sexta-feira, 14 de setembro de 2018

O ANÃO FASCISTA


josé paulo

FICÇÃO TRANSLITERÁRIA

                                                            I
Nascido em uma família de 9 filhos, o terceiro filho foi predestinado a ser pequeno. Durante a infância foi maltratado pelos outros irmãos; a vida triste era compensada pelo amor da única irmã; sua inteligência extraordinária e capacidade de concentração nos estudos logo atraíram o afeto das professoras no colégio São Gerônimo. Ah! Tinha seu primo mais velho Hamilton B. (um herói da garotada da vila) que lhe apreciava aquele modo infantil adulto de ser expressar.

Um momento glorioso (como gostam de falar as bichas do primo W. B.) foi a ida de sua família para o Rio. Na cidade maravilha, estudou em grandes colégios onde encantava com sua cultura natural e oratória inata (herdada da família de latifundiários) os cariocas, da classe média, pouco acostumados com esta virtú sertaneja. Vivia sempre rodeado por meninos e meninas que o seguiam cegamente.

Obtendo a informação que a televisão recrutava seus jornalistas na escola de jornalismo da UNB, o já pequeno homem se mudou sozinho para Brasília. Na escola, ficou amigo de um professor fascista que ensinava a profissão de jornalismo como “triunfo da vontade”. Este professor dizia que o jornalismo era a arma de uma revolução cultural fascista que antecipava a vinda de um grande líder político na América-Latina em uma onda de ascensão europeia do fascismo mundial.

O nosso pequeno homem fascista se notabilizou fazendo grandes reportagens televisivas enquanto esperava o condottiere anunciado. Para seu dissabor, o chefe político aparece na pele de um capitão do exército, analfabeto em cultura política alemã, com hordas de seguidores neófitos nas redes digitais.

Não ficou surpreso quando um capo da TV o chamou para ser o âncora do jornal da manhã. O jornal daria o tom mais político para a campanha da extrema-direita nas eleições.  

                                                                                    II

No auge da campanha o anão foi convocado para dirigir o comitê central secreto das eleições do capitão. Mas a coisa complicou um pouco, pois, um general estrategista da ESG se tornara o vice de nosso líder.

Na primeira reunião do comitê das eleições, o anão teve que engolir um sapo barbudo, pois, durante quatro horas o general deu aulas de cultura brasileiras, aulas aprendidas na ESG com o marxista Severino Bezerra.

O general destilou e desenvolveu meia-dúzia de platitudes tiradas grosseiramente dos grandes livros de sociologia brasileira. Ele diz: o português é um hiperexcitado, um vetor demográfico de povoamento sexual usando à vontade os corpos das adolescentes indígenas; portador de uma atividade genésica acima do comum; o índio, um lânguido, um irracional, com suas mulheres livres e superexcitadas; o negro, um malandro, um macunaíma.

Al término da conferência, o anão interroga o general perguntando o que todo aquele blábláblá tinha a ver com a eleição do capitão. O general irritou-se e respondeu entre os dentes, grunhindo, quase rosnando, que ele era o estrategista. O conflito se estabeleceu na sala do comando. Pelos corredores o general passou a berrar que o anão não estava preparado intelectualmente para ser o chefe intelectual e organizador do comitê central.

No edifício do Leblon onde o anão morava, ele, chefe intelectual, era tratado como uma divindade; à beira da piscina moradores se agrupavam em torno do anão para ouvi-lo falar das estórias de vida do capitão; as moradoras mais antigas traziam salgadinhos, doces e sucos para ele; o anão também contava os causos retirados de suas reportagens ao longo de 50 anos; contrariando as normas do prédio, os porteiros abandonavam a portaria atraídos pela luz mais escura da fala do anão. Uma moradora amiga de Sérgio Cabral gostava de acompanhar as estórias com vibrantes gargalhadas emnquanto balançava dois livros, um em cada braço.

O dia do anão era intenso. Ele tinha que definir de um modo claro e popularesco o que ia ser veiculado ao longo  da programação jornalística. Como parte da campanha do capitão, ele tinha que falar de privatizações, e propor privatizações; o incêndio do Museu Nacional foi um manjar que caiu do céu; o anão usou os próprios professores para começar uma campanha contra o sistema universitário estatal federal; quando os professores da UFRJ se negaram a aparecer na televisão, o anão deu uma ordem para seus repórteres-sicários da imagem do outro convocar professores da UFF. Vendo a oportunidade rara para aparecer na TV, os professores da UFF pouco se preocupavam com a tática do anão de destruição da universidade estatal; mas a médica estrela da UFRJ Lígia Baia entendeu finalmente que a UFRJ sempre fora a inimiga figadal da televisão fluminense.

Na emissora havia um grupo de escol que montava as táticas jornalísticas com o anão. Destacavam-se as graciosas namoradas lésbicas, a bruja ruiva das 18:00 e o gay com pressão alta. Com este grupo seleto, a televisão se tornava pura brujaria e encantamento do receptor. A brujaria misturava uma programação de minorias com jovens garotos e garotas negros da periferia com os comentários melífluos do jornalista italiano Camaro sobre o capitão. Este C. lançou a ideia de que a facada no capitão se tornara uma comoção nacional.

O fascismo cresce com o ataque às minorias. O anão conhecia a ideia de Freud do “narcisismo das pequenas diferenças”; ele aplicava Freud no jornalismo. A pequena diferença  narcísica entre o capitão e Bispo foi o motivo da facada dada em uma manifestação épica em Juiz de Fora; filmou-se o capitão se contorcendo de dor, mas não havia sangue na faca ou na cena  do crime; no Facebook, os petistas diziam que era uma farsa grosseira; depois,  os  filhos do  capitão publicaram uma foto com a bolsa de excrementos na parte exterior do corpo do herói; o filho mais marcial do capitão disse a frase que correu o mundo: “meu pai agora é o  futuro presidente do Brasil”.

De quem é a mão que carrega o punhal?         

No interrogatório da polícia, o Bispo se apresenta como uma pessoa educada, sem um pingo de agressividade, de modos delicados, e com um equilíbrio emocional superior ao dos meros mortais. Fala de uma missão recebida de Deus, revela-se um milenarista como aqueles sertanejos dos filmes de Glauber Rocha. Ele diz que representa os ofendidos, maltratados, espezinhados pelo capitão; ele trazia uma mensagem...

O Bispo não é o Nafta do romance "A Montanha Mágica. Ele não é um niilista querendo destruir o mundo. O nosso Nafta é o anão fascista...     

terça-feira, 4 de setembro de 2018

MARX, KANT, MUSEU NACIONAL, BOLSONARO

José Paulo

a)      A destruição do Museu Nacional na cidade do Rio de Janeiro foi um ato criminoso? Fato e narrativa ideológica em Marx e Kant.
b)     
A Okhrana é a forma de consciência, no real, do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo?

“Em uma etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações se transformam em grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transtorna com maior ou menor rapidez.  Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim”. (Marx. 1974: 136).
As forças produtivas são facticidade econômica do real da história universal. Elas podem ser objeto da ciência natural. As forças produtivas não aparecem como o motor narrativo das lutas. Se elas entram em contradição com a gramáticas das relações sociais de produção (ou melhor, com as relações de propriedade que são as expressões jurídicas das relações de produção) pode advir uma era de grandes conflitos. Contudo, estes conflitos são vividos como lutas pelos homens, mulheres e crianças através das narrativas ideológicas, ou formas de consciências ideológicas: jurídica, política, religiosa, estética, filosófica, comunicacional, digital.  

Kant diz:
“1. Fac et excusa. Apodera-te da ocasião favorável para te apossares de teu próprio poder (quer se trate de um direito de Estado sobre o povo, quer se refira  a um outro, vizinho). A justificação será exposta com muito mais facilidade e elegância depois do fato, e se pode dissimular a violência suprema, principalmente no primeiro caso (quando o poder supremo no interior decorre imediatamente também da autoridade legislativa, a que se deve obedecer sem fazer raciocínios sutis a respeito dela), do que quando anteriormente se tem de refletir em procurar motivos convincentes, e além do mais esperar ainda as objeções. Esta próprio ousadia dá uma certa aparência de convicção interior à legitimidade do fato, e o deus bônus eventos é em seguida o melhor advogado”. (Kant: 140).

Na política da tomada do poder, a narrativa justificadora do ato violento vem depois do fato. Tal narrativa é aquela necessária à conservação do poder. Trata-se, portanto, de uma gramática narrativa da aparência de semblância capaz de legitimar o fato, na subjetividade do condottiere.

Depois do fato advém a narrativa ideológica da política, que nasce fática. A política é uma das formas de consciência de um mundo de plurivocidade ideológica que advém depois da facticidade das coisas.
Os mass media do Rio de Janeiro estão prontos para fazer a narrativa justificadora da tomada do poder nacional por Bolsonaro depois deste fato violento, em termos simbólicos.
                                                                                  II


O Museu Nacional situado na cidade do Rio de Janeiro ardeu em chamas. Museu criado por D. João VI no início do século XIX, hoje ocupava o palácio histórico da Quinta da Boa Vista.  Tratava-se do mais importante museu de história natural, símbolo do Império de d. Pedro I e d. Pedro II. A destruição do museu foi um golpe de força na ciência brasileira e também um golpe de força preciso na espinha dorsal do sistema universitário estatal.

O museu estava sob os cuidados da UFRJ. Ele convivia com centros de pesquisas científico em arqueologia (e outras ciências como museologia) e antropologia (e cursos de graduação e mestrado, doutorado e pós-doutorado). A antropologia do Museu Nacional sempre esteve na vanguarda da antropologia latino-americana. Alguns antropólogos do Museu Nacional se notabilizaram pela criação de um pensamento científico e crítico que embalou as lutas narrativas contra o Estado militar fascista 1968.

Parece que toda essa história ardeu em chamas criminosas?

Trata-se de um crime de lesa-pátria dos governos neoliberais contra a ciência brasileira? sem dúvida! Uma política de estrangulamento da ciência do Estado vem sendo colocada em prática nos governos neoliberais de Dilma Rousseff e Michel Temer. Dilma começou a instalação do Estado neoliberal e neocolonial, entre nós.

A lógica do Estado neocolonial do terceiro-mundo saiu do ovo da serpente bolivariana com a ideia prática de Rousseff de importar milhares de médicos cubanos para o Brasil. A máquina de guerra Rousseff se tornou um suporte governamental do movimento inercial da gramática do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo.

O governo Temer e seu Congresso desenvolveram, exponencialmente, as práticas da gramática neocolonial do terceiro-mundo.  

A narrativa de defesa da ciência brasileira não faz parte da lógica dos mass media, da imprensa de papel, do Congresso e do Judiciário. A “cultura do bacharelismo” do século XIX ainda é a realidade dominante na vida brasileira, em geral. Tudo levava a crer que o direito como técnica, como arte do social significava uma ruptura com o bacharelismo. Não obstante, com o museu em chamas fala-se de perda cultural e não em destruição da ciência brasileira.

Com o capitalismo neocolonial mundial o lugar da ciência deixa de ser geopolítico e torna-se geoeconômico. A ciência é agora uma mercadoria a ser exportada pelo capitalismo neocolonial europeu, capitalismo neocolonial americano, capitalismo asiático (China, Coréia do Sul, Índia). O

Brasil parece caminhar para um país importador de ciência (mercadorias científicas).

O modelo chinês e indiano é o do Estado neocolonial científico: Estado industrial cientista.

O Estado cientista surge de uma penetração da ciência na vida das sociedades; ao mesmo tempo, paulatinamente, por razões que decorrem simultaneamente das exigências da produtividade e das necessidades militares, a organização das ciências e das técnicas que se ligam ao campo das ciências que tem como objeto a matéria  inanimada e a vida; nesta situação supracitada, surgem instituições sem precedentes, no seio das quais poder e saber estabelecem relações originais; surge uma nova ideologia científica que é parte da gramática Estado industrial cientista. (Chatêlet: 449)

O biopoder faz a gramática em tela se desenvolver fazendo pendant com a gramática do Estado providência na qual tudo é político a partir do conceito de segurança social generalizada e responsabilidade pública. (Ewald: 342-345).

A Constituição 1988 brasileira contém um Estado social na forma de um direito constitucional como técnica. Então nela , o direito é uma técnica, uma arte. Trata-se do direito não subordinado à uma hipótese filosófica ou a uma doutrina particular. Ele não tem essência ou substancia em direito; ele destrói toda essência jurídica; ele é um dispositivo de responsabilidade jurídica com a sociedade fazendo pendant com o biopoder. Mesmo sendo o direito uma técnica, isto não significa que existe interdito para ele produzir efeitos no real.  

A gramática do capitalismo neocolonial desarticula o direito como técnica, como arte da responsabilidade social. O direito neocolonial torna-se uma ideologia jurídica da gramática do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo, na América Latina, por exemplo.

No Brasil, a gramática do direito neocolonial se desenvolve em um antagonismo fatal com a gramática do direito social e, também, com a gramática do Estado industrial cientista. Trata-se de uma reorganização do lugar da ciência no capitalismo mundial.

No século XXI, o Estado cientista entra no circuito da acumulação ampliada mundial do capital neocolonial. Ele se torna um território geoeconômico capitalista. As mercadorias científicas serão objeto de troca entre países neocoloniais. Assim como a indústria do capitalismo dependente e associado perece (na América Latina), o Estado cientista entra em uma época de oclusão.

A diferença entre o capitalismo neocolonial asiático e o capitalismo neocolonial do terceiro-mundo (Brasil, África do Sul) é um segredo banal. A gramática do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo se define pela falta de ciência nacional, pela destruição necessária do Estado cientista. Ela prepara o terreno para a importação de ciência-mercadoria dos países desenvolvidos e dos países do capitalismo neocolonial asiático.
                                                                                 III

O capitalismo neocolonial é a colonização do imaginário político e de uma subjetivação digital dos povos. Ele contempla bilhões de internautas com suas máquinas digitais. O espaço digital é transliterário: a escrita dele é um deslocamento da escrita pessoal ou grupal para o território digital.

Nesta transliteratura, há a colonização do indivíduo e grupos pelo trans-sujeito digital homo digitalis. Novas formas de consciência brotam no exercício, inconsciente, da gramatologia digital. Uma consciência capitalista neocolonial unifica o inconsciente digital, sem se apresentar como tal na tela gramatical digital. Nunca a paixão pelo capitalismo invadiu, avassaladoramente,  a vida de bilhões de pessoas.

No Brasil, a forma de consciência capitalista neocolonial do terceiro-mundo tem um suporte que denominamos Okhrana. Trata-se do campo das polícias secretas como argamassa informacional do bloco de facções políticas (Centrão, por exemplo) e da facção dos mass media carioca, que está no comando subjetivo das redes de televisão, rádio e grande imprensa do Sudeste.

A forma de consciência neocolonial Okhrana tem seu próprio candidato na corrida presidencial: capitão de artilharia Bolsonaro.  Jornas das redes digitais estão falando de um encontro de Bolsonaro com a família Roberto Marinho. O futuro ministro da economia de Bolsonaro (Paulo Guedes) é o veículo de aproximação do Grupo Globo com Bolsonaro. Este é um candidato fascista tupiniquim que prega abertamente o fim do regime constitucional 1988. Na própria TV Globo falou de um Estado ersatz do Estado militar 1964.

Bolsonaro é um efeito da gramática de comunicação que nasce nas redes sociais digitais e depois, em sua guerra de manobra, toma de assalto o campo dos mass media. A gramática bolsonaro carrega consigo a consciência capitalista neocolonial do terceiro-mundo. Ela significa o aprofundamento do Estado neocolonial do terceiro-mundo.

Bolsonaro é um efeito da Okhrana como o real da política brasileira.

Zizek nos ajuda a gramaticalizar o fenômeno Bolsonaro-Okhrana:
“Le réseua dispersé, encore non structuré des éléments, s’articule en structure ‘rationelle’ à travers l’irruption  d’une élément foncièrement ‘irrationelle’ qui est dans sa fonction le S1, le signifiant-maître, sans signifié, et dans sa donnée matérielle l’imbécilité purê du réel, un déchet contigent – le monarque hégélien, par exemple, ce petit bout du réel tout à fait arbitraire, déterminé par la logique totalement non-rationnelle de l’hérédité, qui, néanmoins, ‘est’ dans sa présence-même l’effectivité, l’actualisation de l’Etat em tant que totalité rationnelle, c’est-à-dire, dans lequel l”Etat atteint son être-lá”. (Zizek: 42-43).  

O Estado neocolonial do terceiro-mundo nasce como um Estado integral digital, uma totalidade racional a partir de um significante irracional, pois, vindo do real. Trata-se do Estado que é um conjunto formado pela sociedade civil/política, pelos poderes do campo de poderes que vai dos poderes privados e estatais (governo federal, Congresso, judiciário) até os poderes digital e dos mass media.

A Okhrana é o poder da parte invisível (o significante-mestre do real) da tela gramatical da política brasileira condensada como relações internacionais.

O processo eleitoral encontra-se perturbado pela vontade de Lula de concorrer à presidência da República. Aí, instala-se a contradição entre o poder policial do juiz e a política eleitoral do PT, de tomada irracional do governo nacional.

Lula arrisca todas as suas cartas na manga numa mudança do equilíbrio de poder no judiciário. Ele crê que esta mudança advirá com a certeza absoluta de que Bolsonaro é um tsunami eleitoral que varrerá para o desterro as forças políticas de oposição ao capitalismo neocolonial do terceiro-mundo.
O que fazer?

CHÂTELET & PISIER-KOUCHNER, François e Évelyne. As concepções políticas do século  XX. História do pensamento político. RJ: Zahar Editores, 1983
EWALD, François. L’Etat providence. Paris: Grasset, 1986
KANT.  Textos Seletos. Petrópolis:  Vozes, 1985
MARX. Pensadores. SP: Abril Cultural, 1974
ZIZEK, Slavoj. Le plus sublime des hysteriques. Hegel passe. Paris: Point Hors Ligne, 1988
  
    

    

            


domingo, 2 de setembro de 2018

O GRAMÁTICO CIBERESPAÇO



José Paulo



A dupla virtual e atual introduz algo novo para a investigação das gramáticas da comunicação do capitalismo?

Os mass media eletrônicos se constituem como gramática da forma de consciência burguesa comunicacional. Eles continuam funcionando no espaço moderno da representação.  A técnica digital teria abandonado este espaço da representação moderna?

Gerando uma torsão em uma tese de um filósofo: a forma de consciência burguesa remete para a insistência do virtual no atual como dinamismo espaço-temporal destinado a nos permitir apreender o mundo como acontecimento, e a perceber a experiência real em todas as suas particularidades ou heterogênese. (Alliez:23). A técnica digital cria um espaço em ruptura com a forma de consciência burguesa comunicacional? 

A filosofia vem antes do domínio territorial da subjetividade pela técnica. A filosofia do virtual de Deleuze antecipa o domínio da técnica virtual (técnica digital industrial)?

Caro leitor, perca um tempinho refletindo na:
Proposição 1: A filosofia deve constituir-se como teoria do que fazemos, não como a teoria do que é, pois o pensamento só diz o que é ao dizer o que faz; re-construir a imanência substituindo as unidades abstratas por multiplicidades concretas, o É de unificação pelo E enquanto processo ou devir (uma multiplicidade para cada coisa, um mundo de fragmentos não-totalizáveis comunicando-se através de relações exteriores). (Alliez: 19).  

O que significa pensar uma gramática da comunicação de fragmentos não-totalizáveis? Ela existe em qual realidade material? Em qual realidade de subjetivação? O que significa a subjetivação da gramática teledigital?

Da monumental obra de Christian Godin retiro duas ideias:
Partons donc du constatable. Nous disposons, pour reprendre le titre d’un ouvrage de N. Goodman, de plusiers moyens pour construire un monde. Il existe le monde de nos perceptivos, et celui de nos images, le monde de nos mots, et celui de nos concepts. L’appellation de mondes pour désigner ces ensembles de réprésentations n’est pas simplement métaphorique: d’une part ces ensembles constituent bien des systèmes (les mots dans un langage ou un roman, les concepts dans une théorie, etc.), d’autre part ils renvoient au monde ˂réel> comme à un référent ultime”. (Godin: 11).

Na gramática da comunicação de fragmentos não totalizáveis, o fenômeno político é um mundo de práticas e representações metafóricas e ˂reais>. A gramática pode ser percebida como um mundo através da percepção, de imagens, de palavras da língua usual ou artificial, de conceitos e de significantes lacanianos. A gramática constitui um sistema (os termos e expressões da língua política, heróis da narrativa romanceada do mundo-da-vida, os conceitos de uma teoria), de uma parte; de outro lado, ela reenvia ao mundo ˂real>: referente último.

Godin diz:
Nous appelons imaginaire tout ce qui est relatif à une représentation sensible, symbolique ce qui a trait à une représentation conceptuelle. Les symboles, donc, en ce sens, font partie de l’imaginaire, et non du symbolique. L’ordre d’ensemble adopté pour cette Section est celui de la phénoménologie hégélienne: de la conscience sensible au savoir absolu, des représentations immédiates de la notion de totalité comme perception ou vécu jusqu’au concept de la totalité consciente de soi dans les théories holistes”. (Godin: 12).

A gramática hegeliana vai da consciência sensível ao saber absoluto, das representações imediatas da noção de totalidade, como percepção ou experiência vivida, até o conceito de totalidade consciente de si na fenomenologia dialética. A representação encontra-se no centro tático da fenomenologia hegeliana.

A representação remete para a forma de consciência real da história universal, em Marx:
“Em uma etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações se transformam em grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transtorna com maior ou menor rapidez.  Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim”. (Marx. 1974: 136).  

Uma leitura do conceito de representação da década de 1960 nos leva até o livro “Les mots et les choses”. Porém, o texto de Marx fala da contradição que se desenvolve entre gramáticas da sociedade na história universal em um período no qual a gramática econômica entra em um antagonismo agônico com a gramática da propriedade, como representação sensível e conceitual, que articula as relações sociais de produção. A representação da economia é uma das chaves do pensamento de Marx, pois, a gramática das formas ideológicas (formas de consciência) também fazem a economia funcionar na acumulação ampliada mundial do capital.

A relação de Marx com as ciências humanas é irrevogável. Foucault diz que a representação muda de estrutura na episteme do século XIX. A autonomia da lógica em relação à gramática tout court significa que a gramática passa para outro patamar, com as condições de possibilidade de uma lógica não verbal e a de uma gramática histórica. (389). Trata-se do funcionamento da representação destacada da vida, aguda e sensível presença daquilo que elas representam. (343). Aí faz presença a gramática histórica:
“La seconde compensation au nivellement du langage, c’est la valeur critique qu’on a prêtée à son étude. Devenu réalité  historique épaisse et consistante, le langage forme le lieu des traditions, de habitudes muettes de la pensée, de l’esprit obscur des peuples; il acumule une mémoire fatale qui ne se connaît même pas comme mémoire”. (Foucault. 1966: 310). Y 5t       

A literatura é um campo de saber que faz pendant com a gramática histórica da representação destacada das coisas:
La littérature, c’est la contestation de la philologie (dont elle est pourtant la figure jumelle): elle ramène le langage de la grammaire au pouvoir dénudé de parler, et là elle rencontre l’être sauvage et impérieux des mots”. (Foucault. 1966: 313).

A ciência do homem pode ser imaginada como a gramática da representação das necessidades e da sociedade a partir das quais se pode obter uma representação da própria economia, distinta da gramática da economia do burguês:
“l’économie n’est pas pour cela une science humane. On dira peut-être qu’elle a recours  pour définir des lois qui sont pourtant intérieures aux mécanismes de la production  (comme l’accumulation du capital ou les rapports entre le taux des salaires et les prix de revient) à des comportements humains, et une représentation qui le fondent (l’intérêt, la recherche du profit maximum, la tendence à l’épargne); mais ce faisant, elle utilize les représentations comme réquisit d’un fonctionnement (qui passe, en  effet, par une activité humaine explicite); en revanche il n’y aura science de l’homme  que si on s’adresse à la manière  dont les individus ou les groupes se représentent leurs partenaires, dans la production et dans l’èchange, le mode sur lequel ils èclairent ou ignorent ou masquent ce fonctionnemment et la position qu’ils y occupent, la façon dont ils se représentent la société où il a lieu, la manière dont ils se sentent  intégrés à elle ou isolés, dépendants, soumis ou libres; l’objet des sciences humaines n’est pas cet homme qui depuis l’aurore du monde, ou le premier cri de son âge d’or est voué au travail; c’est cet être qui, de l’intérieur des formes de la production par lesquelles tout son existence est commandée, forme la représentation de ces besoins, de la société par laquelle, avec laquelle ou contre laquelle il les satisfait, si bien qu’à partir de là peut finalement se donner la représentation de l’économie elle-même”. (Foucault. 1966: 363-364).   

A gramática da representação da política põe e repõe o problema da articulação entre governante e governado, representante e representado como criação da soberania popular. A forma de consciência ideológica é o princípio de uma articulação entre classes sociais e representação; entre classes e governo. Para isto é preciso admitir a existência  da gramática da forma de consciência burguesa.

Na segunda metade do século XX, surge a forma de consciência burguesa comunicacional no lugar da forma de consciência burguesa social. A representação passa a funcionar no domínio da técnica visual eletrônica; ela se torna irreconhecível para o marxismo tout court; com o marxismo brasileiro gramatical, a representação da comunicação eletrônica volta a ser um fenômeno visível na tela gramatical da comunicação.

Finalmente no século XXI, a representação passa a funcionar no domínio da técnica digital? Eis o nosso problema estratégico.

A técnica digital abre um campo de saber virtual para além da representação? Deleuze diz que sim:
“Quando a potência de pensar se define pelos afectos que é capaz de produzir para individuar a vida que a compreende e ‘explicar’ o desejo de que é inseparável como potencial e acontecimento”. (Alliez: 27).

A técnica digital faz surgir uma filosofia  materialista virtual que dispensa a representação? Trata-se de um passo dado para além da ciência  do homem e da economia burguesa:
“Proposição IV: Ética do Ser-Pensamento, ética das relações que opõem as potências da vida às doutrinas do juízo, a filosofia é uma onto-etologia à medida que seus conceitos formam mundos possíveis e acontecimentos presos no movimento de um infinito virtual-real”. (Alliez: 17)  

Creio que a filosofia virtual da técnica digital altera a política tout court, pois, a representação ideológica passa a fazer pendant com a gramática saussuriana da política. Nesta, a soberania popular burguesa (a política como expressão da gramática da forma de consciência burguesa comunicacional) faz pendant com a arbitrariedade do signo saussuriano (Saussure: 81) na articulação entre representante e representado, entre governante e governado.              
                                                                                     II

A relação da gramática com o virtual foi bem estabelecido por Pierre Levy:
“As operações de gramatização recortam um continuum fortemente ligado a presenças aqui e agora, a corpos, a relações ou situações particulares, para obter afinal elementos convencionais ou padrão. Esses átomos são descartáveis, transferíveis, independentes de contextos vivos. Já formam o grau mínimo do virtual na medida em que cada um pode ser atualizado numa variedade indefinida de ocorrências, todas qualitativamente diferentes, mas no entanto reconhecíveis com exemplares do mesmo elemento virtual. Portanto não se trata de átomos reais ou  substanciais. Esse ponto  deve ser sublinhado, pois ele faz toda a diferença entre a análise à moda cartesiana, que separa partes reais, e a gramatização que cria partículas virtuais. Sua propriedade de não-significância autoriza o  reemprego de um conjunto limitado de tijolos de base, livres e descartáveis, para construir uma quantidade infinita de sequências, de cadeias ou de compostos significantes. A significação de um composto não pode ser deduzida a priori da lista de seus elementos: trata-se de uma atualização criadora em contexto”. (Levy. 1996: 87-88).

A significação na política de um composto (partido político ou facção política etc.) não se deduz a priore da lista de seus elementos. A lista dos elementos da Constituição pode falar em partido político como sujeito da política. O artigo 17 do capítulo V da Constituição brasileira 1988 estabelece o partido político como sujeito da política. “É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardada a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:
I – caráter nacional.

A significação nacional do composto não pode ser deduzido a priori de sua realidade virtual constitucional: do dito constitucional. A norma  só existe como atualização do virtual. Trata-se de uma atualização criadora do virtual em um contexto.

O contexto do capitalismo neocolonial significa que o partido político age em prol de interesses não-nacionais. O bloco de partidos dominante no Congresso e no governo nacional é neoliberal e neocolonial. O neoliberalismo segue a política do “Consenso e Washington”. Se trata de um  bloco de partidos não-nacionais. Como o partido político é definido constitucionalmente (virtualmente) como nacional, então a existência de grupos políticos institucionais não-nacionais significa que a política se define por ser uma facçdemocracia: sgrammaticatura da democracia das facções políticas constituídas pela lógica simbólica do particular, pela lógica na qual a política não  se totaliza em nação.

Pierre Levy esclarece a relação entre gramática e sgrammaticatura ou falta de gramática:
“O  destino da escrita ilustra particularmente bem a gramatização; o que  a etimologia confirma: gramma, em grego antigo, é a letra. A fala é antes de mais nada  indissociável de um sopro, de um presença  viva aqui e agora. A escrita (a gramatização da fala) separa a mensagem de um  corpo vivo e de uma situação particular. A impressão leva adiante esse processo ao padronizar  a grafia, separando o texto lido  do traço direto de uma performance móvel. Reencontramos em quase todos os processos de virtualização o equivalente de um ‘caráter móvel, liberado, deslocado das situações concretas, reprodutível e circulante”. (Levy. 1996: 88).

Com o último parágrafo, o problema da política se põem de um modo mais preciso em Levy. O contexto é também uma  gramática (econômica, política, cultural). O contexto brasileiro é a gramática do capitalismo neocolonial. Trata-se de uma virtualização mundial que se atualiza na política da nação, do país, de uma região geoeconômica.

Há um salto qualitativo na gramaticalização do homo informacionalis:
“A informatização acelera o movimento iniciado pela escrita ao reduzir todas as mensagens a combinações de dois símbolos elementares, zero e um. Esses caracteres são os menos significantes possíveis, idênticos em todos os suportes de memória. Seja qual for a natureza da mensagem, eles compõem sequências traduzíveis em e por qualquer computador. A informática é a mais virtualizante das técnicas por ser também a mais gramaticalizante. Sabe-se que a língua se caracteriza por uma dupla articulação, a que junta os fonemas e as unidades significantes (as palavras) e a que junta as palavras entre si para produzir frases. No que concerne à informática, poder-se-ia falar de uma articulação de n tempos: códigos eletrônicos de base, linguagens-máquinas, linguagens de programação, linguagens de alto nível, interfaces e operadores de traduções múltiplas para finalmente chegar à escrita clássica, à linguagem, a todas as formas visuais e sonoras, a novos sistemas de signos interativos”. (Levy. 1996: 88-89).

O efeito do homo informacionalis sobre a política é os mass media (eletrônico e digital) no comando da cultura e da política. A facçdemocracia tem na facção dos mass media um poder de gramaticalização da política virtual ainda pouco entendido: a) em sua estrutura gramatical; b) em sua atualização prática; c) em suas consequências para o futuro imediato.

A facção dos mass media é um efeito da gramática do capitalismo neocolonial (e neoliberal tupiniquim). A gramática dos mass media é uma atualização da virtualidade da gramática do capitalismo neocolonial. Portanto, trata-se de uma facção antinacional, naturalmente.

Na eleição 2018, o candidato Ciro Gomes faz do discurso nacional a plataforma eleitoral de sua campanha à presidência da república. Assim ele entra em choque com a facção dos mass media. A internacionalização virtual da política brasileira pela gramaticalização do capitalismo neocolonial mundial é um processo contínuo e permanente de oclusão da nação na consciência burguesa comunicacional, como consciência do capitalismo neocolonial.

O problema em tela não nos introduz empiricamente na relação da gramaticalização do antinacional no homo informacionalis digital?      

                                                                             III  
O A técnica digital cria o ambiente para a expressão de uma subjetivação fragmentada. Bilhões de pessoas escrevem e leem o que outros internautas escrevem em um cotidiano no qual a forma de consciência não tem terreno objetivo/subjetivo para se totalizar? Hoje, já vivemos a realidade de um mundo digital, do homo digitalis, como um fenômeno mundial.

O que é o homo digitalis?

Há o Estado digital como um passo além do tele Estado eletrônico?

Na década de 1990, o Estado digital ainda era uma fantasia lacaniana do futuro. Pierre Levy procurou balizar a gramática da política digital, em seu frescor de novidade.

Seria o caso de pensar uma tribalização algorítma do mundo?

Maffesoli fala de uma tribalização real do espaço político mundial:
“Numerosos são os indícios que, nacional ou internacional, exprimem esse sentimento de vinculação comunitária  ou tribal. Regiões, cidades, departamentos, levantam-se contra o  centralismo  jacobino, em torno de um herói epônimo: prefeito, notável local, estrela esportiva ou personalidade de renome afirmam um imaginário que os constitui como tal. O mesmo vale nos quatro cantos do mundo, a partir de uma reivindicação étnica, de uma especificidade cultural ou um fanatismo religioso, Em cada um desses casos, afirma-se o que Wittgenstein chamava de ‘semelhança de famílias’”. (Maffesoli: 19). 

“Semelhança de família” é o avesso da política racional. Trata-se do estado sentimental ou do campo dos afetos ou de estado animus no comando da política: “Desse ponto de vista, a gestão das paixões é certamente a arte suprema de toda boa política”. (Maffesoli: 34).

A “semelhança de família” faz pendant com o aspecto religioso do político:
“O político, no seu aspecto religioso, assegura de uma parte, pelo viés da liderança, a ligação com o meio natural; reforça, de outra parte, pelo sentimento coletivo e pela emoção partilhada, o estar-junto necessário a toda vida social”. (Maffesoli: 45). 

A força do sentimento é o instrumento de tribalização do político:
“A transfiguração do político completa-se quando a ambiência emocional toma o lugar da argumentação ou quando o sentimento substitui a convicção”. (Maffesoli:147).    

A força do sentimento remete para o poder de afetar e ser afetado por emoções, paixões na política. Este estado da política maffesoliana não parece ter sido transplantado para a tela digital?

Uma política digital algorítma voltada para a comunicação afetiva de familiares e amigos é o ideal das redes sociais digitais. Toda uma sociedade de afecto articula famílias e amigos ao redor do planeta. A “semelhança de família” é o princípio de funcionamento institucional da gramática das redes sociais digitais.

Não obstante, há circulação de discurso político, difusão de gramática política, fabricação de gramáticas da comunicação na parte invisível da tela gramatical digital ao lado de uma política oficial de estabelecimento  de pequenos  campos  de concentração da expressão escrita pessoal e grupal. Se a escrita tout court é a virtualização da fala, a escrita digital é a virtualização de um fala confiscada em sua liberdade de dizer a verdade.

A política digital algorítma é aquela de um dispositivo industrial de segregação dos internautas. No entanto, ela pode ser ultrapassada por sujeitos digitais no ciberespaço. Neste espaço, pode acontecer campanhas políticas permanentes para a tomada do poder via eleição, articulação digital da mobilização de massas na rua para derrubar regimes autocráticos ou para transformar a democracia representativa, polarização ideológica etc.    

Pierre Levy resume a historicidade da relação entre técnica e política:
“A infraestrutura de comunicação e as tecnologias intelectuais sempre mantiveram estreitas relações com as formas de organização econômicas e políticas. Lembremos a esse respeito alguns exemplos bem conhecidos. O nascimento da escrita está ligado aos primeiros Estados burocráticos de hierarquia piramidal e às primeiras formas de administração econômica centralizadas (imposto, gestão de grandes domínios agrícolas etc.). O surgimento do alfabeto na Grécia antiga é contemporâneo ao aparecimento da moeda, da cidade antiga e, sobretudo, da invenção da democracia: tendo a prática da leitura se difundido, todos podiam tomar conhecimento das leis e discuti-las. A imprensa tornou possível uma ampla difusão de livros e a existência de jornais, base da opinião pública. Além disso, a imprensa representa a primeira indústria de massa, e o desenvolvimento tecnocientífico por ela promovido foi um dos motores da Revolução Industrial. A mídia audiovisual do século XX (rádio, televisão, discos e filmes) participou do surgimento de uma sociedade do espetáculo, que transformou as regras do jogo tanto na cidade como no mercado [publicidade]”. (Levy. 2015: 57-58).

As gramáticas da política se encontram associadas ao domínio da técnica. Com a Revolução Industrial, a política fez laço com a técnica industrial. No século XXI, a política se encontra sob efeito da técnica industrial digital. A democracia se torna uma questão do ciberespaço:
“Antes de nos engajar às cegas em vias irreversíveis, urge imaginar, experimentar e promover, no novo espaço da comunicação, estruturas de organização, estilos de decisão orientados para um aprofundamento da democracia. O ciberespaço poderá se tornar um meio de exploração dos problemas, de discussões pluralistas, de evidências de processos complexos, de tomada de decisão coletiva e de avaliação dos resultados o mais próximo possível das comunidades envolvidas”. (Levy. 2015: 58).

O idealismo da interpretação de Pierre Levy não integra em sua análise a materialidade da política fazendo pendant com a physis da economia. O ciberespaço brasileiro inventou uma nova gramática da nossa política. Ela é a junção de uma paixão de massa digital pela autocracia bonapartista de chumbo e a adaptação darwinista desta massa ao futuro imediato do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo.

No entanto, como evangelho da política digital, os livros de Pierre Levy se constituem em uma fonte de leitura pública para a defesa de um aprofundamento da democracia realmente existente.


ALLIEZ, Éric. Deleuze. Filosofia virtual. SP: Editora 34, 1996 Champ Vallon, 1998
FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966
GODIN, Christian. La totalité. v. 1. De l’imaginaire au  symbolique. Paris:
LEVY, Pierre. O que é o virtual? SP: Editora 34, 1996
 LEVY, Pierre. A inteligência coletiva.  SP: Folha de São Paulo, 2015
MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político. A tribalização do mundo. Porto Alegre: Sulinas, 1997
MARX. OS Pensadores. SP: Abril Cultural, 1974
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. SP: Cultrix, Sem Data