de coisas”.  Marx. 1996: 885).
A ideia de liberdade cultural moderna é aquela do homem livre, do homem não subjugado ao poder da Igreja, em Hegel. Trata-se do homem europeu não submetido ao campo de poderes/saberes da Igreja. É a liberdade como fenômeno da cultural política europeia germânica com Lutero e Calvino.
 “Este é o conteúdo da Reforma: o homem está determinado por si mesmo a ser livre”. (Hegel. 1995: 346).
E a liberdade civil republicana onde entra no discurso político hegeliano? 
Em Marx, o homem livre se refere ao homem comum no modo de produção capitalista, homem livre, mas forçado, a vender sua força de trabalho: proletariado assalariado do capital industrial.
O campo de poderes/saberes da modernidade tem a sociedade de classes como centro econômico, político e cultural na Europa. Burgueses e proletários são os símbolos e sujeitos da história econômica capitalista com efeitos pertinentes na política na cultura ou domínio das ideologias de classe social.
No discurso marxista, a liberdade civil republicana será tida como liberdade da sociedade civil burguesa em luta contra a sociedade do trabalho. A luta de classes é um fenômeno político que põe em xeque-mate a liberdade civil republicana para todos. Ao proletariado, a ordem burguesa nega os direitos políticos constitutivos da liberdade civil republicana. Daí, os marxistas falarem em ditadura burguesa (igual a democracia burguesa) a ser substituída por uma ditadura do proletariado. 
A liberdade hegeliana é um produto da Reforma protestante. A cidade moderna em contraposição ao campo tradicional é o habitat desse movimento de cultura política que para Hegel é o corte no fluxo histórico, que instaura a modernidade política:
“As nações eslavas eram agricultoras. Essa relação carrega consigo aquela de senhores e servos. Na agricultura, prevalece o ímpeto da natureza. A atividade humana e subjetiva, com efeito, prevalece menos nesse trabalho, por isso os eslavos são mais lentos e mais difíceis de se conquistar para o sentimento básico do ser subjetivo, para a consciência do universal, para aquilo que anteriormente denominamos poder estatal, e em decorrência desses fatores não puderam participar da liberdade que então nascia”. (Hegel. 1995: 348).
A liberdade de hegeliana associa liberdade cultural e política moderna? Trata-se da liberdade como fenômeno da cultura política universal condensada na ideia de <poder estatal>.
Com Marx, temos a universalização do poder estatal como fenômeno moderno, assim que o Estado se define como aparelho de Estado e poder de Estado. (Balibar:94). Essa invenção política europeia foi copiada por inúmeros povos em vários continentes. Então, o poder estatal aparece como expressão da sociedade de classes, capitalista, industrial da luta de classe da burguesia contra o proletariado. Assim, a existência do poder estatal não se remete a uma cultura política universal hegeliana, e sim a universalização da sociedade de classes moderna industrial.
A propósito, na América Latina, o poder estatal só existiu com a sociedade industrial capitalista em países como Argentina, Brasil e México - na segunda metade do século XX. O desaparecimento da sociedade industrial nesses países hoje significa a desintegração do poder estatal. Então, inúmeros fenômenos estranhos tomam conta do mundo urbano. Por exemplo, a grande cidade se torna uma articulação arqueopolítica do crime organizado.
No Brasil com Bolsonaro, o poder estatal se torna quase a propriedade privada de um senhor. O Estado da sociedade industrial capitalista perde seu caráter de universalidade. A articulação da <política do subdesenvolvimento> (Bandeira da Silveira. 2019b: 133) desfaz o Estado como poder de Estado e aparelho de Estado. Este último se torna propriedade privada de um senhor. As gramáticas do modo de produção e circulação do subdesenvolvimento adquirem uma universalidade americana em um contraponto às gramáticas do capitalismo industrial, avançado, cibernético. (Bandeira da Silveira. 2019a:141).  
“O Estado precisa ter uma última vontade decisiva; mas se um indivíduo deve ser considerado o poder decisório final, ele o deve ser de forma determinada e natural, e não por escolha, opinião ou método desse gênero. Mesmo entre os gregos livres, o oráculo era o poder exterior que determinava os principais assuntos; aqui, o <nascimento> é o oráculo. Algo independente de toda arbitrariedade. Já que o líder de uma monarquia pertencia a uma família, o domínio era uma propriedade privada – portanto, seria como tal divisível -, mas, com a divisão, opõe-se ao conceito de Estado, e então os direitos dos monarcas e de suas famílias tiveram que ser especificados. Os domínios não pertenciam a um único senhor, mas à família como <fideicomissos>, e as <classes> tinham a garantia, pois, deviam manter a unidade. Dessa forma, o principado perdeu o sentido de propriedade particular, de posses de bens e domínios, de jurisdição etc., passando a ser propriedade e assunto estatal”. (Hegel. 1995: 353).  
Com Bolsonaro, o poder estatal é substituído por uma outra forma de poder político, com o presidente da república em posse de um aparelho de Estado <inquisitorial>. Assim, aparece a ideia prática de um <poder político inquisitorial>:
“O instrumento utilizado para estabelecer o poder real na Espanha foi a <Inquisição>. Esta, introduzida com o fim de perseguir judeus, mouros e hereges, logo tomou caráter político ao se voltar contra os inimigos do Estado. A Inquisição fortaleceu o despotismo dos reis, estava acima de bispos e arcebispos, e podia submetê-los ao tribunal. Constantes confiscos de bens, um dos mais habituais castigos, enriqueceram, na ocasião, o Tesouro nacional. A Inquisição, além disso, era um tribunal de suspeita., e já que exercia u enorme poder sobre o clero, tinha o seu verdadeiro apoio no orgulho nacional. Todo espanhol queria ser de sangue cristão, e esse orgulho coincidiu com as intenções e a tendência da Inquisição. Algumas províncias da monarquia espanhola, como Aragón, ainda mantinham muitos direitos especiais e privilégios, mas, a partir do rei espanhol Filipe II, eles foram abolidos”. (Hegel. 1995: 354).  
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Hegel pensa a gramática moderna europeia?                
A gramática europeia se estabelece como interioridade, ou seja, como subjetividade universal através do pensamento: “O pensamento considera tudo em forma de universalidade e, por isso, é a atividade e produção do universal”. (Hegel. 1995: 360).
A Europa produz o capitalismo industrial moderno como pensamento universal que conquista a América. Esta inventa uma gramática capitalista cibernética que define o rumo da história econômica do planeta a partir do final do século XX.
No século XXI, a gramática do capitalismo avançado, cibernético se constrói como uma sociedade industrial na Ásia Oriental. Assim, a China desponta como potência industrial fazendo pendant com os Estados Unidos. No nosso presente da terceira década do século XXI, a maioria dos países da Europa vão se tornado periferia subdesenvolvida (industrial ou não) do capitalismo desenvolvido cibernético asiático.
A ideia de liberdade subjetiva universal de Hegel parece ter abandonada a Europa?
“O interesse prático precisa dos objetos, consome-os. O teórico observa-os com a segurança de que eles não são diferentes em si. Assim, o ápice da interioridade é o pensamento. O homem não é livre se não pensa, apenas mantém com o mundo à sua volta uma relação com uma outra forma de ser”. (Hegel. 1995: 361).
O campo de poderes/saberes moderno inventado pela Europa está naufragando. Ele se tornou obsoleto. Anote-se, no entanto, que ao naufrágio da economia política corresponde o aparecimento das gramáticas do capitalismo cibernético desenvolvido e do subdesenvolvimento do século XXI, nas Américas.

BALIBAR, Étienne. Cinq études du materialisme historique. Paris: Maspero, 1974
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramáticas do capitalismo. Lisboa: Chiado, 2019a
 BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje. Lisboa: Chiado, 2019b
HEGEL. Filosofia da história. Brasília: UNB, 1995
HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. RJ: Forense Universitária, 2012
INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. RJ: Jorge Zahar Editora, 1997
MCLUHAN, Marshall A galáxia de Gutenberg. SP: Editora Nacional/USP, 1972
MARX. O capital. Livro 1, capítulo VI (inédito). SP: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978
MARX. O capital. Livro 1. Volume 2. RJ: Bertrand Brasil, 1966
ROSA LUXEMBURGO. A acumulação do capital. RJ: Zahar, 1970
       

         




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