segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

MODELO POLÍTICO MAFIOSO brasileiro


José Paulo



O PCC (“Primeiro Comando da Capital” é considerado, pelos especialistas em máfia, como uma organização criminoso privada mafiosa. A milícia é considerada uma organização criminosa público/privada. O narcotráfico uma organização criminosa privada.
Neste texto, penso, no Brasil, um <modelo político mafioso> público/privado que passa a dominar a política no lugar do modelo político oligárquico público/privado. E vou além do Brasil, ao mostrar os vínculos gramaticais do modelo político mafioso com o capitalismo subdesenvolvido da atualidade. 
A máfia surge em uma região da Itália, a Sicília centro-ocidental (Lupo: 67). O contexto histórico do surgimento do fenômeno faz pendant com o aparecimento pela primeira vez de uma ideia moderna de Estado (Lupo: 64). A estatização do campo de poderes social e político moderno é parte da formação da unidade política italiana.
No Sul, determinados grupos sociais exercem sobre a população uma função de ordem e controle que é parte da fundação de um <campo de poderes social> mafioso:
“O arrendatário desempenha uma função de ordem e de controle social que vai além dos âmbitos da grande propriedade de cultura extensiva: o seu aparato de campeiros e supervisores substitui as milícias feudais setecentista, acompanha as milícias comunais oitocentistas, cobre os espaços deixados vazio pelo controle primeiro do Estado borbônico e depois liberal”. (Lupo: 67).
O campo de poderes social mafioso surge no vazio da estatização do campo de poderes social e político:
“Já Emilio Sereni, há muitos anos, via a Máfia não tanto como resíduo feudal quanto como instrumento de uma burguesia ‘abortada’, justamente a dos rendeiros, que no curso da longa desagregação da economia e dos poderes feudais desenvolve uma capacidade de intimidação que é exercida tanto para cima como para baixo na hierarquia social. Enquanto se desagregam os patrimônios da velha aristocracia, as frações da comunidade local tentam interceptar os fluxos dessa riqueza, definindo até com violência, voltada para dentro ou para fora, a concorrência para o aluguel ou a aquisição de terrenos. Das comunas, por meio de impostos, os novos grupos dirigentes voltam a influenciar âmbitos geográficos mais amplos. Trata-se de um elemento que encontra suas características típicas na Sicília centro-ocidental”. (Lupo: 6            7).  
O campo de poderes social mafioso nasce em junção com uma economia mafiosa.
A versão de um campo de poderes social mafioso surge na cidade do Rio de Janeiro na segunda década do século XXI. No Brasil, a ciência social não detém recursos intelectuais para desenvolver a percepção e a reflexão sobre o fenômeno em tela. ou não quer. Neste ensaio, anúncio, apenas, o abc do fenômeno mafioso carioca.
Qual o contexto histórico do surgimento do fenômeno mafioso carioca? Ao contrário da Sicília, não é o surgimento da ideia de Estado moderno ou estatização do campo de poderes social e político.
No Rio, a desintegração da estatização do campo de poderes local fornece o contexto para o surgimento da máfia carioca que vem ocupar o vazio deixado pelo fenômeno supracitado. O narcotráfico é o pretexto para a constituição do campo de poderes mafioso das <mil repúblicas do crime>.
O campo de poderes mafioso se faz e refaz a partir da lógica do <poder territorial animal>. Poder que exerce a função de ordem e controle social da população que habita o campo de poderes mafioso.
Como na Sicília, o campo de poderes mafioso ancora em uma economia conhecida como miliciana. Tal fenômeno é produção de uma nova sociedade, pois, é preciso sublinhar o surgimento de uma classe média que nasce como efeito da economia do campo de poderes mafioso. Trata-se de uma classe média provida de uma moralidade criminosa, que não é parte da estatização do campo de poderes local da ordem jurídica da Constituição 1988.
O campo de poderes mafioso tem como alavanca a história neoliberal nacional do governo Michel Temer e do parlamento que derruba a presidente Dilma Rousseff em 2016. Em 2013, um movimento de massas carioca denunciou a desagregação do Estado local e foi duramente combatido pelo governo de Sérgio Cabral, que se constitui em uma organização criminosa política. É o início da desestatização do campo de poderes social e político local. O MDB noir é o partido político que prepara o surgimento do campo de poderes mafioso pelo alto.
A história do campo de poderes mafioso carioca ainda precisa ser escrita. Todavia, a soberania popular 2018 foi um motor que pôs o campo de poderes mafioso local nas estruturas do Estado nacional, com a vitória do outrora capitão do Exército e deputado federal Jair Messias Bolsonaro e de uma força prática parlamentar mafio-neoliberal. Aí começa a aceleração da desestatização do campo de poderes legal 1988 e, pari passu, a privatização neoliberal desse campo por um campo de poderes mafioso.    
Há que se pensar, acuradamente,  a hegemonia do modelo político mafioso no lugar do modelo político oligárquico a partir da produção da política brasileira pela soberania popular 2018. 
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A desagregação da estatização 1988 do campo de poderes social e político tem como motor a trânsfuga en masse de membros do aparelho de segurança pública (aparelho do Estado de polícia) para o campo de poderes mafioso, vulgarmente, e erradamente, conhecido como miliciano. Assim, o campo de poderes das mil repúblicas do crime inscreve no aparelho repressivo de Estado uma lógica que subverte o funcionamento essencial dele.
O que é o <aparelho repressivo de Estado>?
O aparelho repressivo de Estado significa: “Repressivo indica que o aparelho de Estado em questão ‘funciona através da violência’ – ao menos em situações limites (pois a repressão administrativa, por exemplo, pode revestir-se de formas não físicas”. (Althusser:82). Em Marx, o Estado é uma unidade política de poder de Estado e aparelho de Estado. (Balibar: 94).
Poulantzas esclarece bem o tema do Estado no marxismo francês:
“Toda forma estatal, mesmo a mais sanguinária, edificou-se sempre como organização jurídica, representou-se no direito e funcionou sob forma jurídica: sabe-se muito bem que assim foi com Stálin e sua Constituição 1937, reputada como a ‘mais democrática do mundo”. Portanto nada mais falso que uma presumível oposição entre arbítrio, os abusos, a boa vontade do príncipe e o reino da lei”> (Poulantzas: 83)
Desconstruído a ideologia jurídico-legalista do Estado, Poulantzas acrescenta:
“A lei é parte integrante da ordem repressiva e da organização da violência exercida por todo o Estado. O Estado edita a regra, pronuncia a lei, e por aí instaura um primeiro campo de injunções, de interditos, de censura, assim criando o terreno para a aplicação e o objeto da violência. E mais, a lei organiza as leis de funcionamento da repressão física, designa e gradua as modalidades, enquadra os dispositivos que a exercem. A lei é, assim, o código da violência pública organizada”. (Poulantzas: 84).  
Uma lista de citações nos porá na linha de argumentação gramatical sobre o Estado na terceira década do século XXI:
“A monopolização pelo Estado da violência legítima permanece o elemento dominante do poder, mesmo quando essa violência não é exercida direta e abertamente”. (Poulantzas: 89).
Em algum momento da história do Estado capitalista, o monopólio legitimo da violência real deixou de se determinante na realidade desse Estado:
“Todas as organizações têm perfis políticos, mas apenas no caso de Estados é que envolve a consolidação de um poder militar em associação ao controle dos meios de violência dentro de uma extensão territorial. Um Estado pode ser definido como uma organização política cujo domínio é territorialmente organizado e capaz de acionar os meios de violência para sustentar esse domínio. Tal definição é próxima daquela de Weber, mas não destaca uma reivindicação ao monopólio dos meios de violência ou fator de legitimidade”. (Giddens: 45).
Na sociologia londrina, o Estado passa a ser uma força prática utópica que busca o monopólio da violência real legitima ao lado de um Estado que não busca a legitimidade, no seu agir, nem pretende deter o monopólio da violência, legal ou ilegalmente. Assim se desintegra a ideia de Estado moderno na história do Estado que vai deixar de se definir como Estado de direito capitalista.
Prosseguindo:
“Essa monopolização está na base das novas de lutas sob o capitalismo, às quais corresponde o papel dos dispositivos de organização do consentimento, pois poder e lutas se atraem e se condicionam mutuamente. A concentração da força armada pelo Estado, o desarmamento e a desmilitarização dos setores privados – condição para estabelecimento da exploração capitalista – contribuem para deslocar a luta de classes, de uma guerra civil permanente de conflitos armados periódicos e regulares, para as novas formas de organização política e sindical das massas populares, contra as quais a violência física aberta é, sabe-se, de eficiência relativa”. (Poulantzas:89-90).
O modelo político mafioso se instala com o desaparecimento da sociedade classes e da luta de classes, entre nós. Outras lutas de um campo de poderes mafioso toma o lugar da luta de classes, e confrontam o Estado moderno, como as lutas do cristão político, da classe média mafiosa, da imprensa e mass media mafiosos, que vem a transformar a natureza do Estado nacional em um Estado do capitalismo subdesenvolvido com indústria rural e sem sociedade industrial urbana.  
Sigo:
“Um povo ‘privado’ da força ‘pública” já é um povo que não vive mais o domínio político sob a forma de fatalidade natural e sagrada, um povo para o qual o monopólio da violência pelo Estado só é legítimo na medida em que a regulamentação jurídica e a legalidade lhe permite esperar, e mesmo permite formalmente e em princípio, o acesso ao poder. Enfim, o Estado concentra a violência em seus corpos especializados, enquanto ela cada vez é insuficiente para a reprodução do domínio. Às guerras privadas e aos conflitos armados sob forma de teodiceias repetitivas – incansavelmente colocadas na ordem do dia, catarse da fatalidade do poder, guerras pacificadas pela concentração da força armada no Estado – sucede a permanente contestação política do poder, consequência da monopolização da força física pelo Estado”. (Poulantzas:90).   
O modelo político mafioso pelo alto foi importado da história carioca do neoliberalismo, sendo neoliberalismo a porta de entrada para o capitalismo subdesenvolvido de hoje na América Latina.
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O <capitalismo criminoso> (Platt:19, 45, 101) e o <criminostat> (Virilo: 57) são formas do desenvolvimento do subdesenvolvimento nas Américas, ao menos. Ambos transformam o campo de poderes mafioso, no Brasil, em um fenômeno nacional, pois, temos governo central, parlamento, poder judicial, Forças Armadas, Estado de segurança pública, Estado de polícia, mass media como poderes/saberes sob uma articulatória direta ou indireta do campo de poderes das mil repúblicas mafiosas. 
A classe média mafiosa é um fenômeno da história italiana do século XIX:
“Nessa situação, o controle agrícola da hintelândia urbana vem representar um veículo importante de promoção social, em particular para os mafiosos que se interessam pela vigilância, pelo arrendamento, pela mediação comercial. Já foi visto o caso Giammona. Os já lembrados irmãos Amoroso são definidos com certo exagero como ‘pessoas de bem, filhos de proprietários”; os Licatas são chamados de ‘abastados’. Em todos eles podemos identificar facilmente os ‘facínoras da classe média” aos quais se refere Franchetti para representar o modelo típico do chefe mafioso”. (Lupo; 133).

No Brasil, ela é constituída por um movimento econômico de ascensão de massas das classes baixas, que vivem do lado de fora da ordem constitucional 1988.
A classe média em tela é um caminho de ascensão social de massas das classes baixas, que deixaram de acreditar no capitalismo legal e na política social do Estado 1988 como formas de ascensão social. Nos governos do PT, a ascensão social legal das massas da classes baixas aparece como uma força prática regulada pelo princípio esperança lulista. Tal fenômeno foi destruído pelo modelo político mafioso. 
O desenvolvimento do subdesenvolvimento sem indústria urbana desfaz o vínculo da classe média emergente com a ordem do capitalismo legal 1988. Esta classe média mafiosa é a revolta contra o fracasso da ordem capitalista legal 1988. O caso do capitão Adriano é luminar. Policial estadual, ele é expulso do aparelho repressivo e se torna um homem do campo de poderes mafioso, e aí se tornar o condottiere do aparelho de matadores de aluguel conhecido como “Escritório do Crime”. Perseguido pela polícia do Rio, se refugia na Bahia e se apresenta como um comprador de terras. Uma operação da polícia baiana o mata em uma situação pouco clara. O presidente da República e o senador Flávio Bolsonaro cobram explicações do governador petista da Bahia, que diz que não é responsável pela ação policial. Assim, a ordem fática do novo coronelismo urbano noir de esquerda mostra sua face para todo o país.
O caso da morte do capitão Adriano mostra para o Brasil que não existe mais ordem legal, entre nós. O campo de poderes mafioso carioca assassinou a vereadora de esquerda e LGBT Marielle Franco. Depois de mais de um ano a polícia do Rio não consegue descobrir quem foi o mandante desse crime político macabro.    
O discurso mafioso dos mass media se esforçam para ocultar ou enterrar a percepção sensível da realidade do subdesenvolvimento e de seu modelo político mafioso contra todas as evidências e fatos da existência dessa história econômica do subdesenvolvimento e sua superestrutura mafiosa.
O Rio deixou de  ser uma <civitas>, pois, existe agora como um vasto campo territorial de guerras privadas moleculares do subdesenvolvimento capitalista. O modelo político mafioso é a forma política que vai se nacionalizando como consequência do aprofundamento do capitalismo subdesenvolvido com indústria rural de commodities, mas sem sociedade industrial urbana.  
A classe média mafiosa se submete, inclusive economicamente, à ordem fática do campo de poderes mafioso. E só, depois, se integra em baixíssima intensidade à ordem constitucional 1988.  
O campo de poderes social mafioso se inscreve na política:
“Como se verá, tanto o general como o chefe de polícia têm algo a ser perdoado, dando assim a sua contribuição para um escândalo ‘demasiado amplo e indefinido’ que, observam preocupados Pelloux e Sonnino, põe em discussão o próprio equilíbrio político. No palco de Milão, os atores recitam um texto tão subversivo que leva o comando militar local a proibir os oficiais de frequentar as sessões do processo; mas para todos, presentes e ausentes, os enviados especiais restituem o quadro dos advogados que acusam as instituições de cumplicidade, políticos e policiais que se acusam reciprocamente, para a vergonha dos bem-pensantes e a alegria dos subversivos. Os primeiros devem admitir a presença de ‘um veneno misterioso, sutil...floresce sob a capa da Máfia a força da política, sob a capa da política a força da Máfia; os segundos podem constatar a miséria do Estado que pretende julgá-los”.  (Lupo:159).
O campo de poderes mafioso brasileiro pelo alto significa que o Estado constitucional 1988 não tem mais forças para enfrentá-lo. Assistimos uma adaptação darwinista dos membros dos poderes constitucionais à ordem fática do funcionamento do campo de poderes político mafioso nacional. A fórmula de Bolsonaro “mais Brasil, menos Brasília, significa, de fato, mais Rio. menos Brasil.
Acabo com uma citação que arremata a hipótese desse ensaio da diferença entre o subdesenvolvimento de outrora e o subdesenvolvimento de hoje
“O Estado aparece como o suplemento necessário ao desenvolvimento capitalista (ou do subdesenvolvimento na periferia capitalista). O Estado é uma instituição pública, ou melhor um centro de poderes voltado para a solução de conflitos e para manter a ordem capitalista. Trata-se de uma instituição especial que usa o monopólio da força real necessária para a manutenção do conjunto de relações de propriedade. O Estado deveria exercer a soberania sobre todos os que estão sob sua jurisdição. Ele é identificado como avalista de um determinado conjunto de relações de propriedade. O monopólio do poder de Estado é dominante.
No capitalismo subdesenvolvido pós-moderno, o Estado deixa de deter o monopólio da força real sobre a população e o território”. (Bandeira da Silveira: 39).
O modelo político mafioso brasileiro é a formação da política no capitalismo subdesenvolvido sem sociedade industrial urbana.

ALTHUSSER, Louis. Positions. Idéologie et appareils idéologique d’Etat. Paris: Editions Sociales, 1976
BALIBAR, Ètienne. Cinq études du matérialisme historique. Paris: Maspero, 1974
Bandeira da Silveira, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje. Lisboa: Chiado Books, 2019.
GIDDENS, Anthony. O Estado-Nação e a violência. SP: EDUSP, 2001
LUPO, Salvatore. História da máfia. Das origens aos nossos dias. SP: UNESP, 2002
PLATT, Stephen. Capitalismo criminoso. SP: Cultrix, 2017
POULANTZAS, Nicos. L’État, le pouvoir, le socialisme. Paris: PUF, 1978
VIRILO, Paul. Velocidade e política. SP: Estação Liberdade, 1996





   
  
       
 
 
  
   


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