terça-feira, 16 de setembro de 2014

Crise do modelo político brasileiro?





“Um espectro ronda a Europa: o espectro do comunismo”. Esta frase do Manifesto do Partido Comunista é a condensação da lógica dos espectros de Marx que instaura, no discurso marxista, a articulação entre a grande política e o simulacro no sentido especificamente político (Derrida: 22, 60). O espectro é uma cópia sem vida do corpo político real passado ou futuro. Na frase supracitada, trata-se do espectro do futuro que se tornaria um corpo político real com Lenin na revolução bolchevique na Rússia.
Derrida esclareceu que o espectro é a não-contemporaneidade a si do presente. É preciso falar do fantasma uma vez que nenhuma ética e nenhuma política parecem possível, pensável e justas sem reconhecer em seu princípio o respeito ou por esses outros que não estão mais presentes, ou por esses outros que ainda não tenham nascido (Derrida: 11). Para nós, o fantasma interessa como a disjunção na presença mesma do presente, essa espécie de não-contemporaneidade do tempo presente a ele mesmo, essa intempestividade ou essa anacronia radicais. Trata-se da articulação entre o que se ausenta e o que se apresenta. O fantasma deve não ser nada, nada simplesmente (não-ente, não-efetividade, não-vida). Ou nada imaginário mesmo se esse nada toma corpo, corpo espectral (Derrida: 49).
A presença deste corpo na política é capaz de ligar o passado e o futuro ao presente. A conjuração dos mortos – quando os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado – se faz através da apropriação de uma linguagem espectral emprestada. Os homens evocam tal linguagem emprestada – com seu conteúdo de ideias e formas de arte – com suas ilusões de que necessitam para esconderem de si próprios as limitações do conteúdo de suas lutas e manterem seu entusiasmo no alto nível da tragédia histórica. Nesta, o simulacro é evocado para transladar o presente para uma época morta (Marx. 1974: 335-336). Na tragédia política, a multidão parece articular a política sem a lógica do espectro (Silveira: 2014).
O fantasma que se descreve como alguma “coisa” espectral faz da lógica do simulacro a porta de entrada para a política. O corpo espectral é o simulacro que permite a leitura da realidade política como algo virtual e factual ao mesmo tempo. Em O capital, a lógica do simulacro articula a estrutura simbólica, quando o capital morto controla o trabalho vivo (Eagleton: 85).  Trata-se do capital no lugar do grande Outro. O capital como o verdadeiro Deus da política. O capital é o corpo sem órgão do capitalista, ou antes, do ser capitalista. É no capital que se engatam as máquinas e os agentes, de modo que até o seu funcionamento é miraculado por ele. Quando as conexões produtivas passam das máquinas ao corpo sem órgão (como do trabalho ao capital), elas são submetidas a uma nova lei que exprime uma distribuição em relação ao elemento não produtivo como pressuposto natural ou divino, ou seja, as disjunções do capital (Deleuze e Guattari: 13-15).     
II     
O espectro mais importante da política brasileira republicana é o espectro populista que apareceu na democracia de 1934. Trata-se de Getúlio Vargas como espectro populista do futuro. Em 1934, Getúlio tem que ser entendido como corpo virtual (fantasma do futuro) e como corpo político real. Como líder efetivo populista (corpo político vivo), Getúlio só acontece em 1950 no governo da democracia populista.
O populismo pode ser caracterizado por três dimensões. Primeiro, a democracia é a condição de possibilidade dele. Segundo, ele depende de uma articulação da política feita pelo discurso do direito como expressão do antagonismo de classes ou de outros antagonismos. Terceiro, ele está associado à política de massas. Em 1934, há democracia e direito trabalhista, mas não existe política de massa. Como esta sobredetermina os dois outros aspectos, neste momento, o populismo só existe como um corpo espectral. Em 1934, Getúlio é o líder populista virtual como espectro do futuro.
A crise da democracia de 1934 pode ser compreendida, no plano político, pela metamorfose do espectro do populismo em bonapartismo que só ocorre na democracia despótica da Lei de Segurança Nacional de 1935. Este é também o momento do despertar do Urstaat colonial em uma experiência de democracia republicana regulada pelo discurso do mestre colonial oligárquico (Silveira: 2014). O golpe de Estado bonapartista instala um estado de exceção permanente – o Estado Novo- e Getúlio torna-se o tirano moderno da vida republicana brasileira. Getúlio não conjurou ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado? Ele não conjurou em seu auxílio o fantasma de um outro tirano republicano - o marechal Floriano Peixoto-, imortalizado por Lima Barreto no romance Triste fim de Policarpo Quaresma? (Barreto: 207). Na década de 1930, a lógica do espectro articula a crise da democracia e a instauração de um regime despótico como simulacro (cópia) de ditadura moderna. A crise de 1954 – que levou Getúlio finalmente ao suicídio – foi a tentativa de Carlos Lacerda de transformar o populismo em um espectro, em um corpo sem vida. Ao se transformar em um espectro, Getúlio possibilitou que o populismo continuasse a existir como um corpo político vivo através de JK (Juscelino Kubichek) que venceu a eleição presidencial, após a subida de Getúlio para o céu da política brasileira.
Na eleição presidencial de 1960, não houve espectro rondando a política. Mas Jânio Quadros na presidência da República é a própria crise. Ele queria transformar o populismo vivo em bonapartismo. O espectro do bonapartismo explica a crise política que levou o vice-presidente João Goulart ao cume do poder de Estado, após o simulacro de renúncia de Jânio Quadros. Ao contrário de Getúlio, Jânio fracassou em transformar o populismo em bonapartismo. O fracasso de tal substancialização provou que a alquimia de Jânio era uma alquimia de um professor de português comparada a uma verdadeira alquimia política como a de Getúlio. Na crise de 1964, a direita comandada por Carlos Lacerda aliada aos generais liderados pelo general Castelo Branco   evocaram o fantasma do comunismo – encarnado no governo Goulart – para desfechar um golpe de Estado. Este instalou um regime despótico militar que só acabaria na década de 1980. Este fantasma apareceu através da voz de Luís Carlos Prestes que declarou em março de 1964: “estamos no poder”. A ditadura militar é um simulacro de ditadura republicana, uma cópia militar do Estado Novo. Tal ditadura, por caminhos tortuosos, é uma herdeira de Floriano Peixoto e de Getúlio Vargas com sua cornucópia de tiranos militares. 
Na eleição de 1989, Collor esconjurou Lula e o PT com o espectro do comunismo simbolizado na bandeira vermelha estrelada do partido. A derrota de Lula significou a derrota de um corpo político espectral, pois o PT jamais foi comunista. Diz a lenda comunista que o General Golbery do Couto e Silva – considerado o bruxo do regime militar – criou o PT para acabar com a hegemonia do PCB entre os trabalhadores e intelectuais. E que Lula foi, no início de sua vida sindical, um agente da CIA. Os marxistas do PT jamais acreditaram em tais lendas urbanas – No lo creo em brujas pero que las hay las hay.
Em 2002, Lula disputou a presidência com o PSDB. Ele fez a “Carta aos Brasileiros” para esconjurar o fantasma do comunismo que parecia, para a elite e para camadas da população, possuir o PT. O governo de Lula pode ser concebido como uma vasta experiência de dissolução do espectro da luta de classe e de um possível exercício do poder de Estado capitalista pela classe operária. Lula governou um Estado capitalista para os capitalistas e em função do capitalismo. Ele foi a versão tropicalista de que a luta de classes deixara de ocupar o centro da política mundial, inclusive nas distantes redes da América Latina. Lula e Fernando Henrique Cardoso são os ideólogos da oligarquia política híbrida criada no século XXI. Esquerda e direita unidas em torno de um bem supremo: governar o Estado capitalista. Tal é a ética da oligarquia política híbrida. Uma vez FHC disse: “eu tenho um pé na senzala”. Esta frase revelava para a nação o desejo de FHC instalar no Brasil uma democracia fundamentada em um pensamento político mestiço? Mas para FHC tal pensamento só poderia ser uma paródia de um verdadeiro pensamento político mestiço. A oligarquia política híbrida corresponde na política ao sintoma neurótico da psicologia do indivíduo. Freud concebe o sintoma neurótico como uma “formação de compromisso”, já que em sua estrutura convivem tensamente duas forças antagônicas (Eagleton: 122). Na oligarquia política híbrida, há sempre uma “formação de compromisso” entre duas forças antagônicas: direita/esquerda.    
III   
Na eleição de 2014, não há espectros. A lógica do simulacro está ausente. Então, a eleição é obra do acaso ou da publicidade (marketing político)? Ou está sendo regida pelo inconsciente político – uma interseção entre o Real e o Simbólico que subsume o imaginário político brasileiro? Não é preciso pensar na possibilidade do inconsciente político operar como causa ausente da política no século XXI? O discurso do inconsciente é estruturado como uma linguagem. Trata-se da Ordem da Lei e do Direito de assinação atributiva ou excludente sob a forma da Ordem do significante, ou seja, sob a forma de uma Ordem formalmente idêntica à ordem da linguagem (Althusser: 23, 26). Linguagem política! Linguagem articulada a partir de dois significantes-mestre: público e privado. O Real é o significante foracluído do simbólico, ou seja, impossível de ser simbolizado. A entrada em cena do inconsciente político tem como causa a morte do candidato do PSB, Eduardo Campos. Tal morte é o real impossível de ser simbolizado. Marina Silva assumiu o lugar de Eduardo Campos e as pesquisas de opinião indicam que ela será a opositora de Dilma no segundo turno. Com exceção da eleição de 1989, as eleições presidenciais têm sido um confronto entre o PT e o PSDB. Um simulacro de confronto entre o capital e o trabalho. Isto não caracteriza a eleição no reino da oligarquia política híbrida? Mas para a população, Marina é o significante capaz de encontrar um caminho para a crise brasileira? Tal crise é um sintoma da eleição de 2014. A crise é o segredo bem guardado pela elite econômica e pela oligarquia política híbrida. Como o texto do sonho, o sintoma revela e oculta simultaneamente. Os jornais televisivos falam cotidianamente dele. E a crise, é possível descrevê-la?
Um primeiro aspecto da crise é a lógica da justiça que regula a política brasileira no século XXI. Trata-se de uma justiça que põe para funcionar o princípio da justiça oligárquica brasileira colonial: ajudar os amigos, e prejudicar os outros? Fazer o bem para os idênticos e prejudicar os diferentes? O PT é pilotado por tal justiça na era lula? A declaração de que o partido vai transformar a vida do governo de Marina em uma sucursal do inferno na terra não é algo pilotado pela justiça oligárquica? O fim da oligarquia política híbrida significa o fim da política para o PT como algo positivo? Significa lançar o país em uma crise política do tipo venezuelana? As declarações de Marina não parecem apontar para a construção de uma vontade política que expressa o desejo de encerrar o ciclo no poder da oligarquia política híbrida? O PT não poderia fazer parte desta vontade política saindo da órbita da lógica do simulacro? Marina advoga uma outra justiça para a articulação da política? A política não deve ter como cimento a família ou as redes de amizade oligárquicas, cimento da justiça oligárquica. Não se trata de articular a política pela ética oligárquica de fazer o bem para os amigos, e aos inimigos a lei. Trata-se de articular a política a partir do princípio socrático, que chegou até ao cristianismo primitivo, de não prejudicar ninguém. Uma justiça que não opere, na política, a partir da dialética identidade versus diferença.
Em posse do governo federal, o PT como partido hegemônico da oligarquia política híbrida não articula a política pela justiça oligárquica colonial. Então, qual é a lógica da justiça petista? Ajudar os amigos e buscar um equilíbrio com o inimigo para evitar a crise da oligarquia política híbrida. Trata-se de evitar a presença de Mefistófeles na política. Mefistófeles diz: “Sou parcela do Além, força que cria o mal e também faz o bem” (Goethe: 59). Com Goethe, o Diabo não é inscrito no lugar do grande Outro da política? Dividir os bens públicos com o “inimigo” – os governadores de oposição, por exemplo - não é um modo de evitar a posição do diabo na política? Collor que só sabia viver a política pela articulação da velha justiça oligárquica não foi abandonado pela elite política? Ele não seguia fervorosamente a ideia de justiça mefistofeliana?  Quando a multidão pediu na rua o seu impeachment, nem o pacto com o diabo foi capaz de salvá-lo. Collor colocou em prática um contrato com o diabo que aplicava a justiça oligárquica de um modo restrito: “para os amigos tudo, para os outros a lei”. Os amigos eram o pessoal restrito ao bando oligárquico, basicamente de Alagoas, seu estado natal. A justiça oligárquica ampliada teve uma longa vida no governo autocrático de José Sarney. Através dela, Sarney transformou a transição para a democracia em um regime autoritário civil (Silveira: 2013) que durou uma eternidade. Entretanto na ideologia dominante patrocinada pela velha justiça oligárquica colonial, ele é glorificado como a nêmesis do regime autoritário militar e o campeão da democracia de 1988.  A justiça socrática de Marina não significa um caminho para desfazer ou os nós da política amarrada pela oligarquia política híbrida, ou os nós da justiça oligárquica colonial capaz de amarrar a política brasileira no século XXI?   
IV
Qual é a ética da oligarquia política híbrida? A oligarquia brasileira tradicional fez da riqueza o seu bem supremo. O privatismo – a apropriação privada da riqueza pública – é o significante que a articula no espaço político. A oligarquia política híbrida tem a conservação do poder como seu sumo bem. A autarquia econômica é o significante que sustentou a oligarquia tradicional, significante geoeconômico, territorial (engenho, fazenda), que está na origem da transição da oligarquia como discurso do senhor para o mundo “moderno”. O privatismo e a autarquia sustentam, por um lado, a apropriação privada da riqueza e, por outro, o homem oligárquico como homo clausus. O corolário é a articulação, no campo simbólico, da cidade oligárquica como modelo para a política brasileira. A oligarquia política híbrida é articulada pelos significantes supracitados que a enredam como inconsciente político. Mas a ética dela tem a conservação do poder como bem supremo. O projeto de poder do PT – não deixar o poder federal, enquanto existir a democracia de 1988 – é a vontade de poder como expressão de tal ética.
A ética da oligarquia política híbrida é regulada por um certo realismo político. Trata-se da tentativa de subtrair os atos políticos à qualquer avaliação moral. O realismo político professa que a ética é algo do domínio da vida privada. A política é uma esfera autônoma integralmente separada da dimensão ética. Por isso, a política realista se define pela procura de certos efeitos a qualquer preço, sejam quais forem os meios, aos quais se deve recorrer, com a consequente exclusão da dimensão moral. Para a oligarquia política híbrida, a moral é uma forma de consciência, uma ideologia, ou seja, um conjunto de ideais, normas e juízos de valor – juntamente com atos humanos respectivos – que servem aos interesses de um determinado grupo social. Esta visão de mundo é derivada do marxismo do PT e da formação marxista de Fernando Henrique Cardoso – principal ideólogo do PSDB e da oligarquia política híbrida.
O mensalão é um fato produzido pelo realismo político do PT – que governava com Lula – que levou os dois principais militantes do núcleo duro estalinista do PT a serem condenados pelo STF. Outro fato deste tipo é a quase implosão da Petrobras no governo Dilma Rousseff, provocado pela corrupção dos partidos da base aliada e pela gestão irracional da empresa operada pela lógica privada de apropriação da riqueza pública (privatismo). Outro fato é o uso privado pelo PT e PMDB e outros partidos do capital dos Fundos de Pensão, revelado pela Operação Lava Jato da Polícia Federal. Esta é uma dimensão da crise brasileira que tem como causa ausente a soberania do discurso do senhor colonial sobre a nossa política no século XXI.  
Depois do mensalão, o PT deixou de ser o partido que pela ética republicana se contrapunha a ética oligárquica.  O egoísmo ético oligárquico promove a sujeição do universal ao particular. Ele não é apenas uma ideologia, mas uma forma real de comportamento efetivo do homo clausus oligárquico. Ele é parte de um processo “vivido” inconsciente e institucional no qual a lógica privada subsume a lógica pública do inconsciente político.
A relação do PT com a estrutura oligárquica obedece à lógica heterônoma. Ele é uma caixa de ressonância de uma voz que lhe fala de fora - do inconsciente político como cadeia causal do discurso oligárquico. Há uma determinação externa que faz do egoísmo ético petista o avesso de um fato moral, pensando o ethos como uma forma de vida política e o mores como “costumes” no sentido de um conjunto de normas ou regras adquiridos pelo hábito. Não há subjetivação do discurso do mestre pelo PT como algo substituto à subjetivação marxista-leninista (estalinismo). Assim, o PT continua, instrumentalmente, renegando seu papel de partido dirigente da oligarquia política híbrida na era Lula, e renegando que seja, ao lado do PMDB, o principal dispositivo de repetição da cultura política oligárquica colonial uma vez que esta funciona para ele como um Deus ex machina. Para o PT, a consciência é menos algo dentro de nós que algo ao redor de nós e entre nós, uma rede de significantes que nos constitui inteiramente, de fora, do exterior. Assim, o partido se mantém puro em seu ser político como subjetividade marxista-leninista. Este é o espírito dos revolucionários que tem raízes no populismo russo (narodovolchestvo). No Os Demônios, Dostoiévski escreveu: “Para o homem russo a honra é apenas um fardo supérfluo. Aliás, em toda a sua história sempre foi um fardo. O que mais pode atraí-lo é o franco “direito à desonra”. A nota do Editor diz que o nosso escritor joga com uma passagem da Publicação da Sociedade Vingança do Povo: “Nós, do povo...guiados pelo ódio a tudo o que não é o povo, somos isentos do conceito de obrigações morais e de honra em relação ao mundo que odiamos e do qual nada espera a não ser o mal...” (Dostoiévski: 360). Por caminhos tortuosos, o populismo russo não se tornou a matriz simbólica do marxismo-leninismo? Nas mãos do PT, a política brasileira do século XXI não tem um colorido russo?
Para o populismo russo petista, a quase implosão da Petrobras – um sintoma da crise brasileira – não diz respeito ao ser político do partido. Em setembro de 2014, o engenheiro Paulo Roberto Costa – ex-diretor da Petrobrás entre 2004 e 2012 – usou a delação premiada para não acabar como Marco Valério, operador financeiro do mensalão condenado a várias décadas de prisão. As investigações da PF revelam a existência de uma ampla rede de corrupção (privatismo) na empresa envolvendo funcionários de carreira, grandes empreiteiras, doleiros e políticos importantes. Para terem acesso aos contratos da estatal, as empreiteiras eram aconselhadas a reverterem parte de seus lucros aos cofres da rede de partidos do governo petista. Depois de lavado por doleiros, o dinheiro era distribuído entre os políticos e os partidos. Faziam parte de tal rede três governadores, seis senadores, um ministro de Estado e 25 deputados federais. Entre os mais notáveis estavam o presidente do Senado, Renam Calheiros (PMDB), o senador Ciro Nogueira, presidente do PP, e o tesoureiro nacional do PT, Vaccari Neto. Entre os governadores, Sérgio Cabral (PMDB), do Rio de Janeiro, e a filha de José Sarney, Roseana, do Maranhão. Paulo Roberto Costa declarou que conversou frequentemente com o então presidente Lula e que costumava tratar com ele dos assuntos da Petrobras: “Por várias vezes, tratei diretamente com o presidente Lula” (Veja. 10/09/2014). A quase implosão da estatal é um trabalho político da oligarquia política híbrida que foi pilotada pela mesma lógica da oligarquia brasileira tradicional: o privatismo. Tal lógica beneficiava o governo Dilma, pois o dinheiro sujo, arrecadado pela rede privatista, bancava a base de sustentação do governo no Congresso. O “presidencialismo de coalizão” não é uma necessidade da política brasileira, mas um mecanismo que sustenta o poder da oligarquia política híbrida. Trata-se da miséria da política que submete o presidente da República à lógica privatista do discurso do mestre. Assim, os presidentes petistas substituíram a ética republicana de usar o governo para fazer o Bem para o maior número de pessoas pela ética oligárquica de fazer o Bem para os amigos. Movendo bilhões de dólares, a “petrogate” explica a fala de Paulo Roberto Costa: “Se eu falar, não vai ter eleição”. Frase sibilina que retém o segredo da crise brasileira. Esta é a crise do modelo político brasileiro criado na década de 1990 que não alterou em um milímetro a estrutura simbólica (estrutura de poder) que articula a política brasileira. Dois partidos modernos (PT e PSDB) se transformaram em suporte e veículo do discurso do mestre colonial. O marxista Caio Prado Jr. sempre esteve certo em apontar a repetição do Brasil colonial no Brasil republicano. O pensamento conservador de um Oliveira Vianna e de um Gilberto Freyre também iluminou este fato. A possibilidade da vitória de Marina Silva não é uma conclusão lógica da crise brasileira? O modelo político está em crise e a população inventa um líder carismático como solução lógica para a crise? A vida pessoal e política de Marina a qualifica para ocupar o lugar do líder carismático? A população inventa o líder carismático como voz do discurso do Outro, da Ordem Simbólica. O problema é que a ordem simbólica não pode evitar a lógica do insignificante na política (Hegel: 26). As virtudes do líder carismático podem ser insignificantes para resolver a crise brasileira. Na política, as paixões, os objetivos do interesse particular e a satisfação do egoísmo são fatores mais poderosos que a razão e as virtudes; seu poder está em não considerar nenhum dos limites que o direito e a moralidade lhes querem impor. Aqui, trata-se de um direito e de uma ética que não são a expressão de vontade de poder oligárquica ou capitalista. Mas na visão de Hegel, se o Estado não é apenas um aparelho, nem tudo está perdido: se o Estado é o que existe, é a vida real e ética, pois ele é a unidade do querer universal, essencial, e do querer objetivo – isso é a moralidade objetiva (Hegel: 39). O mundo real, o bem verdadeiro e a razão divina universal têm o poder de se realizar. Esse bem e essa razão em sua representação mais concreta é Deus. Deus governa o mundo, e o conteúdo de seu governo, a realização de seu plano, é a história universal (Hegel: 37-38). O grande Outro governa a política na história universal. Isso não é um princípio de esperança para os povos submetidos ao inferno do discurso do mestre colonial no século XXI? No início reinou Cronos, o tempo. Foi a era de ouro, sem obras morais. O que foi criado, os feitos dessa época – foi devorado por ele mesmo. Um Deus político dominou o tempo e impôs um objetivo ao seu curso, criando uma obra moral: o Estado (Hegel: 69-70). Esta mitologia hegeliana da criação do Estado pelo grande Outro como um fato ético remete a política para a dimensão da lógica pública do inconsciente político. Algo que o capitalismo reduziu aos interesses da burguesia. Só foi possível conceber a ideia do Estado como aparelho que serve aos interesses de uma classe, quando ocorreu a subsunção integral do Estado (público) ao capital (privado). Como aparelho, o Estado deixa de ser articulado pelo grande Outro. A categoria interesse toma o lugar da ordem simbólica na articulação da política. Esta secularização abjeta da política é o desencantamento de um mundo que quer excluir o inconsciente político como um fator determinante da vida política.                                  
BIBLIOGRAFIA
                                                   
ALTHUSSER, Louis. Positions. Freud et Lacan. Paris: Editions Sociales. 1976
DELEUZE E GUATTARI, Gilles e Félix. O anti-édipo. Capitalismo e esquizofrênia. Portugal: Assírio e Alvim. Sem data
DERRIDA, Jaques. Espectros de Marx. RJ: Relume-Dumará. 1994
DOSTOIÉVSKI. OS demônios. SP: Editora 34. 2005
GOETHE. Fausto e Werther. SP: Nova Cultural. 2002
EAGLETON, Terry. Ideologia. SP: Editora da Universidade Estadual Paulista e Editora Boitempo. 1997
HEGEL. Filosofia da história. Brasília: Editora da UNB. 1995
LIMA BARRETO. Triste fim do Policarpo Quaresma. SP: Brasiliense. 1959
MARX. Os Pensadores. SP: Editora Abril Cultural. 1974
SILVEIRA, José Paulo Bandeira da. Leitura da política brasileira (1985-1992). “Publique-se”. Livraria Saraiva. 2013
SILVEIRA, José Paulo Bandeira. Oligarquia e política. “Publique-se”. Livraria Saraiva. 2014

    

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Manifesto da democracia justa


Nascida no Estado do Acre, Marina é um ser da floresta Amazônica. Mestiça, ela representa o povo brasileiro no palco da política. Gilberto Freyre articulou o significante cultura brasileira como mestiçagem cultural, hibridismo cultural, como o povo mestiço no palco da cultura. Marina vai além da cultura brasileira, pois pode se tornar o signo da mestiçagem política. Ela pode dar um novo sentido e uma nova função ao significante oligarquia política híbrida. De uma família pobre, que trabalhava nos seringais da floresta amazônica, contraiu várias doenças tropicais e foi contaminada por metais pesados da poluição dos rios provocada pela indústria oligárquica do garimpo. Hegel disse uma vez, em algum lugar, que a história era um vale de lágrimas. Marina viveu individualmente na pele tal fórmula hegeliana. Analfabeta até os 16 anos, hoje é formada em história. Amiga e companheira de Chico Mendes, fez com ele as lutas épicas contra a oligarquia amazônica em defesa da floresta. Sua ideologia viva é a ideologia do povo da floresta: o ecologismo prático. Uma lenda urbana diz que depois do assassinato de Chico Mendes pela oligarquia e sob a iminência de ser assassinada, Lula a retirou da floresta para ser uma representante do PT no Congresso Nacional.
Uma pessoa religiosa com uma fé infinita em Deus, Marina pode ser o significante manifesto da religação entre religião e política no Brasil da política mundial. Com ela, a política pode ser percebida como o amálgama manifesto entre razão e inconsciente político. A revolta contra esta produção do contemporâneo pode se transformar em puro niilismo modernista. No “Manifesto da Poesia do Pau-Brasil”, Oswald de Andrade escreveu: “tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo”.  Antes a frase ia além do conteúdo; agora é conteúdo que vai além da frase.
Como ministra do Meio Ambiente no governo Lula, Marina se opôs à política predatória para o meio ambiente desse  governo sob o comando de Dilma Roussef primeiro como ministra da Energia, depois como toda poderosa ministra da Casa Civil. O choque com Dilma resultou na sua saída do governo Lula. Saiu do PT e se candidatou à presidente da República em 2010, se constituindo na terceira via entre PT e PSDB ao receber cerca de 20 milhões de votos. Nesta campanha,  transformou a luta local contra a oligarquia amazônica numa luta nacional contra a nova oligarquia capitalista rural brasileira (capitalismo de commodities), conhecida no jornalismo e nos meios burgueses como agronegócio.
Na eleição de 2014 para a presidência da República, ela sai candidata pelo PSB. Trata-se de um partido com fortes ligações com o agronegócio. Mas provavelmente o partido dirigente será o Rede Sustentabilidade. A Justiça eleitoral incluindo os cartórios não poderá mais bloquear a criação legal do Rede Sustentabilidade. Com a desintegração da indústria brasileira, a nova oligarquia capitalista rural parece ser a correia de transmissão empírica para o encaixe da hegemonia da oligarquia financeira mundial sobre o bloco no poder no Brasil. Tal encaixe foi realizado no e pelo governo Dilma Rousseff. Neste governo, o Estado brasileiro voltou a ser o aparelho de poder do capital financeiro mundial. Como Marina vai usar o poder de Estado para dotar a política brasileira de uma autonomia relativa em relação à hegemonia da oligarquia financeira mundial no bloco no poder brasileiro? Em 1968, os estudantes carregavam fachas nas ruas de Paris com a frase: “a imaginação no poder”. Os eleitores de Marina acreditam que ela é dotada de uma  faculdade de imaginação que poderá transformar a política brasileira. A imaginação política fez de Marina a única política brasileira com fortes ligações com o movimento da multidão de junho de 2013.
A democracia brasileira tem sido comandada pela lógica privada do inconsciente político. Trata-se de uma forma de democracia despótica. Marina pode alterar esta forma? É possível fazer a democracia no Brasil se transformar em forma de governo dirigida pela lógica pública do inconsciente político pela lógica do bem comum? A experiência de instalação da democracia justa precisa começar em algum elo da cadeia mundial com a crise da democracia representativa na política mundial. Marina e o Rede Sustentabilidade podem dirigir tal luta? Podem ao menos tentar! Realizar tal ato político implica em encontrar um caminho, que neutralize o Estado brasileiro como comitê da oligarquia financeira mundial através de sua vassala: a nova oligarquia capitalista rural brasileira. O encaixe do Brasil com o capitalismo corporativo mundial pode ser o instrumento de uma reindustrialização e um ponto de força para alterar o domínio inflexível do capital financeiro mundial sobre o Estado brasileiro. Talvez o capitalismo de Estado misto do setor de energia possa ser um aliado nesta empreitada, ele que na ditadura militar foi um pilar de sustentação burguesa de tal regime. Seria a redenção do capitalismo de Estado que se tornaria um pilar da democracia dirigida pela lógica do bem comum. O Pré-Sal poderá ser um instrumento econômico de grande utilidade política se for posto a serviço da democracia pós-moderna do século XXI.
Uma questão polêmica é a ligação de Marina com a religião evangélica. As religiões monoteísta são a força dirigente de uma revolução conservadora na política mundial. Trata-se de uma contrarrevolução, pois ela avança no recuo e fuga da revolução secular do mundo moderno. A revolução conservadora instaura a política mundial como uma dialética entre a razão e o inconsciente político. Esta é uma leitura possível da produção do mundo contemporâneo. Marina não parece ser a capitã de uma pequena embarcação que navega entre Cila e Caríbdes? Ao contrário de Dilma, Marina não será um instrumento cínico e oportunista da contrarrevolução religiosa mundial no Brasil. Ela poderá ser o sujeito do equilíbrio de antagonismo gilbertiano na política brasileira do século XXI. Equilíbrio da dialética entre razão e  inconsciente político na política mundial.    
Por sua ligação espiritual com a multidão de junho de 2013, Marina se constitui no espaço político como uma força que se opõe à instalação pelo  PT do governo despótico ou Urstaat. O PT de Dilma Rousseff acabou de recriar o temido serviço de inteligência do exército que atuou na ditadura militar muitas vezes como terrorismo de Estado. Segundo o ministro da Defesa, tal agência estatal deveria servir para vigiar, observar e infiltrar os movimentos sociais de rua das grandes cidades e os movimentos sociais rebeldes do campo. Trata-se de uma agência da montagem do Urstaat que terá como principal função agir sobre as multidões para domá-las, e, quem sabe, desarticulá-las. No plano político formal, os inimigos do governo petista serão o objeto privilegiado da ação desta abjeta agência do exército brasileiro. As forças do governo no Congresso Nacional aliadas do governo Dilma acabaram de gerar uma lei que militariza a Guarda Municipal. O governo petista de São Paulo do "marxista" Fernando Haddad foi o primeiro município a armar a sua Guarda Municipal. Trata-se de uma lei que articula a oligarquia brasileira como uma força armada na política local. De fato, trata-se da repetição do coronelismo com a instalação de uma jagunçada estatal. Nos sertões do Nordeste e de Minas Gerais, a Guarda Municipal do Estado petista assumirá a forma do coronelismo. Este modelo poderá servir para a instalação de cópias do coronelismo estatal em regiões como o Norte e o Centro-Oeste. Em todas as regiões apontadas, a Guarda Municipal poderá ser o instrumento das lutas clânicas, das lutas oligárquicas, repetindo o estado de guerra civil larvar do Brasil colonial. Tais fenômenos supracitados são a ponta do iceberg do Urstaat brasileiro. A instalação da democracia justa significa necessariamente a desmontagem do governo despótico.
Nas relações internacionais, o ecologismo prático brasileiro pode ser o instrumento para a retomada da luta ecológica na política mundial. É preciso que o desejo ecológico se transforme em uma vontade governamental em vários elos da cadeia política mundial que subsuma a vontade capitalista oligárquica mundial, causa que sobredetermina a cadeia de causas que convergem para transformar o planeta em uma lata de lixo global. Marina pode se aliar à Obama e ao governo chinês para construir tal vontade ecológica na política mundial.
Fausto de Alexandr Sokorov acaba com Fausto rasgando o contrato com o diabo que prometia a alma deste herói moderno para as forças do inferno. A oligarquia política brasileira pretende que Marina assine uma nova “Carta ao Povo Brasileiro” que a torne um instrumento do poder oligárquico. A oligarquia brasileira vai querer transformar Marina em um Lula de saia.  Se Marina pode ser a figura freudiana do grande homem de saia, um Moisés na política brasileira, ela pode muito bem rasgar o contrato (o pacto oligárquico) que é a repetição da soberania do discurso do mestre colonial na política brasileira do século XXI:
Hic Rhodus, hic salta                                              

         

sábado, 28 de junho de 2014

Produção do Contemporâneo

O livro Produção do Contemporâneo trata da lógica do discurso do mestre e dos fenômenos – objetos da experiência possível – sociais, políticos e éticos que efetuam a produção da contemporaneidade no século XXI. Trata-se de um objeto político que se funda na ruptura com a modernidade política. Assistimos ao desaparecimento paulatino – variando de país para país, de continente para continente – da forma Estado moderno e a substituição da soberania do capitalismo corporativo mundial como forma dominante da política mundial. No lugar deles, emergem um Estado despótico capitalista (a forma pós-moderna do Urstaat) e a soberania do capitalismo oligárquico mundial. Em alguns continentes estas formas obedecem a uma aceleração histórica, como na América latina. Em um contraponto a elas, as multidões desejam um outro tipo de mundo. Esta é a dialética de produção da contemporaneidade modelada pelo discurso do mestre oligárquico que é o motor de uma guerra civil molecular larvar.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Oligarquia e Política


Livro digital que pode ser adquirido na Livraria Saraiva: http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/6919323

O livro Oligarquia e política é composto de duas partes. Na primeira (“Oligarquia e Política”), o autor se dedica a demonstrar a repetição do discurso oligárquico na política brasileira através de figuras políticas como Pedro II, Getúlio Vargas e Luís Inácio Lula da Silva.
O discurso oligárquico tem como categorias política basais a escravidão e a servidão voluntária. Elas sustentam os regimes políticos, o Estado e os governos ao longo da história do Brasil colonial, imperial e republicano. Elas coabitam o espaço político sob o domínio do Urstaat ou do Estado democrático. Nesta perspectiva, a história brasileira pode ser uma contribuição para a leitura política da maioria dos países da América Latina e de países de outras regiões do planeta. Um ato do poder oligárquico pode ser constatado no documento final da reunião da segunda cúpula da CELAC em Havana. O documento afirma ser a favor de  “respeitar plenamente o direito inalienável de todo Estado escolher seus sistemas políticos (...) como condição essencial para garantir a convivência pacífica entre as nações”(EL Pais. Edição Brasil. 30/01/2014). A pretexto de defender Cuba e Venezuela, a vontade oligárquica antecipa a possível substituição da democracia moderna por possíveis regimes despóticos. No caso mais complexo, trata-se de instalar uma democracia perversa.   
No plano empírico, o Bolsa Família é o último exemplo de como uma política estatal pode funcionar no sentido de agenciar a servidão voluntária em prol do poder da oligarquia política como modelo para a política mundial no século XXI. Não é difícil constatar que o capitalismo mundial caminha para a reprodução ampliada de um regime oligárquico na cadeia política mundial como repetição do regime oligárquico da Antiguidade grega (Aristóteles). Com o pretexto de combater a separação entre ricos e pobres através do Bolsa Família, a oligarquia brasileira apresenta a servidão voluntária da população mundial como modelo político para tal regime oligárquico.
A segunda parte (“Origem da Tragédia Política”) elege as jornadas de junho de 2013 no Brasil como um fenômeno da política mundial para pensá-la como uma novo tipo de articulação entre política e estética. A revolução moderna fez o laço com a tragédia histórica (Marx). A multidão de junho está na origem da tragédia política. Esta aparece como um passo além da erodida estética pós-moderna.
Um outro aspecto abordado na relação entre estética e política é a eclosão da violência na revolução moderna e, agora, na possível revolução “pós-moderna”. Na revolução moderna, a violência das massas é parte da luta contra o despotismo sustentado pela teológico-político. Na atualidade, é preciso fazer a distinção entre a violência da multidão e a violência, por exemplo, dos black blocs. A violência da multidão é, em geral, uma ação reativa contra regimes despóticos ou situações despóticas em regimes democráticos. Já a violência dos black blocs parece modelada por um niilismo larvar. Neste sentido, ela está aquém da possível revolução “pós-moderna”.       
   

                                       

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O modelo político peruano

O Urstaat é o Estado original. Um aparelho que exerce violência sobre a população. Na sua forma moderna, ele é o exercício da violência sem lei sobre a sociedade. No Brasil, o Estado getulista da Revolução de 1930 instalou o Urstaat até 1934 como um estado de exceção. Em 1934, uma Constituição restaurou a democracia representativa. No entanto, eleito presidente da república indiretamente pela Assembleia Nacional Constituinte, Getúlio inscreveu o Urstaat na estrutura simbólica brasileira ao instituir a Lei de Segurança Nacional, que continua viva na atualidade. A LSN é a instituição do Urstaat através de um dispositivo jurídico que marcou a existência da violência despótica sobre a população. Neste caso, o direito funciona realmente como ideologia (Marx). Com as jornadas de junho de 2013, uma série de iniciativas dos partidos oligárquicos pretendia seguir a linha de força da LSN e reavivar o Urstaat como dispositivo político na legislação ordinária. Tal fato visava controlar ou fazer parar o desenvolvimento do movimento de massa que caminhava, de um modo latente, para um questionamento amplo do poder oligárquico. O uso da violência despótica do aparelho de Estado sobre os manifestantes aparece mascarado pela ideologia jurídica. Mas isto não é uma realidade apenas no Brasil.
No Peru, por iniciativa de um senador fujimorista, o Congresso aprovou uma lei que modifica o Código Penal, eximindo de responsabilidade os agentes do Estado – policiais e militares – que causem morte ou dano físico no cumprimento do dever. O direito dos policiais e militares de matar e ferir a população significa a instituição do Urstaat, através do Código Penal, no cotidiano da população (El Pais. Edição América. Jacqueline Fowks. 15/01/2014).
A fusão do sistema representativo com o Urstaat parece ser a forma política que as democracias latino-americanas almejam alcançar para domar a ação política dos opositores radicais ao poder oligárquico e a ação das massas. Talvez também seja o modelo político para outras regiões do planeta.
Claude Lefort definiu o político – instância política – como algo diferente da atividade política. Trata-se de um duplo movimento de aparição e de ocultação do modo de instituição da sociedade. A aparição diz respeito à visibilidade do processo crítico por meio do qual a sociedade é ordenada e unificada através de suas divisões. A ocultação é o lugar da política (lugar onde se exerce a competição entre os partidos e onde se forma e se renova a instância geral do poder) como dimensão particular que implica a dissimulação do princípio gerador da configuração do conjunto. Ao tomar o lugar da política como particular, a ciência política opera na privatização ideológica do espaço político ao aceitar a dissimulação do princípio gerador da configuração do conjunto. Tal princípio não apontaria para a lógica pública do inconsciente político? Não é preciso estabelecer um método – leitura da política – para ler tal funcionamento da instância política? É preciso uma perspectiva transdisciplinar para abordar o mecanismo da dissolução do lugar da política em um sentido público.
Como caracterizar o Urstaat em relação à instância política? Como aparelho que exerce a violência sobre a população e sobre a sociedade, o Estado também é parte do duplo movimento de aparição e ocultação do modo de instituição da sociedade. Nietzsche estabeleceu que o Estado agia sobre a população para desenvolver a sociedade. Isto é quase a ideia do Estado como modo de instituição da sociedade. O Estado é parte do processo crítico por meio do qual a sociedade é ordenada e unificada através de suas divisões. Engels viu o Estado como um aparelho acima das classes que tem como finalidade impedir a destruição da sociedade pela luta de classes. Tal ideia é um primeiro passo para entender o Estado como ordenador e unificador da sociedade. Em Gramsci, a hegemonia contempla o Estado como ordenador e unificador da sociedade através de um processo histórico no qual a classe dominante – expandida no aparelho de hegemonia do Estado – funciona como agente da direção intelectual e moral em relação à população. Esta concepção gloriosa do Estado – inspirada em Hegel ­– relegaria a um segundo plano o papel da violência estatal no desenvolvimento ou na instituição da sociedade. O Estado moderno aparece como o fenômeno, por excelência, de tal ideia de hegemonia. Neste Estado, a violência seria circunscrita pela lei garantindo o uso da violência legítima dela, como observou Max Weber. Para que seja legítimo, o poder deve doravante ser conforme ao direito, e, deste, ele não detém o princípio.
O Peru provoca uma reviravolta na ideia e na prática do Estado moderno na América Latina. Ele conserva o lugar do político como um sistema representativo formal ao lado do Estado como violência que não precisa ser legitima como dispõe a Lei do país. Tal modelo político peruano se alinha ao lado de um conjunto de fenômenos que estão além da modernidade política. Ele sustenta a privatização do político (como um modo de fazer funcionar a política pela competição entre partidos e onde se forma e se renova a instância geral do poder) como um meio de garantir a distribuição do poder entre as frações da classe dominante que precisam da via eleitoral – da ação política do povo-nação – para construir a hegemonia no bloco no poder. Contudo, o processo eleitoral é abandonado como a única via de construção da hegemonia do bloco no poder em relação às classes dominadas, aos pobres, aos negros e aos povos indígenas. Tal fato pode ser percebido como um efeito do fracasso de tal hegemonia perante o crescimento do número de conflitos violentos e do desenvolvimento dos movimentos de massas. No caso do Peru, o Estado introduz a violência sem lei do aparelho de Estado, ou melhor, introduz a violência da burocracia estatal sobre a população fora de qualquer regulamentação legal como um modo de garantir o ordenamento e a unificação da sociedade. Se os conflitos de massa se desenvolverem em outros países da América Latina, o modelo peruano não se tornará a lógica das classes dominantes neste continente?                                      

Mantendo o sistema representativo, o modelo peruano sustenta o lugar do poder político como um lugar vazio. Assim, ele evita que os governantes se apropriem por um longo tempo do poder, se incorporem ao poder. O exercício do poder depende de procedimentos que permitam um reajuste periódico. Este é um modo de lidar com as contradições das frações da classe dominante. A hegemonia no bloco no poder demanda a institucionalização do conflito entre as frações da classe dominante através do Estado. Ela requer o vazio do poder político, que indivíduos ou partidos não se apoderem deste por um longo tempo, de tal maneira que nenhum indivíduo ou grupo político lhe seja consubstancial. Assim, o lugar do poder só ideologicamente possui uma configuração em um sentido público, em um sentido universal. Trata-se de uma condição estratégica do poder político, que resolve o problema da hegemonia no bloco no poder e da “hegemonia” deste sobre as classes populares, os pobres e outros. Em uma determinada situação ou momento histórico, a fração que detém a hegemonia sobre as outras frações no bloco no poder não precisa ser a fração que detém a “hegemonia” sobre a maioria da população. O vazio do poder permite que este lugar de poder “hegemônico” seja ocupado por qualquer fração e, assim, permite que se disponha de várias alternativas – indivíduos, partidos – na dominação sobre a maioria da população.
Como a hegemonia sobre a população está parando de funcionar no Peru, um poder despótico – a violência não regulamentada do aparelho de Estado – vem ocupar o lugar da hegemonia do bloco no poder sobre a sociedade. No lugar da fração hegemônica do bloco no poder em relação à população, encontra-se agora uma burocracia despótica, irracional que é um dispositivo político do Urstaat, sendo o avesso da burocracia moderna weberiana. Um poder burocrático oligárquico ocupa então o lugar de senhor da sociedade. Ele deixa de ser conforme o direito, detendo o princípio deste.
No Peru, a elite subverte a noção de regime democrático regulado por leis, ou seja, a ideia e a prática de um poder legítimo, e também fica distante da noção de um regime fundado na legitimidade de um debate sobre o legítimo e o ilegítimo, debate necessariamente sem fiador e sem termo. Assim, aos oprimidos é recusada a liberdade de movimento – através do uso da violência estatal –, isto é, tudo o que lhes proporciona os meios legítimos e eficazes de protesto e de resistência ao despotismo. Este fato significa a recusa radical – aos indivíduos, aos camponeses, aos operários, às comunidades, aos povos indígenas, aos grupos socioambientais – do direito a ter direitos. O modelo peruano subverte a ideia democrática da legitimidade do debate sobre o legítimo e o ilegítimo, pois esta supõe que ninguém ocupe o lugar do grande juiz, o lugar do discurso do Outro, já que o grande Outro é um meio que a ideologia dominante usa para impor a dominação da elite no poder. O debate sobre o legítimo e o ilegítimo agencia a dialética entre a consciência possível e a lógica pública do inconsciente político.  
No Peru, o poder oligárquico ocupa o lugar do grande juiz, o lugar do discurso do Outro. Neste sentido, trata-se de uma realidade política que pode ser encontrada em toda a América Latina. O mundo oligárquico latino americano é parte de uma lógica suplementar da política mundial sustentada por um capitalismo oligárquico mundial. O capitalismo cada vez mais divide o planeta entre ricos e pobres – inclusive nos países desenvolvidos – repetindo um princípio do regime oligárquico que remonta à Antiguidade (Aristóteles). O documento Working for Few (“Trabalhando para Poucos”) é um relatório da ONG britânica Oxfam que dá visibilidade a natureza oligárquica do capitalismo mundial. Ele afirma que as 85 pessoas mais ricas do planeta têm um patrimônio equivalente ao patrimônio de 3,5 bilhões das pessoas mais pobres do mundo. A riqueza de 1% das pessoas mais ricas do mundo soma US$110 trilhões, 65 vezes a riqueza da metade mais pobre da população mundial. 1% das famílias da Terra é dona de quase metade (46%) da riqueza planetária. Nos últimos anos, 210 indivíduos se tornaram bilionários somando-se a um seleto grupo de 1426 pessoas com um valor líquido da riqueza mundial que alcança a cifra de US$5,4 trilhões (BBC. Brasil. 21/01/2014). Uma pesquisa realizada pela Oxfam na Espanha, Brasil, Índia, África do Sul, Reino Unido e EUA revela que a maioria da população acha que as leis são desenhadas para favorecer os ricos. Na Espanha, 80% da população considera que as leis são feitas com este objetivo (El Pais. Edição Brasil. Clara Blancher. 19/01/2014).


O capitalismo instaura e reproduz de um modo ampliado um regime oligárquico no espaço político mundial. A América Latina dá sua contribuição a tal poder capitalista oligárquico mundial sustentando uma forma específica de discurso oligárquico que ocupa o lugar do discurso do Outro. Glauber Rocha estabeleceu o domínio do significante oligárquico na América Latina no filme Terra em Transe, de 1967. A configuração do poder mundial continua sendo produzida e reproduzida pela história dos povos, dos países e dos continentes. O poder capitalista ocidental é um dos parâmetros para se entender toda a configuração do poder político na cadeia política mundial. Mas existem outros parâmetros. A leitura da política dos povos, dos países, dos continentes e de outras regiões geopolíticas continua sendo um passo necessário para a abordagem da política mundial. Mas um elemento é comum na política mundial, a saber: a natureza oligárquica do poder mundial como um modo de reprodução político ampliado do capitalismo em quase todo o planeta.