José Paulo
O objetivo é estabelecer a gramática política da América.
Começo pela gramática em si.
Estabelece-se com
clareza a gramática da sociedade como homóloga à Constituição moderna (discurso
legal virtual)? Ao contrário, a gramática de uma formação social em uma
história econômica faz pendant com o estado de exceção soberano:
“E como a linguagem pressupõe o não-linguístico como aquilo
com o qual deve poder manter-se em relação virtual (na forma de uma <langue>, ou mais precisamente, de um jogo
gramatical, ou seja de um discurso cuja denotação atual é mantida
indefinidamente em suspenso), para poder depois denotá-lo no discurso em ato,
assim a lei pressupõe o não-jurídico (por exemplo, a mera violência enquanto
estado de natureza) como aquilo com o qual se mantém em relação potencial no
estado de exceção. A exceção soberana (como zona de indiferença entre natureza
e direito) é a pressuposição da referência jurídica na forma de sua suspensão”.
(Agamben: 28).
A gramática de uma sociedade é o discurso virtual homóloga na
política à exceção soberana.
Foucault diz:
“Atrás do sistema acabado, o que a análise das formações
descobre não é a própria vida em efervescência, a vida ainda não capturada, mas
sim uma espessura imensa de sistematicidades, um conjunto cerrado de relações
múltiplas. Além disso, essas relações, por mais que se esforcem para não serem
a própria trama do texto, não são, por natureza, estranhas ao discurso. Pode-se
mesmo qualifica-las de pré-discursivas’, mas com a condição de que se admita
que esse pré-discursivo pertence, ainda, ao discurso, isto é, que elas não
especificam um pensamento, uma consciência ou um conjunto de representações que
seriam, mais tarde, e de uma forma inteiramente necessária, transcritas em um
discurso, mas que caracterizam certos níveis de discurso, definem regras que
ele <atualiza> enquanto prática singular. Não
procuramos, pois, passar do texto ao pensamento, da conversa ao silêncio, do
exterior ao interior, da dispersão espacial ao puro recolhimento do instante,
da multiplicidade superficial à unidade profunda. Permanecemos na dimensão do
discurso”. (Foucault.2012:90-91).
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Tocqueville escreve:
Já discorri o bastante para colocar sob sua verdadeira luz o
caráter da civilização anglo-americana. Ela é produto (e este ponto de partida
deve estar presente sem cessar no pensamento) de dois elementos perfeitamente
distintos, que aliás muitas vezes se combateram mutuamente, mas que, de certa
forma, os americanos conseguiram incorporar um ao outro e combinar
maravilhosamente. Refiro-me ao <espírito de religião> e ao <espírito de liberdade>”. (Tocqueville: 90).
Citando um outro texto meu:
A América do Norte é a
invenção de uma nova gramaticada política na qual o <legislator>
americano combina, sincreticamente, a política moderna (republicanismo
democrático) com a cultura judaica da antiguidade:
“Nada é mais singular e ao mesmo tempo mais instrutivo que a
legislação daquela época: é nela, principalmente, que se encontra a chave do
grande enigma social que os Estados Unidos apresentam ao mundo em nossos dias.
Entre esses monumentos, distinguiremos particularmente, como
um dos mais caraterísticos, o código de leis que o pequeno Estado de
Connecticut promulgou em 1650. Em primeiro lugar, ocuparam-se os legisladores
de Connecticut das leis penas; e, para redigi-las, concebem a estranha ideia de
se abeberarem nos textos sagrados.
‘Quem quer adorar outro Deus que não seja o Senhor – dizem
eles, para começar, - aquele certamente morrerá’. Seguem-se dez ou doze
disposições da mesma natureza, tomadas de empréstimo, textualmente, ao
Deuterônimo, ao Êxodo e ao Levítico. A blasfêmia, bruxaria, o adultério e o
estupro são castigados com a morte; a ofensa cometida por um filho contra seus
pais é capitulada na mesma pena. Dessa forma, a legislação de um povo rude e
semicivilizado era transportada ao seio de uma sociedade cujo espírito era esclarecido
e brandos os costumes; em consequência, jamais se viu a pena de morte mais
frequentemente prescrita nas leis, nem mais raramente aplicada”. (Tocqueville:82-83).
Há além da Constituição formal americana dos “pais fundadores”
o discurso virtual ou gramática da formação social americana, enfim, da política
americana. Esta se define pela política americana na plurivocidade de campo de
poderes/saberes local ou regional, nacional [e internacional].
O que é <política>?
Na cultura grega da antiguidade, a política tem uma dimensão
ética. O vocabulário político (polis, polites, politikós) não
especificava um domínio político distinto da ética. Na cultura romana, a
política faz pendant com um vocabulário político como civilis societas e
iures societas. Não se trata da sociedade doa sociologia moderna ou da
formação social marxista.
A política grega associada às formas de governo pode ser a
política do democrata (da multidão), do oligarca (dos poucos) e do tirano (do
um).
No vocabulário latino, a res publica ou coisa comum,
coisa da cidade, interesse geral, se contrapõe ao império e à polis e polites.
Na república moderna, trata-se de uma ideia política que designa uma forma de
Estado (oposta à monarquia) de um poder político centralizado e burocrático que
se contrapõe as ideias de politeia, de res publica e de common
weal.
É um truísmo que Maquiavel pensou a política como domínio
separado da ética, da moral e, principalmente, da religião. Pode-se, então,
falar de uma gramática da política, de um fenômeno específico.
Na cultura medieval, a política aparece entrelaçada com a
religião, o poder religioso em luta contra o poder temporal pelo domínio do
mundo político, da sociedade. A Idade Média se caracteriza por uma
plurivocidade de revolução do secularismo. Na política, o vocabulário político
secular inclui o regnum, império não submetido ao poder papal, a
cidade-Estado, as repúblicas da Idade Média tardia, uma certa Igreja secular,
Igreja-Estado.
Uma ideia verdadeiramente distinta sobre política se encontra
em Hobbes. Ele define a política como o poder de inventar palavras, de
defini-las, de impô-las aos súditos. (Sartori:163). Esta ideia maravilhosa da
política faz do político o governante da linguagem, o gramático da língua
política. Trata-se da ideia de Gramsci do político como intelectual condensado
ao mesmo tempo homem político prático e inventor da linguagem política na
história de uma formação social.
Pode-se medir, com régua e compasso, a elite política por seu
poder de inventas, criar e recriar, a linguagem política.
Não é obra do acaso a América ter criado, na sociedade, uma
linguagem da política latino-americana da atualidade: linguagem neoliberal. No
entanto uma prática política latino-americana produziu uma linguagem que se
contrapõe ao neoliberalismo. Trata-se da linguagem do bolivarianismo.
O choque antagônico entre o campo da direita neoliberal e o
campo da esquerda bolivariana está levando à destruição da plurivocidade do
campo de poderes/saberes na A. L. Com efeito, ambos os campos em tela evitam
falar no subdesenvolvimento de hoje como motor da política da A. L.
Aliás, a cultura anglo-americana tem um vocabulário
específico para designar <política>. Politics é a
luta pelo acesso ao poder político, a conquista do governo em um Estado
nacional. Policy é o desenvolvimento das medidas adotadas pelo
governante, os diferentes níveis da administração, mas também todo agir
definido por ser vantajoso ou útil. (Colas:12-13). Em resumo, política é a
política do governante representativo.
A política pode ser a combinação de dominação (coerção) e
hegemonia ou articulação política através de ideias e do domínio do político
pela invenção e reinvenção da língua política nacional, em um campo de
poderes/saberes, que articula o local, o nacional com o internacional.
Um exemplo de governante ou gramático da língua política é
Carl Schmitt. Ele definiu a ideia de política que uma força prática (fascismo)
usou para tentar dominar a política mundial, sendo derrotada na guerra.
A ideia é a seguinte:
“Uma determinação conceitual do político só pode ser obtida
mediante a descoberta e identificação das categorias especificamente políticas.
É que o político tem seus critérios próprios, que de maneira peculiar se tornam
eficazes diante dos domínios diversos e relativamente independentes do
pensamento e do agir humano, especialmente o moral, o estético e o econômico. O
político precisa, pois situar-se em algumas distinções últimas, às quais pode
reportar-se toda ação especificamente política. Admitamos que as distinções
últimas no âmbito moral sejam bom e mau; no estético, belo e feio; no
econômico, útil e prejudicial ou, por exemplo, rentável e não rentável. A
questão, então, é se também existe uma distinção peculiar não semelhante ou
analógica às demais, porém independente delas, autossuficiente, e como tal
evidente, como critério simples do político, e em que ela consiste.
A distinção especificamente política a que podem reportar-se
as ações e os motivos políticos é a discriminação entre <amigo> e <inimigo>. (Schmitt:51).
A ideia schmittiana da política está sendo usada pelo campo
da direita latino-americana aliada aos Estados Unidos na terceira década do
século XXI para destruir a política como plurivocidade de campo de
poderes/saberes.
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A política americana é uma invenção hobbesiana de uma língua
política de articulação da hegemonia (junção elite e povo) na história
capitalista da modernidade?
Tocqueville diz que a América funda a gramática da sociedade
democrática. Precisamos descobrir quem é o gramático que inventa a gramática da
sociedade?
Trata-se de um gramático sociológico?
Tocqueville escreve:
“O estado social é, de ordinário, resultado de um fato, às
vezes das leis, as mais das vezes da reunião dessas duas causas; uma vez,
porém, que ela existe, podemos considerá-la em si mesma a causa primeira da
maior parte das leis, dos costumes e das ideias que regem a conduta das nações;
aquilo que não produz, ela o modifica. Para conhecer a legislação e os costumes
de um povo, convém começar, por isso mesmo, estudando o estado social”.
(Tocqueville: 94).
Marx desenvolveu todo um vocabulário a partir da ideia que a
sociedade civil é o palco da história. Tocqueville e Marx parece terem criado a
ideia de sociologia, como ensina os mestres da sociologia universitária.
Em Tocqueville e Marx, a política é uma expressão da
sociedade. Em Tocqueville, ela é a expressão do grande proprietário privado de
terra americano. Em Marx, a política em sua forma acabada é expressão da
sociedade industrial. Trata-se da diferença na origem entre política americana
e política europeia.
Poulantzas define política assim: “A prática política é o
‘motor da história’ na medida em que o seu produto constitui afinal a
transformação da unidade de uma formação social, nos seus diversos estágios e
fases. Isto porém, não em um sentido historicista: a prática política é quem
transforma a unidade, na medida em que o seu objeto constitui o ponto nodal de
condensação das contradições entre os diversos níveis, com historicidades
próprias e desenvolvimento desigual”. (Poulantzas.1977: 39-40).
A prática política é o gramático ou governante da sociedade
industrial. O gramático da política só existe se uma <força prática> (Lenin: 29) fizer pendant com uma
teoria concreta da sociedade de classes moderna: marxismo. Assim, política é
idêntica à revolução social.
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Na origem da América moderna, a gramática da sociedade
democrática é maior que as forças pessoal e/ou grupal. Trata-se de um fato
ininteligível para os latinos americanos, pois, neste continente, a sociedade
faz pendant com a força pessoal e/ou grupal. Temos uma espécie de <filosofia do sujeito> como motor da história latino-americana.
“Ao contrário, o tempo, os acontecimentos e as leis tornaram o
elemento democrático não apenas preponderante, mas, também, único. Não se deixa
perceber nele nenhuma influência de família nem de grupo; em geral, com efeito,
não seria possível perceber nele nenhuma influência de família ou de grupo;
muitas vezes, com efeito, não seria possível descobrir nele influências
individuais ainda que pouco duráveis”. (Tocqueville: 103).
A política democrática é aquela da igualdade:” Ora, não
conheço mais que duas maneiras de fazer reinar a igualdade no mundo político: é
preciso que se deem direitos a cada cidadão, ou que não sejam dados a ninguém”.
(Tocqueville: 104).
Os povos democráticos não têm a liberdade como objeto
principal da vida política, e sim a igualdade.:
“Por outro lado, quando os cidadãos são todos mais ou menos
iguais, é difícil para eles defender a sua independência contra as agressões do
poder. (...) Como primeiro povo que se submeteu àquela alternativa temível que
acabo de descrever, os anglo-americanos foram bastante felizes para escapar ao
poder absoluto”. (Tocqueville: 104).
Os americanos escapam de um destino funesto através da
soberania popular que é o poder da sociedade reconhecido nos costumes e leis:
“Na América, o princípio da soberania popular jamais fica
escondido ou estéril, como em certas nações; é reconhecido pelos costumes,
proclamado nas leis; estende-se com toda liberdade e sem obstáculos atinge as
suas últimas consequências. Se existe um único país no mundo onde podemos
esperar apreciar em seu justo valor o dogma da soberania popular, estudá-lo na
sua aplicação aos negócios da sociedade e julgar as suas vantagens e os seus
perigos, esse país é, sem dúvida, a América”. (Tocqueville: 106-107).
A soberania popular faz pendant com a igualdade entre os
cidadãos. Ela não se presta à sociedade aristocrática onde a desigualdade é
própria da natureza da política. A soberania popular é a instituição política (“a
lei das leis”) de uma sociedade que atualiza a gramática da sociedade
democrática na política. A ideia de governante moderno é uma construção da
gramática da soberania popular.
“Estalou a Revolução Americana. O dogma da soberania popular
saiu da comuna e apoderou-se do governo; todas as classes comprometeram-se pela
sua causa; travaram-se batalhas e alcançaram-se vitórias em seu nome; e ele se
transformou em lei das leis”. (Tocqueville: 107).
Na América Latina, a soberania popular não é uma instituição
política da gramática da sociedade nacional igualitária. Ela aparece nas
Constituições como algo artificial, como artefato produzido por uma imitação
dos povos democráticos. Aliás, a soberania popular na Constituição é um poder
popular representativo em contradição com uma América Latina habitada por uma
sociedade hierárquica. Ela não é um dado
natural da história política do povo latino-americano. Em geral, a elite
latino-americana interpreta a soberania popular como um fenômeno que deve
servir à personalidade política ou a facção política. Assim, o partido político
latino-americano ou é situacionista (serve ao poder político do presidente da
república) ou se torna mera ficção política, na oposição. A ideia de partido
político, entre nós, nunca foi gramaticalizada.
Hegel traça uma diferença entre o passado da América do Norte
e o da América do Sul que chega até o presente:
“Vemos a prosperidade da América do Norte, graças ao
desenvolvimento da indústria e da população, à ordem civil e uma firme
liberdade; toda a confederação constitui apenas um Estado e tem os seus centros
políticos. Ao contrário, na América do Sul as repúblicas repousam somente no
poder militar, toda a sua história é uma revolução permanente: Estados
confederados separam-se; outros, que estavam separados, unem-se de novo, e
todas essas mudanças são operadas por revoluções militares”. (Hegel: 76).
A sociedade democrática americana se apoia na igualdade entre
os cidadãos que constrói o <poder civil>. A América Latina não se define pela
busca da igualdade política; ao contrário, se define pela desigualdade da
distribuição do poder político entre o estrato militar e o povo civil. O
estrato militar cria uma república hierárquica (no Brasil e na América
espanhola) avessa à liberdade civil.
No
campo de poderes das Américas, os Estados Unidos usaram o domínio do poder
militar sobre o quase inexistente poder civil, entre nós, em longa duração,
para controlar a América do Sul na era do populismo econômico, que foi um
esforço da elite latino-americana para retirar certos países do
subdesenvolvimento.
o
populismo econômico gerou um campo de poderes/saberes na América Latina, na
época da Guerra Fria, em um antagonismo com o campo de poderes do imperialismo
americano. A direita militar latina e os Estados Unidos destruíram este campo de
poderes populista econômico, que era o motor de uma história econômica de
retirada dos países do subdesenvolvimento da periferia do imperialismo
americano.
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O
lugar do pobre na política é um fato que distingui a América do Norte da
América do Sul:
“O
novo continente transformara-se num refúgio, num ‘asilo’ e num ponto de
encontro dos pobres; aí havia surgido uma nova raça de homens, ‘unidos pelos
laços de seda de um governo moderado’, e vivendo em condições de ‘uma agradável
uniformidade’, da qual ‘ a pobreza absoluta, pior do que a morte’, havia sido
banido (...) Não foi a Revolução Americana e suas preocupações com o
estabelecimento de um novo organismo político, de uma nova forma de governo,
mas sim a América, o ‘novo continente’, o americano, o ‘novo homem’, ‘a adorável
igualdade, no dizer de Jefferson, ‘que os pobres usufruem justamente com
os ricos’, que revolucionou o espírito dos homens”. (Arendt: 20).
No
século XXI, o lugar do pobre na política da América do Sul mudou de posição social
no campo de poderes de nosso continente. O <bolivarianismo> tomou o lugar
do populismo latino-americano se constituindo como um campo de poderes
antagônico ao campo de poderes norte-americano. Na Bolívia, o indígena pobre se
tornou o poder da soberania popular que fabricou um Estado inédito, entre nós,
e uma <economia popular progressista>, onde o pobre é protagonista da
história econômica. O campo da direita boliviana oligárquico, em aliança com os
Estados Unidos, através de um golpe de Estado militar-policial, vem procurando
destruir o bolivarianismo indígena, mesmo que isso signifique destruir o país.
As
Américas para os norte-americanos é o símbolo político de uma história que, com
o neoliberalismo, mergulhou a A. L. em uma espécie de novo subdesenvolvimento
capitalista na periferia do capitalismo globalizado cibernético.
AGAMBEN,
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ARENDT,
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Carl. O conceito do político. Petrópolis: VOZES, 1992
TOCQUEVILLE,
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