José Paulo
O que se denomina como moderno significa, simplesmente, uma <nova época> na história mundial? Ou significa um
corte no fluxo histórico que define a ideia de época? A ascensão da Europa no
comando da história mundial é o espírito do mundo, que encarna a ideia, sendo
levado avante por paixões de indivíduos, em especial os “indivíduos históricos
mundiais", como Alexandre, César e Napoleão? (Inwood:162).
A época pode ser definida como a
passagem da história da política para a história da economia? Ou definida pelo
surgimento de um campo de poderes/saberes no comando da história mundial?
Assim, o surgimento do campo de poderes/saberes econômico definiria a ideia de
época, ou melhor, a ideia de época moderna?
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Em uma explosão intelectual, Hegel
associa a dissolução da Idade média com o nascimento de um campo de saberes
científico moderno?
Hegel viveu uma parte de sua visa
adulta quando a sociedade industrial inglesa se erguera em um império liberal
capitalista, que determinará o rumo da história mundial no século XIX.
A ciência moderna e a técnica
industrial se tornam as forças produtivas da sociedade de classes da
modernidade. O trabalho livre como força produtiva de produção de mais-valia e
da riqueza capitalista de um império industrial muda a ideia de colonialismo
dos grandes descobrimentos, cuja América é o símbolo maior.
Hegel diz sobre a dissolução da Idade
Média:
“No lugar do formalismo escolástico,
surgiu um outro conteúdo. Platão tornou-se conhecido no Ocidente, e com ele
surgiu um novo mundo humano. As novas representações encontraram o instrumento
principal para a sua propagação na recém-inventada <arte da impressão de livros>, que corresponde - assim com a
pólvora ao caráter moderno, e atende às necessidades de estabelecer um
relacionamento ideal com os outros. E já que, no estudo dos antigos, se exprime
o amor por virtudes e atos humanos, a Igreja não viu nisso nada de mal, não
notando que naquelas obras estrangeiras encontrava-se um princípio bem alheio –
e que se opunha a ela”. (Hegel.1995:
340).
A técnica é vista como definindo o
caráter moderno em antagonismo com o campo de poderes/saberes da Igreja. A era de Gutemberg põe o mercado de livros
como força propulsora da cultura moderna em um desenvolvimento do antagonismo
do presente moderno com o passado medieval.
MacLuhan diz:
Quer dizer, o leitor da palavra
impressa está, em relação ao autor, em posição completamente diferente do
leitor dos manuscritos. A palavra impressa gradativamente esvaziou de seu
sentido a leitura em voz alta e acelerou o ato de ler até o ponto em que o
leitor pôde sentir-se ‘nas mãos de’ seu autor. Veremos que, do mesmo modo que a
palavra impressa foi a primeira coisa produzida em massa, foi também o primeiro
‘bem’ ou ‘artigo de comércio’ a repetir-se ou reproduzir-se uniformemente. A
linha de montagem de tipos móveis tornou possível um produto que era uniforme e
podia repetir-se tanto quanto um experimento científico. Esse caráter não se
encontra no manuscrito. Os chineses ao imprimir por meio de blocos de madeira,
no século oitavo, ficaram sobremodo impressionados com o caráter repetitivo da
operação impressora, considerando-a um processo ‘mágico’ e a utilização como
forma alternativa para a roda de orações”. (MacLuhan: 176-177).
O campo de poderes/saberes tem na
ciência moderna seu signo e poder transformador da realidade, que a Igreja toma
como inimigo figadal:
“Ela se separou da ciência, da
filosofia e da literatura humanística, e logo teve a oportunidade de exprimir
sua aversão à ciência. O célebre Copérnico descobriu que a Terra e os planetas
giravam em torno do Sol, mas a Igreja declarou-se contrária a essa progressão.
Galileu, numa discussão sobre razões favoráveis e desfavoráveis dessa
descoberta de Copérnico, declarando-se ele mesmo a ela favorável, foi obrigado,
de joelhos, a pedir perdão por essa calúnia”. (Hegel. 1995: 347-348).
O campo de poderes/saberes moderno
começa com a matematização galilaica da natureza. A razão moderna significa
matematização da realidade e do mundo da técnica, que se constituiria como
técnica industrial e força produtiva do modo de produção especificamente
capitalista do século XIX:
“A matemática, como domínio do conhecimento
(e da técnica, sob sua instrução) genuinamente objetivo, estava para Galileu, e
já antes dele, no foco do interesse que move o homem ‘moderno’ para um
conhecimento filosófico do mundo e uma prática racional. Tem de haver método de
medidas para tudo aquilo que abrangem, na sua idealidade e aprioridade,, a
geometria ou a matemática das figuras. E o mundo concreto inteiro terá de se
revelar como matematizavel e objetivo, se seguirmos aquelas experiencias
singulares e medirmos efetivamente tudo o que lhe é atribuível como pressuposto
da geometria aplicada, ou melhor, se construirmos os métodos de medida
correspondentes. Se assim fizermos, o lado das ocorrências especificamente
qualitativas tem <indiretamente> de se <comatematizar>”. (Husserl:29-30).
Como técnica, a ciência moderna é uma
força produtiva motriz da história econômica do capitalismo industrial. (Marx.
1978:55).
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Spaltung do mundo medieval e
nascimento do mundo moderno fazem pendant com a cultura moderna do livro. Por
ora, anuncia-se a fundação futura de um campo de poderes/saberes moderno na
política mundial.
Para Hegel, o tempo moderno está
associado à vontade subjetiva, na atividade particular da vontade na cultura
como forma universal, ou seja, o próprio pensamento:
“Até a cultura pertence à forma; a
cultura é a confirmação da forma do universal, e isso é o próprio pensamento. O
direito, a propriedade, a moralidade objetiva, o governo e a Constituição,
entre outras coisas, têm, agora que ser determinados de maneira universal para
que sejam adequados e razoáveis ao conceito de livre vontade. Só assim o espírito
da verdade pode surgir na vontade subjetiva, na atividade particular da
vontade. Se a intensidade do livre espírito subjetivo decide-se pela forma da
universalidade, então, o espírito objetivo pode se manifestar. Nesse sentido, é
preciso compreender que o Estado foi constituído na religião. Estados e leis
não são mais do que o surgimento da religião nas relações da realidade”.
(Hegel. 1995: 346).
A religião é uma espécie de fenômeno
cultural no real? Se Hegel afirma tal fato, onde o Estado é, também, um efeito
da cultura, então, a história da política (como história das diferentes formas
de Estado) é também a história da cultura. A era moderna seria a passagem da
história da cultura para a história da técnica moderna em uso na era da grande
navegação:
“O terceiro momento principal que
devemos mencionar exteriorização do espírito, esse desejo do homem de conhecer
o seu mundo. O espírito cavaleiro dos heróis marinheiros de Portugal e Espanha
encontrou um novo caminho para as Índias Orientais e descobriu a América.
Também esse progresso aconteceu sem transgressão aos limites da Igreja. O
objetivo de Colombo era particularmente de caráter religioso: os tesouros dos
ricos países hindus a serem descobertos deveriam, na sua opinião, ser
utilizados para uma nova cruzada e para converter os seus habitantes pagãos ao
cristianismo. O homem descobriu que a Terra era redonda, portanto, para ele,
algo delimitado, e as viagens marítimas foram favorecidas pela introdução da
bússola, deixando assim de ser mera navegação costeira. A técnica aparece
quando existe a necessidade”. (Hegel.1995: 340).
Hegel não vê a história da economia
como força motriz da era das grandes descobertas europeias? Ele é refém de uma
concepção de tempo moderno cultural? Ao contrário, ele assinala a passagem da
história cultural para a história das forças técnicas produtivas como fundadora
da época moderna.
Marx entende a época moderna pela história
da acumulação primitiva de capital europeu:
“A chamada acumulação primitiva é
apenas o processo histórico que dissocia o trabalhador dos meios de produção. É
considerada primitiva porque constitui a pré-história do capital e do modo de
produção capitalista”. (Marx.1996: 830).
A colônia é o território econômico
não-capitalista usado como parte da acumulação primitiva do capital europeu,
como quer Rosa Luxemburgo:
“Se o capitalismo vive das formações
e das estruturas não-capitalistas, vive mais precisamente da ruína dessas
estruturas, e, se necessita de um meio não-capitalista para a acumulação,
necessita-o basicamente para realizar a acumulação, após tê-lo absorvido.
Considerada historicamente, a acumulação capitalista é uma espécie de
metabolismo que se verifica entre os modos de produção capitalista e
pré-capitalista. Sem as formações pré-capitalistas, a acumulação não se pode
verificar, mas, ao mesmo tempo, ela consiste na desintegração e assimilação
delas. Assim, pois, nem a acumulação do capital pode realizar-se sem as estruturas
não-capitalistas nem estas podem sequer se manter. A condição vital da
acumulação do capital é a dissolução progressiva e contínua das formações
pré-capitalistas”. (Rosa: 363).
Rigorosamente, o “capital comercial”
que liga a economia da metrópole europeia com a economia da colônia não deve
ser definido como <capital>:
“De início, descobriu Wakefield, nas
colônias, que a propriedade de dinheiro, de meios de subsistência, de máquinas
e de outros meios de produção não transformam um homem em capitalista, se lhe
falta o complemento, o trabalhador assalariado, o outro homem que é forçado a
vender-se a si mesmo voluntariamente. Descobriu que o capital não é uma coisa,
e sim uma relação social entre pessoas efetivada através de coisas”. Marx. 1996: 885).
A ideia de liberdade cultural moderna
é aquela do homem livre, do homem não subjugado ao poder da Igreja, em Hegel.
Trata-se do homem europeu não submetido ao campo de poderes/saberes da Igreja. É
a liberdade como fenômeno da cultural política europeia germânica com Lutero e
Calvino.
“Este é o conteúdo da Reforma: o homem está determinado por
si mesmo a ser livre”. (Hegel. 1995: 346).
E a liberdade civil republicana onde
entra no discurso político hegeliano?
Em Marx, o homem livre se refere ao
homem comum no modo de produção capitalista, homem livre, mas forçado, a vender
sua força de trabalho: proletariado assalariado do capital industrial.
O campo de poderes/saberes da
modernidade tem a sociedade de classes como centro econômico, político e
cultural na Europa. Burgueses e proletários são os símbolos e sujeitos da
história econômica capitalista com efeitos pertinentes na política na cultura
ou domínio das ideologias de classe social.
No discurso marxista, a liberdade
civil republicana será tida como liberdade da sociedade civil burguesa em luta
contra a sociedade do trabalho. A luta de classes é um fenômeno político que
põe em xeque-mate a liberdade civil republicana para todos. Ao proletariado, a
ordem burguesa nega os direitos políticos constitutivos da liberdade civil
republicana. Daí, os marxistas falarem em ditadura burguesa (igual a democracia
burguesa) a ser substituída por uma ditadura do proletariado.
A liberdade hegeliana é um produto da
Reforma protestante. A cidade moderna em contraposição ao campo tradicional é o
habitat desse movimento de cultura política que para Hegel é o corte no fluxo
histórico, que instaura a modernidade política:
“As nações eslavas eram agricultoras.
Essa relação carrega consigo aquela de senhores e servos. Na agricultura,
prevalece o ímpeto da natureza. A atividade humana e subjetiva, com efeito,
prevalece menos nesse trabalho, por isso os eslavos são mais lentos e mais
difíceis de se conquistar para o sentimento básico do ser subjetivo, para a consciência
do universal, para aquilo que anteriormente denominamos poder estatal, e em decorrência
desses fatores não puderam participar da liberdade que então nascia”. (Hegel.
1995: 348).
A liberdade de hegeliana associa
liberdade cultural e política moderna? Trata-se da liberdade como fenômeno da
cultura política universal condensada na ideia de <poder estatal>.
Com Marx, temos a universalização do
poder estatal como fenômeno moderno, assim que o Estado se define como aparelho
de Estado e poder de Estado. (Balibar:94). Essa invenção política europeia foi copiada
por inúmeros povos em vários continentes. Então, o poder estatal aparece como
expressão da sociedade de classes, capitalista, industrial da luta de classe da
burguesia contra o proletariado. Assim, a existência do poder estatal não se
remete a uma cultura política universal hegeliana, e sim a universalização da
sociedade de classes moderna industrial.
A propósito, na América Latina, o
poder estatal só existiu com a sociedade industrial capitalista em países como
Argentina, Brasil e México - na segunda metade do século XX. O desaparecimento
da sociedade industrial nesses países hoje significa a desintegração do poder
estatal. Então, inúmeros fenômenos estranhos tomam conta do mundo urbano. Por
exemplo, a grande cidade se torna uma articulação arqueopolítica do crime
organizado.
No Brasil com Bolsonaro, o poder estatal
se torna quase a propriedade privada de um senhor. O Estado da sociedade
industrial capitalista perde seu caráter de universalidade. A articulação da <política do subdesenvolvimento>
(Bandeira da Silveira.
2019b: 133) desfaz o Estado como poder de Estado e aparelho de Estado. Este último
se torna propriedade privada de um senhor. As gramáticas do modo de produção e
circulação do subdesenvolvimento adquirem uma universalidade americana em um
contraponto às gramáticas do capitalismo industrial, avançado, cibernético.
(Bandeira da Silveira. 2019a:141).
“O Estado precisa ter uma última
vontade decisiva; mas se um indivíduo deve ser considerado o poder decisório
final, ele o deve ser de forma determinada e natural, e não por escolha,
opinião ou método desse gênero. Mesmo entre os gregos livres, o oráculo era o
poder exterior que determinava os principais assuntos; aqui, o <nascimento> é o oráculo. Algo independente de
toda arbitrariedade. Já que o líder de uma monarquia pertencia a uma família, o
domínio era uma propriedade privada – portanto, seria como tal divisível -,
mas, com a divisão, opõe-se ao conceito de Estado, e então os direitos dos
monarcas e de suas famílias tiveram que ser especificados. Os domínios não
pertenciam a um único senhor, mas à família como <fideicomissos>, e as <classes> tinham a garantia, pois, deviam
manter a unidade. Dessa forma, o principado perdeu o sentido de propriedade
particular, de posses de bens e domínios, de jurisdição etc., passando a ser
propriedade e assunto estatal”. (Hegel. 1995: 353).
Com Bolsonaro, o poder estatal é substituído
por uma outra forma de poder político, com o presidente da república em posse de
um aparelho de Estado <inquisitorial>. Assim, aparece a ideia prática de um <poder político inquisitorial>:
“O instrumento utilizado para estabelecer o
poder real na Espanha foi a <Inquisição>. Esta, introduzida com o fim de
perseguir judeus, mouros e hereges, logo tomou caráter político ao se voltar
contra os inimigos do Estado. A Inquisição fortaleceu o despotismo dos reis,
estava acima de bispos e arcebispos, e podia submetê-los ao tribunal. Constantes
confiscos de bens, um dos mais habituais castigos, enriqueceram, na ocasião, o Tesouro
nacional. A Inquisição, além disso, era um tribunal de suspeita., e já que
exercia u enorme poder sobre o clero, tinha o seu verdadeiro apoio no orgulho
nacional. Todo espanhol queria ser de sangue cristão, e esse orgulho coincidiu com
as intenções e a tendência da Inquisição. Algumas províncias da monarquia
espanhola, como Aragón, ainda mantinham muitos direitos especiais e
privilégios, mas, a partir do rei espanhol Filipe II, eles foram abolidos”.
(Hegel. 1995: 354).
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Hegel pensa a gramática moderna europeia?
A gramática europeia se estabelece
como interioridade, ou seja, como subjetividade universal através do pensamento:
“O pensamento considera tudo em forma de universalidade e, por isso, é a
atividade e produção do universal”. (Hegel. 1995: 360).
A Europa produz o capitalismo industrial
moderno como pensamento universal que conquista a América. Esta inventa uma gramática
capitalista cibernética que define o rumo da história econômica do planeta a
partir do final do século XX.
No século XXI, a gramática do capitalismo
avançado, cibernético se constrói como uma sociedade industrial na Ásia
Oriental. Assim, a China desponta como potência industrial fazendo pendant com
os Estados Unidos. No nosso presente da terceira década do século XXI, a maioria
dos países da Europa vão se tornado periferia subdesenvolvida (industrial ou
não) do capitalismo desenvolvido cibernético asiático.
A ideia de liberdade subjetiva
universal de Hegel parece ter abandonada a Europa?
“O interesse prático precisa dos
objetos, consome-os. O teórico observa-os com a segurança de que eles não são
diferentes em si. Assim, o ápice da interioridade é o pensamento. O homem não é
livre se não pensa, apenas mantém com o mundo à sua volta uma relação com uma outra
forma de ser”. (Hegel. 1995: 361).
O campo de poderes/saberes moderno
inventado pela Europa está naufragando. Ele se tornou obsoleto. Anote-se, no
entanto, que ao naufrágio da economia política corresponde o aparecimento das
gramáticas do capitalismo cibernético desenvolvido e do subdesenvolvimento do
século XXI, nas Américas.
BALIBAR, Étienne. Cinq études du materialisme
historique. Paris: Maspero, 1974
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo.
Gramáticas do capitalismo. Lisboa: Chiado, 2019a
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento
hoje. Lisboa: Chiado, 2019b
HEGEL. Filosofia da história.
Brasília: UNB, 1995
HUSSERL, Edmund. A crise das ciências
europeias e a fenomenologia transcendental. RJ: Forense Universitária, 2012
INWOOD, Michael. Dicionário Hegel.
RJ: Jorge Zahar Editora, 1997
MCLUHAN, Marshall A galáxia de Gutenberg.
SP: Editora Nacional/USP, 1972
MARX. O capital. Livro 1, capítulo VI
(inédito). SP: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978
MARX. O capital. Livro 1. Volume 2.
RJ: Bertrand Brasil, 1966
ROSA LUXEMBURGO. A acumulação do capital.
RJ: Zahar, 1970
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