segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

MODELO POLÍTICO MAFIOSO brasileiro


José Paulo



O PCC (“Primeiro Comando da Capital” é considerado, pelos especialistas em máfia, como uma organização criminoso privada mafiosa. A milícia é considerada uma organização criminosa público/privada. O narcotráfico uma organização criminosa privada.
Neste texto, penso, no Brasil, um <modelo político mafioso> público/privado que passa a dominar a política no lugar do modelo político oligárquico público/privado. E vou além do Brasil, ao mostrar os vínculos gramaticais do modelo político mafioso com o capitalismo subdesenvolvido da atualidade. 
A máfia surge em uma região da Itália, a Sicília centro-ocidental (Lupo: 67). O contexto histórico do surgimento do fenômeno faz pendant com o aparecimento pela primeira vez de uma ideia moderna de Estado (Lupo: 64). A estatização do campo de poderes social e político moderno é parte da formação da unidade política italiana.
No Sul, determinados grupos sociais exercem sobre a população uma função de ordem e controle que é parte da fundação de um <campo de poderes social> mafioso:
“O arrendatário desempenha uma função de ordem e de controle social que vai além dos âmbitos da grande propriedade de cultura extensiva: o seu aparato de campeiros e supervisores substitui as milícias feudais setecentista, acompanha as milícias comunais oitocentistas, cobre os espaços deixados vazio pelo controle primeiro do Estado borbônico e depois liberal”. (Lupo: 67).
O campo de poderes social mafioso surge no vazio da estatização do campo de poderes social e político:
“Já Emilio Sereni, há muitos anos, via a Máfia não tanto como resíduo feudal quanto como instrumento de uma burguesia ‘abortada’, justamente a dos rendeiros, que no curso da longa desagregação da economia e dos poderes feudais desenvolve uma capacidade de intimidação que é exercida tanto para cima como para baixo na hierarquia social. Enquanto se desagregam os patrimônios da velha aristocracia, as frações da comunidade local tentam interceptar os fluxos dessa riqueza, definindo até com violência, voltada para dentro ou para fora, a concorrência para o aluguel ou a aquisição de terrenos. Das comunas, por meio de impostos, os novos grupos dirigentes voltam a influenciar âmbitos geográficos mais amplos. Trata-se de um elemento que encontra suas características típicas na Sicília centro-ocidental”. (Lupo: 6            7).  
O campo de poderes social mafioso nasce em junção com uma economia mafiosa.
A versão de um campo de poderes social mafioso surge na cidade do Rio de Janeiro na segunda década do século XXI. No Brasil, a ciência social não detém recursos intelectuais para desenvolver a percepção e a reflexão sobre o fenômeno em tela. ou não quer. Neste ensaio, anúncio, apenas, o abc do fenômeno mafioso carioca.
Qual o contexto histórico do surgimento do fenômeno mafioso carioca? Ao contrário da Sicília, não é o surgimento da ideia de Estado moderno ou estatização do campo de poderes social e político.
No Rio, a desintegração da estatização do campo de poderes local fornece o contexto para o surgimento da máfia carioca que vem ocupar o vazio deixado pelo fenômeno supracitado. O narcotráfico é o pretexto para a constituição do campo de poderes mafioso das <mil repúblicas do crime>.
O campo de poderes mafioso se faz e refaz a partir da lógica do <poder territorial animal>. Poder que exerce a função de ordem e controle social da população que habita o campo de poderes mafioso.
Como na Sicília, o campo de poderes mafioso ancora em uma economia conhecida como miliciana. Tal fenômeno é produção de uma nova sociedade, pois, é preciso sublinhar o surgimento de uma classe média que nasce como efeito da economia do campo de poderes mafioso. Trata-se de uma classe média provida de uma moralidade criminosa, que não é parte da estatização do campo de poderes local da ordem jurídica da Constituição 1988.
O campo de poderes mafioso tem como alavanca a história neoliberal nacional do governo Michel Temer e do parlamento que derruba a presidente Dilma Rousseff em 2016. Em 2013, um movimento de massas carioca denunciou a desagregação do Estado local e foi duramente combatido pelo governo de Sérgio Cabral, que se constitui em uma organização criminosa política. É o início da desestatização do campo de poderes social e político local. O MDB noir é o partido político que prepara o surgimento do campo de poderes mafioso pelo alto.
A história do campo de poderes mafioso carioca ainda precisa ser escrita. Todavia, a soberania popular 2018 foi um motor que pôs o campo de poderes mafioso local nas estruturas do Estado nacional, com a vitória do outrora capitão do Exército e deputado federal Jair Messias Bolsonaro e de uma força prática parlamentar mafio-neoliberal. Aí começa a aceleração da desestatização do campo de poderes legal 1988 e, pari passu, a privatização neoliberal desse campo por um campo de poderes mafioso.    
Há que se pensar, acuradamente,  a hegemonia do modelo político mafioso no lugar do modelo político oligárquico a partir da produção da política brasileira pela soberania popular 2018. 
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A desagregação da estatização 1988 do campo de poderes social e político tem como motor a trânsfuga en masse de membros do aparelho de segurança pública (aparelho do Estado de polícia) para o campo de poderes mafioso, vulgarmente, e erradamente, conhecido como miliciano. Assim, o campo de poderes das mil repúblicas do crime inscreve no aparelho repressivo de Estado uma lógica que subverte o funcionamento essencial dele.
O que é o <aparelho repressivo de Estado>?
O aparelho repressivo de Estado significa: “Repressivo indica que o aparelho de Estado em questão ‘funciona através da violência’ – ao menos em situações limites (pois a repressão administrativa, por exemplo, pode revestir-se de formas não físicas”. (Althusser:82). Em Marx, o Estado é uma unidade política de poder de Estado e aparelho de Estado. (Balibar: 94).
Poulantzas esclarece bem o tema do Estado no marxismo francês:
“Toda forma estatal, mesmo a mais sanguinária, edificou-se sempre como organização jurídica, representou-se no direito e funcionou sob forma jurídica: sabe-se muito bem que assim foi com Stálin e sua Constituição 1937, reputada como a ‘mais democrática do mundo”. Portanto nada mais falso que uma presumível oposição entre arbítrio, os abusos, a boa vontade do príncipe e o reino da lei”> (Poulantzas: 83)
Desconstruído a ideologia jurídico-legalista do Estado, Poulantzas acrescenta:
“A lei é parte integrante da ordem repressiva e da organização da violência exercida por todo o Estado. O Estado edita a regra, pronuncia a lei, e por aí instaura um primeiro campo de injunções, de interditos, de censura, assim criando o terreno para a aplicação e o objeto da violência. E mais, a lei organiza as leis de funcionamento da repressão física, designa e gradua as modalidades, enquadra os dispositivos que a exercem. A lei é, assim, o código da violência pública organizada”. (Poulantzas: 84).  
Uma lista de citações nos porá na linha de argumentação gramatical sobre o Estado na terceira década do século XXI:
“A monopolização pelo Estado da violência legítima permanece o elemento dominante do poder, mesmo quando essa violência não é exercida direta e abertamente”. (Poulantzas: 89).
Em algum momento da história do Estado capitalista, o monopólio legitimo da violência real deixou de se determinante na realidade desse Estado:
“Todas as organizações têm perfis políticos, mas apenas no caso de Estados é que envolve a consolidação de um poder militar em associação ao controle dos meios de violência dentro de uma extensão territorial. Um Estado pode ser definido como uma organização política cujo domínio é territorialmente organizado e capaz de acionar os meios de violência para sustentar esse domínio. Tal definição é próxima daquela de Weber, mas não destaca uma reivindicação ao monopólio dos meios de violência ou fator de legitimidade”. (Giddens: 45).
Na sociologia londrina, o Estado passa a ser uma força prática utópica que busca o monopólio da violência real legitima ao lado de um Estado que não busca a legitimidade, no seu agir, nem pretende deter o monopólio da violência, legal ou ilegalmente. Assim se desintegra a ideia de Estado moderno na história do Estado que vai deixar de se definir como Estado de direito capitalista.
Prosseguindo:
“Essa monopolização está na base das novas de lutas sob o capitalismo, às quais corresponde o papel dos dispositivos de organização do consentimento, pois poder e lutas se atraem e se condicionam mutuamente. A concentração da força armada pelo Estado, o desarmamento e a desmilitarização dos setores privados – condição para estabelecimento da exploração capitalista – contribuem para deslocar a luta de classes, de uma guerra civil permanente de conflitos armados periódicos e regulares, para as novas formas de organização política e sindical das massas populares, contra as quais a violência física aberta é, sabe-se, de eficiência relativa”. (Poulantzas:89-90).
O modelo político mafioso se instala com o desaparecimento da sociedade classes e da luta de classes, entre nós. Outras lutas de um campo de poderes mafioso toma o lugar da luta de classes, e confrontam o Estado moderno, como as lutas do cristão político, da classe média mafiosa, da imprensa e mass media mafiosos, que vem a transformar a natureza do Estado nacional em um Estado do capitalismo subdesenvolvido com indústria rural e sem sociedade industrial urbana.  
Sigo:
“Um povo ‘privado’ da força ‘pública” já é um povo que não vive mais o domínio político sob a forma de fatalidade natural e sagrada, um povo para o qual o monopólio da violência pelo Estado só é legítimo na medida em que a regulamentação jurídica e a legalidade lhe permite esperar, e mesmo permite formalmente e em princípio, o acesso ao poder. Enfim, o Estado concentra a violência em seus corpos especializados, enquanto ela cada vez é insuficiente para a reprodução do domínio. Às guerras privadas e aos conflitos armados sob forma de teodiceias repetitivas – incansavelmente colocadas na ordem do dia, catarse da fatalidade do poder, guerras pacificadas pela concentração da força armada no Estado – sucede a permanente contestação política do poder, consequência da monopolização da força física pelo Estado”. (Poulantzas:90).   
O modelo político mafioso pelo alto foi importado da história carioca do neoliberalismo, sendo neoliberalismo a porta de entrada para o capitalismo subdesenvolvido de hoje na América Latina.
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O <capitalismo criminoso> (Platt:19, 45, 101) e o <criminostat> (Virilo: 57) são formas do desenvolvimento do subdesenvolvimento nas Américas, ao menos. Ambos transformam o campo de poderes mafioso, no Brasil, em um fenômeno nacional, pois, temos governo central, parlamento, poder judicial, Forças Armadas, Estado de segurança pública, Estado de polícia, mass media como poderes/saberes sob uma articulatória direta ou indireta do campo de poderes das mil repúblicas mafiosas. 
A classe média mafiosa é um fenômeno da história italiana do século XIX:
“Nessa situação, o controle agrícola da hintelândia urbana vem representar um veículo importante de promoção social, em particular para os mafiosos que se interessam pela vigilância, pelo arrendamento, pela mediação comercial. Já foi visto o caso Giammona. Os já lembrados irmãos Amoroso são definidos com certo exagero como ‘pessoas de bem, filhos de proprietários”; os Licatas são chamados de ‘abastados’. Em todos eles podemos identificar facilmente os ‘facínoras da classe média” aos quais se refere Franchetti para representar o modelo típico do chefe mafioso”. (Lupo; 133).

No Brasil, ela é constituída por um movimento econômico de ascensão de massas das classes baixas, que vivem do lado de fora da ordem constitucional 1988.
A classe média em tela é um caminho de ascensão social de massas das classes baixas, que deixaram de acreditar no capitalismo legal e na política social do Estado 1988 como formas de ascensão social. Nos governos do PT, a ascensão social legal das massas da classes baixas aparece como uma força prática regulada pelo princípio esperança lulista. Tal fenômeno foi destruído pelo modelo político mafioso. 
O desenvolvimento do subdesenvolvimento sem indústria urbana desfaz o vínculo da classe média emergente com a ordem do capitalismo legal 1988. Esta classe média mafiosa é a revolta contra o fracasso da ordem capitalista legal 1988. O caso do capitão Adriano é luminar. Policial estadual, ele é expulso do aparelho repressivo e se torna um homem do campo de poderes mafioso, e aí se tornar o condottiere do aparelho de matadores de aluguel conhecido como “Escritório do Crime”. Perseguido pela polícia do Rio, se refugia na Bahia e se apresenta como um comprador de terras. Uma operação da polícia baiana o mata em uma situação pouco clara. O presidente da República e o senador Flávio Bolsonaro cobram explicações do governador petista da Bahia, que diz que não é responsável pela ação policial. Assim, a ordem fática do novo coronelismo urbano noir de esquerda mostra sua face para todo o país.
O caso da morte do capitão Adriano mostra para o Brasil que não existe mais ordem legal, entre nós. O campo de poderes mafioso carioca assassinou a vereadora de esquerda e LGBT Marielle Franco. Depois de mais de um ano a polícia do Rio não consegue descobrir quem foi o mandante desse crime político macabro.    
O discurso mafioso dos mass media se esforçam para ocultar ou enterrar a percepção sensível da realidade do subdesenvolvimento e de seu modelo político mafioso contra todas as evidências e fatos da existência dessa história econômica do subdesenvolvimento e sua superestrutura mafiosa.
O Rio deixou de  ser uma <civitas>, pois, existe agora como um vasto campo territorial de guerras privadas moleculares do subdesenvolvimento capitalista. O modelo político mafioso é a forma política que vai se nacionalizando como consequência do aprofundamento do capitalismo subdesenvolvido com indústria rural de commodities, mas sem sociedade industrial urbana.  
A classe média mafiosa se submete, inclusive economicamente, à ordem fática do campo de poderes mafioso. E só, depois, se integra em baixíssima intensidade à ordem constitucional 1988.  
O campo de poderes social mafioso se inscreve na política:
“Como se verá, tanto o general como o chefe de polícia têm algo a ser perdoado, dando assim a sua contribuição para um escândalo ‘demasiado amplo e indefinido’ que, observam preocupados Pelloux e Sonnino, põe em discussão o próprio equilíbrio político. No palco de Milão, os atores recitam um texto tão subversivo que leva o comando militar local a proibir os oficiais de frequentar as sessões do processo; mas para todos, presentes e ausentes, os enviados especiais restituem o quadro dos advogados que acusam as instituições de cumplicidade, políticos e policiais que se acusam reciprocamente, para a vergonha dos bem-pensantes e a alegria dos subversivos. Os primeiros devem admitir a presença de ‘um veneno misterioso, sutil...floresce sob a capa da Máfia a força da política, sob a capa da política a força da Máfia; os segundos podem constatar a miséria do Estado que pretende julgá-los”.  (Lupo:159).
O campo de poderes mafioso brasileiro pelo alto significa que o Estado constitucional 1988 não tem mais forças para enfrentá-lo. Assistimos uma adaptação darwinista dos membros dos poderes constitucionais à ordem fática do funcionamento do campo de poderes político mafioso nacional. A fórmula de Bolsonaro “mais Brasil, menos Brasília, significa, de fato, mais Rio. menos Brasil.
Acabo com uma citação que arremata a hipótese desse ensaio da diferença entre o subdesenvolvimento de outrora e o subdesenvolvimento de hoje
“O Estado aparece como o suplemento necessário ao desenvolvimento capitalista (ou do subdesenvolvimento na periferia capitalista). O Estado é uma instituição pública, ou melhor um centro de poderes voltado para a solução de conflitos e para manter a ordem capitalista. Trata-se de uma instituição especial que usa o monopólio da força real necessária para a manutenção do conjunto de relações de propriedade. O Estado deveria exercer a soberania sobre todos os que estão sob sua jurisdição. Ele é identificado como avalista de um determinado conjunto de relações de propriedade. O monopólio do poder de Estado é dominante.
No capitalismo subdesenvolvido pós-moderno, o Estado deixa de deter o monopólio da força real sobre a população e o território”. (Bandeira da Silveira: 39).
O modelo político mafioso brasileiro é a formação da política no capitalismo subdesenvolvido sem sociedade industrial urbana.

ALTHUSSER, Louis. Positions. Idéologie et appareils idéologique d’Etat. Paris: Editions Sociales, 1976
BALIBAR, Ètienne. Cinq études du matérialisme historique. Paris: Maspero, 1974
Bandeira da Silveira, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje. Lisboa: Chiado Books, 2019.
GIDDENS, Anthony. O Estado-Nação e a violência. SP: EDUSP, 2001
LUPO, Salvatore. História da máfia. Das origens aos nossos dias. SP: UNESP, 2002
PLATT, Stephen. Capitalismo criminoso. SP: Cultrix, 2017
POULANTZAS, Nicos. L’État, le pouvoir, le socialisme. Paris: PUF, 1978
VIRILO, Paul. Velocidade e política. SP: Estação Liberdade, 1996





   
  
       
 
 
  
   


sábado, 15 de fevereiro de 2020

HISTÓRIA NEOLIBERAL em colapso


José Paulo


A cultura como fabricação de artefato é uma ideia de Merleau-Ponty. (Merleau-Ponty. 1971:103). No final da vida, Lacan usou a ideia supracitada para dizer que não existe fato, e sim somente artefato.
A realidade realmente existente só existe em algum discurso como o discurso político, o discurso econômico, o discurso do maître, ou o discurso psicanalítico? 
A realidade deve ser buscada fora do que se sabe, fora da plurivocidade do campo de saberes/poderes. Deve ser buscada de fora do campo supracitado. A realidade existe como fato para aquém da produção cultural de artefatos.
Precisamos de um saber no qual a fé perceptiva, como dúvida do mundo que se vê como percurso das coisas, interroga-se a si mesma. O mundo existe sob a forma de interrogação e fé perceptiva da dúvida sobre a cultura como produção de artefato.
Uma cultura que se define pelo falar por falar desemboca no anarco-empirismo, no qual o eu e o mundo possuem uma identidade absoluta. Aí não há espaço para saber nada sobre como o mundo se faz como produção de fatos e artefatos. Não há espaço para o método de interrogação do mundo como fabricação da gramática da história ou da lógica das coisas.   
Lacan diz:
“Entretanto, se falei de artefato a propósito do discurso, foi porque, para o discurso, não existe nada de fato, se assim posso me expressar, só existe fato pelo fato de dizê-lo. O fato enunciado é, ai mesmo tempo, fato do discurso. É isso que designo com o termo artefato e, é claro, é isso que se trata de reduzir”. (Lacan. S. 18: 12-13).
Trata-se da redução da realidade ao discurso. Lacan pressupõe que a realidade e o discurso são idênticos? Ou só existe a realidade dita em um discurso?

A relação da linguagem com a realidade se constitui através de evidências e totalidade e, também, abertura ao SER da realidade do invisível (Merleau-Ponty: 100).
“a linguagem não é apenas a conservatória das significações fixas adquiridas, porque seu poder cumulativo resulta de um poder de antecipação e de pré-posse, porque não se fala apenas do que se sabe, por exibição – mas também do que não se sabe, para sabê-lo -, e a linguagem, fazendo-se, exprime, pelo menos lateralmente, uma ontogênese à qual pertence. Resulta, porém, daí, que as palavras mais carregadas de filosofia não são necessariamente as que encerram o que dizem, são antes as que se abrem mais energicamente para o Ser, porquanto revelam mais estritamente a vida do todo e fazem vibrar as nossas evidencias habituais até desjuntá-las”. (Merleau-Ponty: 1971:103).
O método <crítica da economia política> (“crítica das ideologias”) gerou uma percepção do mundo capitalista que se atualizou em uma força prática utópica de transformação revolucionária da história econômica. O socialismo científico é a disjunção das evidencias habituais e da vida do todo capitalista. Todavia, o socialismo realmente existente é uma história econômica derrotada pela história econômica capitalista. 
O triunfo da história econômica capitalista aparece como plurivocidade história econômica capitalista no século XXI. Trata-se de um mundo invisível do qual o campo de poderes/saberes em junção com o campo de indivíduos/sujeitos capitalista nada fala.
Para falar do mundo invisível supracitado, se faz necessário um platô situado fora do campo de poderes/saberes em junção com o campo de sujeitos capitalista neoliberal. A realidade invisível da história econômica do século XXI é aquela da plurivocidade de história econômica capitalista, ou melhor, da luta entre a história econômica do capitalismo desenvolvido, industrial cibernético com a história econômica do capitalismo subdesenvolvido, industrial, tradicional articulado pelo mundo cibernético.    



As relações do sujeito com a linguagem do significante e a realidade dos fatos e dos artefatos parte do fato que o sujeito se <exaure> ao se produzir como efeito de significante, mantendo-se distinto deste. (Lacan. S. 19: 166).  O sujeito do capitalismo desenvolvido é aquele sujeito cujo combate com o subdesenvolvimento exauriu-lhe as força; ele foi despejado até a última gota na luta. Tal fato explica o porquê das gramáticas da história econômica capitalista são produzidas em uma região de capitalismo subdesenvolvido.
O mundo invisível do capitalismo mundial só é visível em uma região de capitalismo subdesenvolvido sem sociedade industrial no comando da história econômica nacional. O sujeito capitalista desenvolvido se exaure na luta do campo de poderes/saberes capitalista em junção com o campo dos sujeitos do capitalismo globalizado, que se define na luta pela hegemonia entre desenvolvimento e subdesenvolvimento. 

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O capitalismo subdesenvolvido industrial tradicional cyber se configura pelos fenômenos seguintes: capitalismo petrolífero, complexo industrial-militar nuclear, mineração, Banco e Mercado Financeiro. É um fenômeno da expansão do subdesenvolvimento um departamento 3 hipertrofiado. Trata-se de um desenvolvimento anômalo da necessidade de produção e reprodução do material monetário na época da hegemonia do neoliberalismo do capitalismo globalizado:
“Daqui resulta para o processo de reprodução do capital social total a necessidade da produção e reprodução do material monetário. Aos dois grandes departamentos da produção social, a produção de meios de produção e a produção de bens de consumo, deveria acrescentar-se, como departamento terceiro, a produção de meios de troca, dos quais é característico que não servem nem para a produção nem para o consumo, mas que representam o trabalho social em mercadorias que não são suscetíveis de uso. É verdade que o dinheiro e a produção de dinheiro assim como a troca e a produção de mercadorias, são muito mais antigos que a forma de produção capitalista. Mas somente nessa ´última a circulação de dinheiro se converteu na forma geral da circulação social e com isso em elemento básico do processo de reprodução social. Esta é somente a representação da produção e reprodução do dinheiro em seu entrelaçamento orgânico com os outros dois departamentos de produção social, que forneceria o esquema completo do conjunto do processo capitalista em seus aspectos essenciais”. (Rosa: 7).
Dois aspectos devem ser sublinhados:
“A MASSA do dinheiro a reconverter-se em capital resulta do vasto processo de reprodução, mas, considerada de per si, como capital-dinheiro de empréstimo, não constitui ela mesma capital reprodutivo”. (Marx. 1985:580).
A distinção entre capital fictício e capital real é essencial para se compreender a história econômica do capitalismo no século XXI. Com a expansão do capitalismo subdesenvolvido, o capital fictício torna-se hegemônico no processo de reprodução social do capitalismo mundial. Assim, o mundo capitalista se faz e refaz por uma irracionalidade econômica devastadora. (Marx. 1985:463).
No departamento 3, a propriedade do capital fictício é uma propriedade jurídica garantida pelo Estado. A hegemonia do capital fictício põe e repõe a história econômica sob a égide de uma relação jurídica capitalista. Portanto, a história econômica não é mais uma história econômica capitalista per si:
“A circulação real do dinheiro como capital é, portanto, pressuposto da transação jurídica em virtude da qual o prestatário tem de devolver o dinheiro ao prestamista”. (Marx. 1985: 404).
A expansão do subdesenvolvimento capitalista já um efeito da história jurídica do capital. Por outro lado, o neoliberalismo quer um Estado mínimo que seja o efeito da história jurídica do capitalismo. Aliás, o Estado mínimo neoliberal se transformou em um motor do desenvolvimento do subdesenvolvimento capitalista nas Américas, para falar da região econômica que mais conheço.
A história jurídica do capitalismo no comando da realidade econômica é uma força prática de desenvolvimento do subdesenvolvimento no capitalismo globalizado. A partir daí, a lógica econômica do modo de produção capitalista fazendo pendant com a gramática de sua sociedade de classes industrial desaparecem na história do capitalismo no Ocidente.
As classes sociais deixam de ser, como força prática utópica, o motor das transformações do capitalismo. A linguagem do capitalismo deixa de nomear fenômenos como burguesia nacional, subdesenvolvimento e desenvolvimento, países desenvolvidos e em desenvolvimento, países emergentes etc. Trata-se da decomposição da linguagem capitalista tout court. Este fenômeno de decomposição da linguagem exaure o campo de sujeitos capitalista como saber sobre a história econômica capitalista.  
 A fundação do campo a gramática do ser ergue um platô capaz de ver o mundo para além das aparências de semblância do campo de poderes/saberes do capitalismo neoliberal do mundo visível:
“De acordo com a distinção que Portmann faz entre aparências autênticas e inautênticas, poder-se-ia falar de semblâncias autênticas e inautênticas. Estas últimas, miragens como a de alguma fada Morgana, dissolvem-se espontaneamente ou desaparecem com uma inspeção mais cuidadosa; as primeiras, como o movimento do Sol levantando-se pela manhã para pôr-se ao entardecer, ao contrário, não cederão a qualquer volume de informação científica, porque esta é a maneira pela qual a <aparência> do Sol e da Terra <parece> inevitável a qualquer criatura presa à Terra e que não pode mudar de moradia. Aqui estamos lidando com aquelas ‘ilusões naturais e inevitáveis’ de nosso aparelho sensorial, a que Kant se referiu na introdução à dialética transcendental da razão. Ele chamou a ilusão no juízo transcendente de ‘natural e inevitável’ porque era ‘inseparável da razão humana e..., mesmo depois que seu caráter ilusório foi exposto, não deixará de lográ-la e de atraí-la continuamente para aberrações momentâneas que sempre pedem outras correções’. (Arendt: 31). 
O capitalismo neoliberal globalizado é história econômica como aparências de semblância autênticas. O campo de sujeitos é morada da Terra do campo de poderes/saberes da história econômica desse capitalismo, que vê a história econômica como aparências de semblância econômica neoliberal autêntica. Portanto, o campo de sujeitos não vê a história do capitalismo como a realidade econômica determinada pela propriedade jurídica do capital fictício.
Só um platô fora da terra (o astronauta, ou melhor, gramática do astronauta) poderá ver o mundo invisível do capitalismo como história econômica determinada pela história jurídica do capital fictício. Então, a gramática do astronauta pode ser a <gramática imperiosa do ser>:
“àquilo que faz com que o mundo seja mundo, a uma gramática imperiosa do ser, a núcleos de sentido indecomponíveis, redes de propriedades inseparáveis”. (Merleau-Ponty: 107).
A gramática imperiosa do ser capitalista é aquela da luta pela dominação do planeta da história econômica do capitalismo subdesenvolvido, sob hegemonia do capital fictício, com a história econômica do capitalismo desenvolvido, industrial, cibernético.  Luta entre o capital fictício aliado da economia subdesenvolvida industrial tradicional cyber e o capital real desenvolvido, industrial, cibernético.    
 
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Podemos estar no começo de uma nova história?
“É preciso conservar a essência marxista da história e tratar como variáveis empíricas e confusas os fatos que parecem pô-la em questão ou, ao contrário, estamos num ponto de inflexão onde, sob a essência marxista da história, transparece uma essência mais autêntica e mais plena?
A estratégia neoliberal é se apresentar como a nova história no lugar do marxismo. Com o neoliberalismo, o velho marxismo entrou em crise no século XXI como interpretação da história econômica do capitalismo globalizado.
Nos países desenvolvidos, os intelectuais pararam de investigar o capitalismo e alguns falavam de sociedade pós-capitalista (Drucker: 3-24). Sobre o capitalismo, o último grande livro marxista foi o “Fim do capitalismo como o conhecemos”. (Altvater: 37-50).
A derrota do marxismo foi gramaticalizada em livros excepcionais como “Spectres de Marx” (Derrida: 21), “Da sedução”, com o fim do modelo teórico economia política (Baudrillard. 1991:43-45), e “Simulacres et simulation”, como o desparecimento do real em uma hiper-realidade, como fim da história capitalista. (Baudrillard. 1981: 69-71).
No Brasil, um marxismo infantil ignora a essência neoliberal da história do presente e continua falando a linguagem do velho marxismo. No entanto, surge neste país a gramática marxista do ser capitalista, ignorada pela esquerda, pois, ela significa um ponto de inflexão na história do marxismo das Américas.
Sobre a nova discussão sobre a história neoliberal, temos dois livros seminais: “Velocidade e política”, com seu conceito de <criminostat>  (Virilio: 57) e “Capitalismo criminoso” (Platt:19, 45, 101).
Os fenômenos supracitados constituem uma recriação do capitalismo subdesenvolvido em território dos Estados Unidos, que levou e sustenta Donald Trump no poder político americano.
Os Estados Unidos se tornam o país paradigmático da história econômica do capitalismo globalizado do século XXI. Na América, uma luta pela hegemonia é vivida pelo capitalismo globalizado, desenvolvido, industrial, cibernético com o capitalismo subdesenvolvido, da velha indústria, articulada pela técnica cibernética.  
A eleição americana 2020 obedece à luta das gramáticas da plurivocidade da história capitalista. Desde Obama, o capitalismo subdesenvolvido industrial ganha terreno sobre a vida americana em detrimento do capitalismo desenvolvido cibernético. Com Trump, o <capitalismo subdesenvolvido evangélico> se tornou uma força prática na política arrebatadora.
Na segunda metade de 2019, com a crise da história das essências neoliberais, a gramática imperiosa marxista da história fundou um novo campo marxista de saber, no Rio de Janeiro:
‘A gramática historial é a junção de economia, campo de poderes/saberes e campo de sujeitos.
No capitalismo, há uma plurivocidade de gramática econômica no domínio da gramática historial. Tenho explorado empiricamente esta plurivocidade. Cada gramática econômica possui um campo de poderes e campo de sujeitos”. (Bandeira da Silveira. 2019a: 49).
As gramáticas do capitalismo têm duas linhas de força gramaticais principais: desenvolvimento, industrial cibernético e subdesenvolvimento industrial tradicional, cyber. Como já tenho afirmado, o subdesenvolvimento (com seu apocalipse ambiental) aparece como uma força prática historial que vai estendendo seu domínio sobre o planeta.
A transformação da realidade econômica e da sociedade é profunda:
“A sociedade de classes do capitalismo subdesenvolvido dependente cyber passa por uma transformação profundamente radical, pois, há Spaltung, ou seja, quebra de mundo pelo rompimento com os laços que ligam o subdesenvolvimento à civilização ocidental”. (Bandeira ad Silveira. 2019b: 135).
Dando um passo adiante. O subdesenvolvimento industrial cyber descontrói a ideia de Ocidente e a própria história ocidental. A Ásia oriental se tornou o território geoeconômico por onde passa o futuro do capitalismo globalizado cibernético, industrial, desenvolvido:
“Na terceira década do século XXI, a China continuará a exportação do capital chinês como comércio de mercadorias. Trata-se de uma etapa do neocolonialismo chinês superficial que antecipa a internacionalização neomercantilista profunda do capital cyber chinês no espaço econômico da internet das coisas. Há um sistema neomercantilista de Estados fortes na sociedade industrial asiática cyber que se expandirá na primeira metade do século XXI”. (Bandeira da Silveira. 2019a: 87).
O impacto da história neoliberal sobre a sociedade capitalista poderá definir o rumo do capitalismo globalizado na Ásia Orienta?
“A vitória do capital sobre o trabalho aparece como uma catástrofe para a sociedade capitalista, pois, ela sofre uma involução em termos de sociedade de direitos da modernidade. A era dos direitos é substituída pela era do não direito: a precarização da vida em sociedade na falta do discurso do direito moderno articulatório, direito com laço social capitalista moderno civilizatório.
O capitalismo globalizado neoliberal aprofunda a insegurança socioeconômica com a expansão do emprego informal. A sociedade salarial não é mais o palco da luta de classes por direitos trabalhistas. A proletarização neoliberal forçada faz da sociedade do trabalho um espaço de precariedade econômico-existencial absoluta”. (Bandeira da Silveira. 2019b: 182).
Trata-se da vitória do capitalismo como modelo de desenvolvimento do capitalismo subdesenvolvido industrial. Enfim, a sociedade capitalista industrial cibernética asiática será arrastada para o domínio do subdesenvolvimento, e não será erguida nela a <civilização capitalista cibernética> do século XXI?      

ARENDT, Hannah. A vida do espírito. O pensar, o querer, o julgar. RJ: UFRJ/Relume Dumará, 1992
ALTVATER, Elmar. O fim do capitalismo como o conhecemos. RJ: Civilização Brasileira, 2010
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramáticas do capitalismo. Lisboa: Chiado Books, 2019ª
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje. Lisboa: Chiado Books, 2019b
BAUDRILLARD, Jean. Da sedução. Campinas: Papirus, 1991
Baudrillard, Jean. Simulacres et simulation. Paris: Galilée, 1981     
DERRIDA, Jacques. Spectres de Marx. Paris: Galilée, 1993
DRUCKER, Peter. Sociedade pós-capitalista. SP: Pioneira, 1993
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 18. De um discurso que não fosse semblante. RJ: Zahar, 2009
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 19. ... ou pior. RJ: Zahar,2012
MARX. O capital. Livro 3, v. 5. SP: Difel, 1985
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. SP: Perspectiva, 1971
PLATT, Stephen. Capitalismo criminoso. SP: Cultrix, 2017
ROSA LUXEMBURGO. A acumulação do capital. RJ: Zahar Editores, 1970
VIRILIO, Paul. Velocidade e política. SP: Estação Liberdade, 1996
       
      

  
      
    

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

ESTADO ARTIFICIAL E ESTADO NATURAL


José Paulo

Com Freud, há a distinção inefável entre Estado artificial e Estado natural. À primeira vista, a ideia de Estado natural aparece sem se vincular a uma experiencia humana específica. Trata-se então de pensar a diferença entre os dois conceitos de Estado e falar de um certo <poder territorial animal> que permite a ancoragem do Estado natural na história da cidade.

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.Em Freud, o Estado animal se refere a abelhas, formigas e térmitas que não fazem parte da luta cultural entre Eros e Tanatos pela vida:
“Por que nossos parentes, os animais, não apresentam uma luta cultural desse tipo? Não sabemos. Provavelmente, alguns deles – as abelhas, as formigas, as térmitas – batalharam durante milhares de anos antes de chegarem às instituições estatais, à distribuição de funções e às restrições ao indivíduo pelas quais hoje admiramos. Constitui um sinal de nossa condição atual o fato de sabermos, por nossos próprios sentimentos, que não nos sentiríamos felizes em quaisquer desses Estados animais ou em qualquer dos papéis neles atribuídos ao indivíduo”. (Freud. v. 21: 146).
Na sociedade humana, o poder territorial animal vai além do poder territorial animal do grande felino que cuida de seu território para que ele não seja invadido por outros grandes predadores. Na sociedade humana, o poder animal encontra-se vinculado à lógica freudiana na qual o <homo homini lupus> aparece como uma frase de uma gramática da sociedade freudiana:
“O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; ao contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para ele, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, tortura-lo e mata-lo. <Homo homoni lupus>. Quem, em face de toda a sua experiencia da vida e da história, terá coragem de discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas brandas. Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a consideração para com a sua própria espécie é algo estranho. Quem quer que relembre as atrocidades cometidas durante as migrações raciais ou as invasões dos hunos, ou pelos povos conhecidos como mongóis sob chefia de Gengis Khan e Termelão, ou na captura de Jerusalém pelos piedosos cruzados, ou mesmo, na verdade, os horrores da recente guerra mundial, quem quer que relembre tais coisas terá de se curvar humildemente ante a verdade dessa opinião”. (Freud. v. 21: 133).
Como uma profecia racional, Freud fala da substituição do Estado artificial pelo Estado natural?   
O campo do poder territorial animal tem como credo gramatical de sua linguagem o <Credo quia absurdum> da linguagem cristã? Ou é o avesso do <Credo quia absurdum>?
Freud diz:
“Acho que agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo: ‘É precisamente porque teu próximo não é digno de amor, ao contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo’. Compreendo então que se trata de um caso semelhante ao credo do <Credo quia absurdum>”. (Freud. v. 21: 132).  
Freud e Hobbes falam de uma sociedade articulada pela frase <homo homoni lupus> da gramática de uma sociedade. Hobbes diz:
“Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens”. (Hobbes:79).
E Hobbes prossegue:
“Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é <homo homini lupus>, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção”. (Hobbes: 80). 
O campo do poder territorial animal é aquele das máquinas de guerra milicianas da sociedade do <homo homoni lúpus>?
Hobbes:
“Outra consequência da mesma condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o <meu> e o <teu>.; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas, enquanto for capaz de conservá-lo. É pois esta miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza. “(Hobbes: 81).
Máquina de guerra miliciana no lugar de homem significa que só pertence a cada homem da comunidade criminosa aquilo que a máquina é capaz de conseguir para ele, e, apenas, enquanto for capaz de conservá-lo na luta contra outras máquinas de guerra, que pode ser a máquina policial-judicial do Estado legal.
A linguagem do poder animal é o <esforço> da máquina de guerra:
“Este esforço, quando vai em direção de algo que o causa, chama-se <apetite> ou <desejo>, sendo o segundo o nome mais geral, e o primeiro frequentemente limitado a significar o desejo de alimento, nomeadamente a <fome> e a <sede>. Quando o esforço vai no sentido de evitar alguma coisa chama-se geralmente <aversão>. As palavras <apetite> e <aversão> vêm do latim, e ambas designam movimentos, um de aproximação e o outro de afastamento”. (Hobbes: 36).
O esforço de aproximação estabelece vínculos animais entre os homens, mulheres e crianças sob direção de uma máquina de guerra; o esforço de aversão define o inimigo em um movimento agônico.
A linguagem do campo de poderes territorial animal é àquele dos corpos e movimentos da máquina de guerra. Não há palavras neste fenômeno; não há metáfora nessa linguagem de corpos e movimentos animais:
“Pois, as Escolas não encontram no simples apetite de mexer ou mover-se qualquer espécie de movimento real mas, como são obrigados a reconhecer alguma espécie de movimento, chamam-lhe movimento metafórico; o que não passa de uma definição absurda, porque só as palavras podem ser chamadas metafóricas, não os corpos e os movimentos”. (Hobbes: 36).
O funcionamento do campo dos indivíduos/sujeitos do poder territorial animal obedece a uma linguagem de aparências de semblância. (Arendt:30-33):
“Mas a aparência ou sensação desse movimento é o que se chama <deleite>, ou, então, <perturbação do espírito>. (Hobbes:38).
No campo de poderes territorial animal sob comando da máquina de guerra, os indivíduos/sujeitos se definem em vivenciar a aparência de semblância de bem ou de mal, como prazer e desprazer:
“Portanto o <prazer> (ou <deleite>) é a aparência ou sensação do bem, e <desprazer> ou <desagrado> é a aparência ou sensação do mal. Consequentemente, todo apetite, desejo e amor é acompanhado por um deleite maior ou menor, e todo ódio e aversão por um desprazer e ofensa maior ou menor”. (Hobbes:38).
Não há lugar para metáfora no funcionamento campo dos sujeitos. Dor, tristeza, esperança, desespero, medo não são fenômenos-objeto de uma poética.:
“De maneira semelhante, alguns dos desprazeres reside na sensação, e chama-se-lhes <dor>; outros residem na expectativa de consequências, e chama-se-lhes <tristeza>”. (Hobbes: 38).
Uma política poética dos sujeitos no campo do poder animal aparece como subversão do campo. Por isso, ela é malvista pela máquina de guerra. A linguagem metafórica existe em um antagonismo com o poder animal.
Hobbes diz:
O apetite, ligado à crença de conseguir, chama-se esperança.
O mesmo, sem essa crença, chama-se desespero. (Hobbes: 38).
No campo dos sujeitos de uma sociedade em ascensão: “O futuro é o que tememos ou o que esperamos; em termos de intenção humana, que recusa o fracasso, o futuro é aquilo que é esperado. A função e o conteúdo da esperança são constantemente experimentados e em todas as sociedades em ascensão eles foram implementados e desenvolvidos”. (Bloch: 10).
Nas sociedades em ascensão, a esperança funciona como utopia: “le concept de príncipe utopique pris dans le bon sens du terme, celui de l’espérance et de ses contenus dignes de l’homme, occupe ici une position centrale”. (Bloch: 14).
 
No campo dos sujeitos do poder animal, a esperança é o desejo ligado à crença de conseguir se adaptar à situação do subdesenvolvimento. Recusar o fracasso é conseguir se adaptar à realidade do subdesenvolvimento. A ideia de futuro como aquilo que é esperado é uma forma de conciliação do sujeito com a realidade do subdesenvolvimento.
Os mass media jogam um papel fundamental na relação do poder animal com o campo dos sujeitos. Os mass media são parte do campo dos poderes animais territoriais, pois, eles funcionam como um discurso que concilia o sujeito com a realidade do subdesenvolvimento. Os mass media bloqueiam a transformação da esperança em um projeto utópico de desenvolvimento capitalista no sentido de uma sociedade capitalista, industrial, desenvolvida, cibernética.
Quanto ao desespero: “Le désespoir est lui-même, tant dans l'expérience du fait qu'à la longue, l'état le plus intolérable qui soit, il est absolument insupportable aux besoins humains. (Bloch: 11).
O desespero é o real impossível de ser suportado. No campo dos sujeitos do poder em tela, o real do subdesenvolvimento invade a existência como precariedade absoluta. O próprio Estado artificial subdesenvolvido faz pendant com o estado de precariedade do trabalho e da vida, regulado pelo Estado natural subdesenvolvido.
   
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  O poder territorial animal do homem tem uma ancoragem na realidade econômica da cidade. No Brasil, ele se desenvolve, especialmente, em cidades da província (estado) do Rio de Janeiro, em especial, na capital. Tal poder animal está se espalhando por todo o território nacional., como veremos adiante.
Qual é a anatomia desse poder animal.? Grupos do aparelho repressivo de Estado em junção com a economia criminosa é o fator de desenvolvimento do campo do poder animal.  Como fonte de “legitimação” desse poder, temos a esperança de ascensão social em massa das classes baixas para uma classe média criminosa urbana, a partir do desenvolvimento da economia miliciana do subdesenvolvimento.  
A economia miliciana é um fenômeno do subdesenvolvimento capitalista brasileiro. Este aspecto econômico explica a expansão da economia miliciana por quase todo o território nacional. Tal realidade produz efeitos na economia em geral, política, e no mundo da vida.
A política governamental e parlamentar passam a ser dirigidas por um partido político criminoso do <criminostat> (Virilio: 55). O capitalismo criminoso (Platt: 19, 45, 101) assume a “hegemonia” no espaço econômico nacional. O Estado artificial legal vai sendo substituído por um Estado natural SUBDESENVOLVIDO como Estado despótico neoliberal (Bandeira da Silveira:103-110) como expressão do capitalismo criminoso, do criminostat  e do campo de poderes animais.

CRÔNICA GRAMATICAL
No Brasil, a anatomia do poder apresenta certos fenômenos mórbidos como aquele do <poder territorial animal>.
O grande mamífero predador se define por fabricar o poder territorial animal. Em um território que ele considera de sua propriedade natural, ele vive para expulsar aqueles animais que representam uma ameaça ao seu poder territorial.
NO Brasil, o poder territorial animal ganhou um imenso impulso com a economia miliciana, no Rio, e se espalhando por todo o território nacional. O poder territorial animal é um poder urbano cujo motor é a economia ilegal: economia criminosa.
A expansão do poder territorial animal retira do Estado o poder político sobre a cidade. E faz da cidade um território econômico criminoso no qual a economia capitalista perde seus mercados legais. Assim, o poder territorial animal faz parelha e se torna alavanca para o <capitalismo criminoso>.
Chefe do Estado de polícia, o governador do Rio se mostra incapaz de combater o poder animal para retomar o controle do território pelo Estado. Em outros estados, o fenômeno em tela se reproduz em uma escala devastadora. Assim, o poder animal solapa na realidade do território o poder nacional constitucional: local e nacional. E ergue um Estado natural no lugar do Estado artificial.
Em relação ao poder animal incrustado na realidade material da cidade, o poder de Estado aparece como abstração inoperante, obsoleta, para combater a expansão do poder animal. Aí, algo que já não é uma cidade toma o lugar da polis.
Por que uma realidade possuída por uma violência macabra da força física não é percebida pela sociedade nacional e da polis?
A percepção da realidade foi expropriada pelos mass media da sociedade de comunicação de massa, como sociedade do espetáculo. Especialmente, a televisão faz da violência macabra do poder animal o filé mignon de sua programação jornalística, espetáculo emocional e sentimental, sem nomeá-lo ou interpretá-lo. Ela naturaliza o poder animal para as massas como um fenômeno da segunda natureza da cidade que já não é uma <civitas>.
Se o poder animal tem como aliado o poder nacional governamental e parlamentar, (e a indiferença oportunista do STF) então, o destino do Brasil é a fabricação de um poder nacional territorial animal que substituirá, naturalmente, o Estado nacional constitucional 1988.
Falando de território, sem água potável, a <civitas> se desfaz!

ARENDT, Hannah. A vida do espírito. O pensar, o querer, o julgar. RJ: UFRJ/Relume Dumará, 1992
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje. Lisboa: Chiado Books, 2019
BLOCH, Ernest. Le príncipe esperance. Paris: Gallimard, 1959
FREUD. OBRAS Completas. V. 21. RJ: Imago: 1974
HOBBES. Leviatã. Os Pensadores. SP: Abril Cultural, 1974
PLATT, Stephen. Capitalismo criminoso. SP: Cultrix, 2017
VIRILIO, Paul. Vitesse et politique. Paris: Galilée, 1977