O Urstaat é o Estado original. Um aparelho que
exerce violência sobre a população. Na sua forma moderna, ele é o exercício da
violência sem lei sobre a sociedade. No Brasil, o Estado getulista da Revolução
de 1930 instalou o Urstaat até 1934 como um estado de exceção. Em
1934, uma Constituição restaurou a democracia representativa. No entanto,
eleito presidente da república indiretamente pela Assembleia Nacional
Constituinte, Getúlio inscreveu o Urstaat na estrutura simbólica brasileira ao
instituir a Lei de Segurança Nacional, que continua viva na atualidade. A LSN é
a instituição do Urstaat através de um dispositivo jurídico que
marcou a existência da violência despótica sobre a população. Neste caso, o
direito funciona realmente como ideologia (Marx). Com as jornadas de junho de
2013, uma série de iniciativas dos partidos oligárquicos pretendia seguir a
linha de força da LSN e reavivar o Urstaat como dispositivo político na
legislação ordinária. Tal fato visava controlar ou fazer parar o
desenvolvimento do movimento de massa que caminhava, de um modo latente, para
um questionamento amplo do poder oligárquico. O uso da violência despótica do
aparelho de Estado sobre os manifestantes aparece mascarado pela ideologia
jurídica. Mas isto não é uma realidade apenas no Brasil.
No Peru, por iniciativa
de um senador fujimorista, o Congresso aprovou uma lei que modifica o Código
Penal, eximindo de responsabilidade os agentes do Estado – policiais e
militares – que causem morte ou dano físico no cumprimento do dever. O direito
dos policiais e militares de matar e ferir a população significa a instituição
do Urstaat, através do
Código Penal, no cotidiano da população (El Pais. Edição América. Jacqueline
Fowks. 15/01/2014).
A fusão do sistema
representativo com o Urstaat parece ser a forma política que as
democracias latino-americanas almejam alcançar para domar a ação política dos
opositores radicais ao poder oligárquico e a ação das massas. Talvez também
seja o modelo político para outras regiões do planeta.
Claude Lefort definiu o
político – instância política – como algo diferente da atividade política.
Trata-se de um duplo movimento de aparição e de ocultação do modo de
instituição da sociedade. A aparição diz respeito à visibilidade do processo
crítico por meio do qual a sociedade é ordenada e unificada através de suas
divisões. A ocultação é o lugar da política (lugar onde se exerce a competição
entre os partidos e onde se forma e se renova a instância geral do poder) como
dimensão particular que implica a dissimulação do princípio gerador da
configuração do conjunto. Ao tomar o lugar da política como particular, a
ciência política opera na privatização ideológica do espaço político ao aceitar
a dissimulação do princípio gerador da configuração do conjunto. Tal princípio
não apontaria para a lógica pública do inconsciente político? Não é preciso
estabelecer um método – leitura
da política – para ler tal
funcionamento da instância política? É preciso uma perspectiva transdisciplinar
para abordar o mecanismo da dissolução do lugar da política em um sentido
público.
Como caracterizar o Urstaat em relação à instância política? Como
aparelho que exerce a violência sobre a população e sobre a sociedade, o Estado
também é parte do duplo movimento de aparição e ocultação do modo de instituição
da sociedade. Nietzsche estabeleceu que o Estado agia sobre a população para
desenvolver a sociedade. Isto é quase a ideia do Estado como modo de
instituição da sociedade. O Estado é parte do processo crítico por meio do qual
a sociedade é ordenada e unificada através de suas divisões. Engels viu o
Estado como um aparelho acima das classes que tem como finalidade impedir a
destruição da sociedade pela luta de classes. Tal ideia é um primeiro passo
para entender o Estado como ordenador e unificador da sociedade. Em Gramsci, a
hegemonia contempla o Estado como ordenador e unificador da sociedade através
de um processo histórico no qual a classe dominante – expandida no aparelho de
hegemonia do Estado – funciona como agente da direção intelectual e moral em relação
à população. Esta concepção gloriosa do Estado – inspirada em Hegel –
relegaria a um segundo plano o papel da violência estatal no desenvolvimento ou
na instituição da sociedade. O Estado moderno aparece como o fenômeno, por
excelência, de tal ideia de hegemonia. Neste Estado, a violência seria
circunscrita pela lei garantindo o uso da violência legítima dela, como
observou Max Weber. Para que seja legítimo, o poder deve doravante ser conforme
ao direito, e, deste, ele não detém o princípio.
O Peru provoca uma
reviravolta na ideia e na prática do Estado moderno na América Latina. Ele
conserva o lugar do político como um sistema representativo formal ao lado do
Estado como violência que não precisa ser legitima como dispõe a Lei do país.
Tal modelo político peruano se alinha ao lado de um conjunto de fenômenos que
estão além da modernidade política. Ele sustenta a privatização do político
(como um modo de fazer funcionar a política pela competição entre partidos e
onde se forma e se renova a instância geral do poder) como um meio de garantir
a distribuição do poder entre as frações da classe dominante que precisam da
via eleitoral – da ação política do povo-nação – para construir a hegemonia no
bloco no poder. Contudo, o processo eleitoral é abandonado como a única via de
construção da hegemonia do bloco no poder em relação às classes dominadas, aos
pobres, aos negros e aos povos indígenas. Tal fato pode ser percebido como um
efeito do fracasso de tal hegemonia perante o crescimento do número de conflitos
violentos e do desenvolvimento dos movimentos de massas. No caso do Peru, o
Estado introduz a violência sem lei do aparelho de Estado, ou melhor, introduz
a violência da burocracia estatal sobre a população fora de qualquer
regulamentação legal como um modo de garantir o ordenamento e a unificação da
sociedade. Se os conflitos de massa se desenvolverem em outros países da
América Latina, o modelo peruano não se tornará a lógica das classes dominantes
neste continente?
Mantendo o sistema
representativo, o modelo peruano sustenta o lugar do poder político como um
lugar vazio. Assim, ele evita que os governantes se apropriem por um longo
tempo do poder, se incorporem ao poder. O exercício do poder depende de
procedimentos que permitam um reajuste periódico. Este é um modo de lidar com
as contradições das frações da classe dominante. A hegemonia no bloco no poder
demanda a institucionalização do conflito entre as frações da classe dominante
através do Estado. Ela requer o vazio do poder político, que indivíduos ou
partidos não se apoderem deste por um longo tempo, de tal maneira que nenhum
indivíduo ou grupo político lhe seja consubstancial. Assim, o lugar do poder só
ideologicamente possui uma configuração em um sentido público, em um sentido
universal. Trata-se de uma condição estratégica do poder político, que resolve
o problema da hegemonia no bloco no poder e da “hegemonia” deste sobre as
classes populares, os pobres e outros. Em uma determinada situação ou momento histórico,
a fração que detém a hegemonia sobre as outras frações no bloco no poder não
precisa ser a fração que detém a “hegemonia” sobre a maioria da população. O
vazio do poder permite que este lugar de poder “hegemônico” seja ocupado por
qualquer fração e, assim, permite que se disponha de várias alternativas –
indivíduos, partidos – na dominação sobre a maioria da população.
Como a hegemonia sobre a
população está parando de funcionar no Peru, um poder despótico – a violência
não regulamentada do aparelho de Estado – vem ocupar o lugar da hegemonia do
bloco no poder sobre a sociedade. No lugar da fração hegemônica do bloco no
poder em relação à população, encontra-se agora uma burocracia despótica,
irracional que é um dispositivo político do Urstaat, sendo o avesso da burocracia
moderna weberiana. Um poder burocrático oligárquico ocupa então o lugar de
senhor da sociedade. Ele deixa de ser conforme o direito, detendo o princípio
deste.
No Peru, a elite subverte
a noção de regime democrático regulado por leis, ou seja, a ideia e a prática
de um poder legítimo, e também fica distante da noção de um regime fundado na
legitimidade de um debate sobre o legítimo e o ilegítimo, debate
necessariamente sem fiador e sem termo. Assim, aos oprimidos é recusada a liberdade
de movimento – através do uso da violência estatal –, isto é, tudo o que lhes
proporciona os meios legítimos e eficazes de protesto e de resistência ao
despotismo. Este fato significa a recusa radical – aos indivíduos, aos
camponeses, aos operários, às comunidades, aos povos indígenas, aos grupos
socioambientais – do direito a ter direitos. O modelo peruano subverte a ideia
democrática da legitimidade do debate sobre o legítimo e o ilegítimo, pois esta
supõe que ninguém ocupe o lugar do grande juiz, o lugar do discurso do Outro,
já que o grande Outro é um meio que a ideologia dominante usa para impor a
dominação da elite no poder. O debate sobre o legítimo e o ilegítimo agencia a
dialética entre a consciência possível e a lógica pública do inconsciente político.
No Peru, o poder
oligárquico ocupa o lugar do grande juiz, o lugar do discurso do Outro. Neste
sentido, trata-se de uma realidade política que pode ser encontrada em toda a
América Latina. O mundo oligárquico latino americano é parte de uma lógica
suplementar da política mundial sustentada por um capitalismo oligárquico
mundial. O capitalismo cada vez mais divide o planeta entre ricos e pobres – inclusive nos países desenvolvidos – repetindo um princípio do regime oligárquico que remonta à Antiguidade (Aristóteles). O documento Working
for Few (“Trabalhando para
Poucos”) é um relatório da ONG britânica Oxfam que dá visibilidade a natureza
oligárquica do capitalismo mundial. Ele afirma que as 85 pessoas mais ricas do
planeta têm um patrimônio equivalente ao patrimônio de 3,5 bilhões das pessoas
mais pobres do mundo. A riqueza de 1% das pessoas mais ricas do mundo soma
US$110 trilhões, 65 vezes a riqueza da metade mais pobre da população mundial.
1% das famílias da Terra é dona de quase metade (46%) da riqueza planetária.
Nos últimos anos, 210 indivíduos se tornaram bilionários somando-se a um seleto
grupo de 1426 pessoas com um valor líquido da riqueza mundial que alcança a
cifra de US$5,4 trilhões (BBC. Brasil. 21/01/2014). Uma pesquisa realizada pela
Oxfam na Espanha, Brasil, Índia, África do Sul, Reino Unido e EUA revela que a
maioria da população acha que as leis são desenhadas para favorecer os ricos.
Na Espanha, 80% da população considera que as leis são feitas com este objetivo
(El Pais. Edição Brasil. Clara Blancher. 19/01/2014).
O capitalismo instaura e
reproduz de um modo ampliado um regime oligárquico no espaço político mundial.
A América Latina dá sua contribuição a tal poder capitalista oligárquico
mundial sustentando uma forma específica de discurso oligárquico que ocupa o
lugar do discurso do Outro. Glauber Rocha estabeleceu o domínio do significante oligárquico na América Latina no filme Terra em Transe, de 1967. A configuração do poder mundial continua sendo
produzida e reproduzida pela história dos povos, dos países e dos continentes.
O poder capitalista ocidental é um dos parâmetros para se entender toda a
configuração do poder político na cadeia política mundial. Mas existem outros
parâmetros. A leitura da
política dos povos, dos
países, dos continentes e de outras regiões geopolíticas continua sendo um
passo necessário para a abordagem da política mundial. Mas um elemento é comum
na política mundial, a saber: a natureza oligárquica do poder mundial como um
modo de reprodução político ampliado do capitalismo em quase todo o
planeta.
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