sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

AMÉRICAS para americanos hoje


José Paulo



O objetivo é estabelecer a gramática política da América. Começo pela gramática em si.
 Estabelece-se com clareza a gramática da sociedade como homóloga à Constituição moderna (discurso legal virtual)? Ao contrário, a gramática de uma formação social em uma história econômica faz pendant com o estado de exceção soberano:
“E como a linguagem pressupõe o não-linguístico como aquilo com o qual deve poder manter-se em relação virtual (na forma de uma <langue>, ou mais precisamente, de um jogo gramatical, ou seja de um discurso cuja denotação atual é mantida indefinidamente em suspenso), para poder depois denotá-lo no discurso em ato, assim a lei pressupõe o não-jurídico (por exemplo, a mera violência enquanto estado de natureza) como aquilo com o qual se mantém em relação potencial no estado de exceção. A exceção soberana (como zona de indiferença entre natureza e direito) é a pressuposição da referência jurídica na forma de sua suspensão”. (Agamben: 28).   
A gramática de uma sociedade é o discurso virtual homóloga na política à exceção soberana.
Foucault diz:
“Atrás do sistema acabado, o que a análise das formações descobre não é a própria vida em efervescência, a vida ainda não capturada, mas sim uma espessura imensa de sistematicidades, um conjunto cerrado de relações múltiplas. Além disso, essas relações, por mais que se esforcem para não serem a própria trama do texto, não são, por natureza, estranhas ao discurso. Pode-se mesmo qualifica-las de pré-discursivas’, mas com a condição de que se admita que esse pré-discursivo pertence, ainda, ao discurso, isto é, que elas não especificam um pensamento, uma consciência ou um conjunto de representações que seriam, mais tarde, e de uma forma inteiramente necessária, transcritas em um discurso, mas que caracterizam certos níveis de discurso, definem regras que ele <atualiza> enquanto prática singular. Não procuramos, pois, passar do texto ao pensamento, da conversa ao silêncio, do exterior ao interior, da dispersão espacial ao puro recolhimento do instante, da multiplicidade superficial à unidade profunda. Permanecemos na dimensão do discurso”. (Foucault.2012:90-91).  

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Tocqueville escreve:
Já discorri o bastante para colocar sob sua verdadeira luz o caráter da civilização anglo-americana. Ela é produto (e este ponto de partida deve estar presente sem cessar no pensamento) de dois elementos perfeitamente distintos, que aliás muitas vezes se combateram mutuamente, mas que, de certa forma, os americanos conseguiram incorporar um ao outro e combinar maravilhosamente. Refiro-me ao <espírito de religião> e ao <espírito de liberdade>”. (Tocqueville: 90).
Citando um outro texto meu:
 A América do Norte é a invenção de uma nova gramaticada política na qual o <legislator> americano combina, sincreticamente, a política moderna (republicanismo democrático) com a cultura judaica da antiguidade:
“Nada é mais singular e ao mesmo tempo mais instrutivo que a legislação daquela época: é nela, principalmente, que se encontra a chave do grande enigma social que os Estados Unidos apresentam ao mundo em nossos dias.
Entre esses monumentos, distinguiremos particularmente, como um dos mais caraterísticos, o código de leis que o pequeno Estado de Connecticut promulgou em 1650. Em primeiro lugar, ocuparam-se os legisladores de Connecticut das leis penas; e, para redigi-las, concebem a estranha ideia de se abeberarem nos textos sagrados.
‘Quem quer adorar outro Deus que não seja o Senhor – dizem eles, para começar, - aquele certamente morrerá’. Seguem-se dez ou doze disposições da mesma natureza, tomadas de empréstimo, textualmente, ao Deuterônimo, ao Êxodo e ao Levítico. A blasfêmia, bruxaria, o adultério e o estupro são castigados com a morte; a ofensa cometida por um filho contra seus pais é capitulada na mesma pena. Dessa forma, a legislação de um povo rude e semicivilizado era transportada ao seio de uma sociedade cujo espírito era esclarecido e brandos os costumes; em consequência, jamais se viu a pena de morte mais frequentemente prescrita nas leis, nem mais raramente aplicada”. (Tocqueville:82-83).
Há além da Constituição formal americana dos “pais fundadores” o discurso virtual ou gramática da formação social americana, enfim, da política americana. Esta se define pela política americana na plurivocidade de campo de poderes/saberes local ou regional, nacional [e internacional].  
O que é <política>?
Na cultura grega da antiguidade, a política tem uma dimensão ética. O vocabulário político (polis, polites, politikós) não especificava um domínio político distinto da ética. Na cultura romana, a política faz pendant com um vocabulário político como civilis societas e iures societas. Não se trata da sociedade doa sociologia moderna ou da formação social marxista.
A política grega associada às formas de governo pode ser a política do democrata (da multidão), do oligarca (dos poucos) e do tirano (do um).
No vocabulário latino, a res publica ou coisa comum, coisa da cidade, interesse geral, se contrapõe ao império e à polis e polites. Na república moderna, trata-se de uma ideia política que designa uma forma de Estado (oposta à monarquia) de um poder político centralizado e burocrático que se contrapõe as ideias de politeia, de res publica e de common weal.
É um truísmo que Maquiavel pensou a política como domínio separado da ética, da moral e, principalmente, da religião. Pode-se, então, falar de uma gramática da política, de um fenômeno específico.
Na cultura medieval, a política aparece entrelaçada com a religião, o poder religioso em luta contra o poder temporal pelo domínio do mundo político, da sociedade. A Idade Média se caracteriza por uma plurivocidade de revolução do secularismo. Na política, o vocabulário político secular inclui o regnum, império não submetido ao poder papal, a cidade-Estado, as repúblicas da Idade Média tardia, uma certa Igreja secular, Igreja-Estado.  
Uma ideia verdadeiramente distinta sobre política se encontra em Hobbes. Ele define a política como o poder de inventar palavras, de defini-las, de impô-las aos súditos. (Sartori:163). Esta ideia maravilhosa da política faz do político o governante da linguagem, o gramático da língua política. Trata-se da ideia de Gramsci do político como intelectual condensado ao mesmo tempo homem político prático e inventor da linguagem política na história de uma formação social.
Pode-se medir, com régua e compasso, a elite política por seu poder de inventas, criar e recriar, a linguagem política.
Não é obra do acaso a América ter criado, na sociedade, uma linguagem da política latino-americana da atualidade: linguagem neoliberal. No entanto uma prática política latino-americana produziu uma linguagem que se contrapõe ao neoliberalismo. Trata-se da linguagem do bolivarianismo. 
O choque antagônico entre o campo da direita neoliberal e o campo da esquerda bolivariana está levando à destruição da plurivocidade do campo de poderes/saberes na A. L. Com efeito, ambos os campos em tela evitam falar no subdesenvolvimento de hoje como motor da política da A. L.
Aliás, a cultura anglo-americana tem um vocabulário específico para designar <política>. Politics é a luta pelo acesso ao poder político, a conquista do governo em um Estado nacional. Policy é o desenvolvimento das medidas adotadas pelo governante, os diferentes níveis da administração, mas também todo agir definido por ser vantajoso ou útil. (Colas:12-13). Em resumo, política é a política do governante representativo.   
A política pode ser a combinação de dominação (coerção) e hegemonia ou articulação política através de ideias e do domínio do político pela invenção e reinvenção da língua política nacional, em um campo de poderes/saberes, que articula o local, o nacional com o internacional.
Um exemplo de governante ou gramático da língua política é Carl Schmitt. Ele definiu a ideia de política que uma força prática (fascismo) usou para tentar dominar a política mundial, sendo derrotada na guerra.
A ideia é a seguinte:
“Uma determinação conceitual do político só pode ser obtida mediante a descoberta e identificação das categorias especificamente políticas. É que o político tem seus critérios próprios, que de maneira peculiar se tornam eficazes diante dos domínios diversos e relativamente independentes do pensamento e do agir humano, especialmente o moral, o estético e o econômico. O político precisa, pois situar-se em algumas distinções últimas, às quais pode reportar-se toda ação especificamente política. Admitamos que as distinções últimas no âmbito moral sejam bom e mau; no estético, belo e feio; no econômico, útil e prejudicial ou, por exemplo, rentável e não rentável. A questão, então, é se também existe uma distinção peculiar não semelhante ou analógica às demais, porém independente delas, autossuficiente, e como tal evidente, como critério simples do político, e em que ela consiste.
A distinção especificamente política a que podem reportar-se as ações e os motivos políticos é a discriminação entre <amigo> e <inimigo>. (Schmitt:51).
A ideia schmittiana da política está sendo usada pelo campo da direita latino-americana aliada aos Estados Unidos na terceira década do século XXI para destruir a política como plurivocidade de campo de poderes/saberes.  

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A política americana é uma invenção hobbesiana de uma língua política de articulação da hegemonia (junção elite e povo) na história capitalista da modernidade?
Tocqueville diz que a América funda a gramática da sociedade democrática. Precisamos descobrir quem é o gramático que inventa a gramática da sociedade?
Trata-se de um gramático sociológico?
Tocqueville escreve:
“O estado social é, de ordinário, resultado de um fato, às vezes das leis, as mais das vezes da reunião dessas duas causas; uma vez, porém, que ela existe, podemos considerá-la em si mesma a causa primeira da maior parte das leis, dos costumes e das ideias que regem a conduta das nações; aquilo que não produz, ela o modifica. Para conhecer a legislação e os costumes de um povo, convém começar, por isso mesmo, estudando o estado social”. (Tocqueville: 94).
Marx desenvolveu todo um vocabulário a partir da ideia que a sociedade civil é o palco da história. Tocqueville e Marx parece terem criado a ideia de sociologia, como ensina os mestres da sociologia universitária.
Em Tocqueville e Marx, a política é uma expressão da sociedade. Em Tocqueville, ela é a expressão do grande proprietário privado de terra americano. Em Marx, a política em sua forma acabada é expressão da sociedade industrial. Trata-se da diferença na origem entre política americana e política europeia.  
Poulantzas define política assim: “A prática política é o ‘motor da história’ na medida em que o seu produto constitui afinal a transformação da unidade de uma formação social, nos seus diversos estágios e fases. Isto porém, não em um sentido historicista: a prática política é quem transforma a unidade, na medida em que o seu objeto constitui o ponto nodal de condensação das contradições entre os diversos níveis, com historicidades próprias e desenvolvimento desigual”. (Poulantzas.1977: 39-40).
A prática política é o gramático ou governante da sociedade industrial. O gramático da política só existe se uma <força prática> (Lenin: 29) fizer pendant com uma teoria concreta da sociedade de classes moderna: marxismo. Assim, política é idêntica à revolução social.
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Na origem da América moderna, a gramática da sociedade democrática é maior que as forças pessoal e/ou grupal. Trata-se de um fato ininteligível para os latinos americanos, pois, neste continente, a sociedade faz pendant com a força pessoal e/ou grupal. Temos uma espécie de <filosofia do sujeito> como motor da história latino-americana. 
“Ao contrário, o tempo, os acontecimentos e as leis tornaram o elemento democrático não apenas preponderante, mas, também, único. Não se deixa perceber nele nenhuma influência de família nem de grupo; em geral, com efeito, não seria possível perceber nele nenhuma influência de família ou de grupo; muitas vezes, com efeito, não seria possível descobrir nele influências individuais ainda que pouco duráveis”. (Tocqueville: 103). 
A política democrática é aquela da igualdade:” Ora, não conheço mais que duas maneiras de fazer reinar a igualdade no mundo político: é preciso que se deem direitos a cada cidadão, ou que não sejam dados a ninguém”. (Tocqueville: 104).
Os povos democráticos não têm a liberdade como objeto principal da vida política, e sim a igualdade.:
“Por outro lado, quando os cidadãos são todos mais ou menos iguais, é difícil para eles defender a sua independência contra as agressões do poder. (...) Como primeiro povo que se submeteu àquela alternativa temível que acabo de descrever, os anglo-americanos foram bastante felizes para escapar ao poder absoluto”.  (Tocqueville: 104).
Os americanos escapam de um destino funesto através da soberania popular que é o poder da sociedade reconhecido nos costumes e leis:
“Na América, o princípio da soberania popular jamais fica escondido ou estéril, como em certas nações; é reconhecido pelos costumes, proclamado nas leis; estende-se com toda liberdade e sem obstáculos atinge as suas últimas consequências. Se existe um único país no mundo onde podemos esperar apreciar em seu justo valor o dogma da soberania popular, estudá-lo na sua aplicação aos negócios da sociedade e julgar as suas vantagens e os seus perigos, esse país é, sem dúvida, a América”. (Tocqueville: 106-107). 
A soberania popular faz pendant com a igualdade entre os cidadãos. Ela não se presta à sociedade aristocrática onde a desigualdade é própria da natureza da política. A soberania popular é a instituição política (“a lei das leis”) de uma sociedade que atualiza a gramática da sociedade democrática na política. A ideia de governante moderno é uma construção da gramática da soberania popular. 
“Estalou a Revolução Americana. O dogma da soberania popular saiu da comuna e apoderou-se do governo; todas as classes comprometeram-se pela sua causa; travaram-se batalhas e alcançaram-se vitórias em seu nome; e ele se transformou em lei das leis”. (Tocqueville: 107).
Na América Latina, a soberania popular não é uma instituição política da gramática da sociedade nacional igualitária. Ela aparece nas Constituições como algo artificial, como artefato produzido por uma imitação dos povos democráticos. Aliás, a soberania popular na Constituição é um poder popular representativo em contradição com uma América Latina habitada por uma sociedade hierárquica.  Ela não é um dado natural da história política do povo latino-americano. Em geral, a elite latino-americana interpreta a soberania popular como um fenômeno que deve servir à personalidade política ou a facção política. Assim, o partido político latino-americano ou é situacionista (serve ao poder político do presidente da república) ou se torna mera ficção política, na oposição. A ideia de partido político, entre nós, nunca foi gramaticalizada.
Hegel traça uma diferença entre o passado da América do Norte e o da América do Sul que chega até o presente:
“Vemos a prosperidade da América do Norte, graças ao desenvolvimento da indústria e da população, à ordem civil e uma firme liberdade; toda a confederação constitui apenas um Estado e tem os seus centros políticos. Ao contrário, na América do Sul as repúblicas repousam somente no poder militar, toda a sua história é uma revolução permanente: Estados confederados separam-se; outros, que estavam separados, unem-se de novo, e todas essas mudanças são operadas por revoluções militares”. (Hegel: 76).
A sociedade democrática americana se apoia na igualdade entre os cidadãos que constrói o <poder civil>. A América Latina não se define pela busca da igualdade política; ao contrário, se define pela desigualdade da distribuição do poder político entre o estrato militar e o povo civil. O estrato militar cria uma república hierárquica (no Brasil e na América espanhola) avessa à liberdade civil.
No campo de poderes das Américas, os Estados Unidos usaram o domínio do poder militar sobre o quase inexistente poder civil, entre nós, em longa duração, para controlar a América do Sul na era do populismo econômico, que foi um esforço da elite latino-americana para retirar certos países do subdesenvolvimento.  
o populismo econômico gerou um campo de poderes/saberes na América Latina, na época da Guerra Fria, em um antagonismo com o campo de poderes do imperialismo americano. A direita militar latina e os Estados Unidos destruíram este campo de poderes populista econômico, que era o motor de uma história econômica de retirada dos países do subdesenvolvimento da periferia do imperialismo americano.
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O lugar do pobre na política é um fato que distingui a América do Norte da América do Sul:
“O novo continente transformara-se num refúgio, num ‘asilo’ e num ponto de encontro dos pobres; aí havia surgido uma nova raça de homens, ‘unidos pelos laços de seda de um governo moderado’, e vivendo em condições de ‘uma agradável uniformidade’, da qual ‘ a pobreza absoluta, pior do que a morte’, havia sido banido (...) Não foi a Revolução Americana e suas preocupações com o estabelecimento de um novo organismo político, de uma nova forma de governo, mas sim a América, o ‘novo continente’, o americano, o ‘novo homem’, ‘a adorável igualdade, no dizer de Jefferson, ‘que os pobres usufruem justamente com os ricos’, que revolucionou o espírito dos homens”. (Arendt: 20).
No século XXI, o lugar do pobre na política da América do Sul mudou de posição social no campo de poderes de nosso continente. O <bolivarianismo> tomou o lugar do populismo latino-americano se constituindo como um campo de poderes antagônico ao campo de poderes norte-americano. Na Bolívia, o indígena pobre se tornou o poder da soberania popular que fabricou um Estado inédito, entre nós, e uma <economia popular progressista>, onde o pobre é protagonista da história econômica. O campo da direita boliviana oligárquico, em aliança com os Estados Unidos, através de um golpe de Estado militar-policial, vem procurando destruir o bolivarianismo indígena, mesmo que isso signifique destruir o país.
As Américas para os norte-americanos é o símbolo político de uma história que, com o neoliberalismo, mergulhou a A. L. em uma espécie de novo subdesenvolvimento capitalista na periferia do capitalismo globalizado cibernético.     

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. V. 1. Belo Horizonte: UFMG, 2002
ARENDT, Hannah. Da revolução. SP/Brasília: Ática/UNB, 1988
COLAS, Dominique. Sociologie politique. Paris: PUF, 1994
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. RJ: Forense Universitária, 2017
HEGEL. Filosofia da história. Brasília: UNB, 1995
LENIN: Cuadernos filosóficos. Madrid: Editorial Ayuso, 1974
POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. SP: Martins Fontes, 1977
SARTORI, Giovanni. A política. Brasília: UNB, 1981
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Petrópolis: VOZES, 1992
TOCQUEVILLE, Alexis de. De la démocratie en Amérique. V. 1. Paris: Gallimard, 1961        
      
        
  
 


 
    
  

      



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