José Paulo
Com Freud, há a distinção inefável entre Estado artificial e
Estado natural. À primeira vista, a ideia de Estado natural aparece sem se
vincular a uma experiencia humana específica. Trata-se então de pensar a
diferença entre os dois conceitos de Estado e falar de um certo <poder territorial animal> que permite a ancoragem do Estado
natural na história da cidade.
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.Em Freud, o Estado animal se refere a abelhas, formigas e
térmitas que não fazem parte da luta cultural entre Eros e Tanatos pela vida:
“Por que nossos parentes, os animais, não apresentam uma luta
cultural desse tipo? Não sabemos. Provavelmente, alguns deles – as abelhas, as
formigas, as térmitas – batalharam durante milhares de anos antes de chegarem
às instituições estatais, à distribuição de funções e às restrições ao
indivíduo pelas quais hoje admiramos. Constitui um sinal de nossa condição atual
o fato de sabermos, por nossos próprios sentimentos, que não nos sentiríamos
felizes em quaisquer desses Estados animais ou em qualquer dos papéis neles
atribuídos ao indivíduo”. (Freud. v. 21: 146).
Na sociedade humana, o poder territorial animal vai além do
poder territorial animal do grande felino que cuida de seu território para que
ele não seja invadido por outros grandes predadores. Na sociedade humana, o
poder animal encontra-se vinculado à lógica freudiana na qual o <homo homini lupus>
aparece como uma frase de uma gramática da sociedade freudiana:
“O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as
pessoas estão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis
que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; ao
contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta
uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para
ele, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém
que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua
capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu
consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento,
tortura-lo e mata-lo. <Homo homoni lupus>. Quem, em face de toda a sua experiencia da vida e da
história, terá coragem de discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel
agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum
outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas
brandas. Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais
contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se
manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a
consideração para com a sua própria espécie é algo estranho. Quem quer que
relembre as atrocidades cometidas durante as migrações raciais ou as invasões
dos hunos, ou pelos povos conhecidos como mongóis sob chefia de Gengis Khan e
Termelão, ou na captura de Jerusalém pelos piedosos cruzados, ou mesmo, na
verdade, os horrores da recente guerra mundial, quem quer que relembre tais
coisas terá de se curvar humildemente ante a verdade dessa opinião”. (Freud. v.
21: 133).
Como uma profecia racional, Freud fala da substituição do Estado
artificial pelo Estado natural?
O campo do poder territorial animal tem como credo gramatical
de sua linguagem o <Credo quia absurdum> da linguagem cristã? Ou é o avesso do <Credo quia absurdum>?
Freud diz:
“Acho que agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo: ‘É
precisamente porque teu próximo não é digno de amor, ao contrário, é teu
inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo’. Compreendo então que se trata de um
caso semelhante ao credo do <Credo quia absurdum>”. (Freud. v. 21: 132).
Freud e Hobbes falam de uma sociedade articulada pela frase <homo homoni lupus>
da gramática de uma sociedade. Hobbes diz:
“Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os
homens vivem sem poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se
encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos
os homens contra todos os homens”. (Hobbes:79).
E Hobbes prossegue:
“Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra,
em que todo homem é <homo homini lupus>, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os
homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua
própria força e sua própria invenção”. (Hobbes: 80).
O campo do poder territorial animal é aquele das máquinas de
guerra milicianas da sociedade do <homo homoni lúpus>?
Hobbes:
“Outra consequência da mesma condição é que não há
propriedade, nem domínio, nem distinção entre o <meu> e o <teu>.; só pertence a cada homem aquilo
que ele é capaz de conseguir, e apenas, enquanto for capaz de conservá-lo. É
pois esta miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da
simples natureza. “(Hobbes: 81).
Máquina de guerra miliciana no lugar de homem significa que
só pertence a cada homem da comunidade criminosa aquilo que a máquina é capaz
de conseguir para ele, e, apenas, enquanto for capaz de conservá-lo na luta
contra outras máquinas de guerra, que pode ser a máquina policial-judicial do
Estado legal.
A linguagem do poder animal é o <esforço> da máquina de guerra:
“Este esforço, quando vai em direção de algo que o causa,
chama-se <apetite> ou <desejo>, sendo o segundo o nome mais geral,
e o primeiro frequentemente limitado a significar o desejo de alimento,
nomeadamente a <fome> e a <sede>. Quando o esforço vai no sentido de
evitar alguma coisa chama-se geralmente <aversão>. As palavras <apetite> e <aversão> vêm do latim, e ambas designam
movimentos, um de aproximação e o outro de afastamento”. (Hobbes: 36).
O esforço de aproximação estabelece vínculos animais entre os
homens, mulheres e crianças sob direção de uma máquina de guerra; o esforço de
aversão define o inimigo em um movimento agônico.
A linguagem do campo de poderes territorial animal é àquele
dos corpos e movimentos da máquina de guerra. Não há palavras neste fenômeno;
não há metáfora nessa linguagem de corpos e movimentos animais:
“Pois, as Escolas não encontram no simples apetite de mexer
ou mover-se qualquer espécie de movimento real mas, como são obrigados a
reconhecer alguma espécie de movimento, chamam-lhe movimento metafórico; o que
não passa de uma definição absurda, porque só as palavras podem ser chamadas
metafóricas, não os corpos e os movimentos”. (Hobbes: 36).
O funcionamento do campo dos indivíduos/sujeitos do poder
territorial animal obedece a uma linguagem de aparências de semblância. (Arendt:30-33):
“Mas a aparência ou sensação desse movimento é o que se chama
<deleite>, ou, então, <perturbação do espírito>. (Hobbes:38).
No campo de poderes territorial animal sob comando da máquina
de guerra, os indivíduos/sujeitos se definem em vivenciar a aparência de
semblância de bem ou de mal, como prazer e desprazer:
“Portanto o <prazer> (ou <deleite>) é a aparência ou sensação do bem, e
<desprazer> ou <desagrado> é a aparência ou sensação do mal. Consequentemente, todo
apetite, desejo e amor é acompanhado por um deleite maior ou menor, e todo ódio
e aversão por um desprazer e ofensa maior ou menor”. (Hobbes:38).
Não há lugar para metáfora no funcionamento campo dos
sujeitos. Dor, tristeza, esperança, desespero, medo não são fenômenos-objeto de
uma poética.:
“De maneira semelhante, alguns dos desprazeres reside na
sensação, e chama-se-lhes <dor>; outros residem na expectativa de
consequências, e chama-se-lhes <tristeza>”. (Hobbes: 38).
Uma política poética dos sujeitos no campo do poder animal
aparece como subversão do campo. Por isso, ela é malvista pela máquina de
guerra. A linguagem metafórica existe em um antagonismo com o poder animal.
Hobbes diz:
O apetite, ligado à crença de conseguir, chama-se esperança.
O mesmo, sem essa crença, chama-se desespero. (Hobbes: 38).
No campo dos sujeitos de uma sociedade em ascensão: “O futuro
é o que tememos ou o que esperamos; em termos de intenção humana, que recusa o
fracasso, o futuro é aquilo que é esperado. A função e o conteúdo da esperança
são constantemente experimentados e em todas as sociedades em ascensão eles
foram implementados e desenvolvidos”. (Bloch: 10).
Nas sociedades em ascensão, a esperança funciona como utopia:
“le concept de príncipe utopique pris dans le bon sens du terme, celui de
l’espérance et de ses contenus dignes de l’homme, occupe ici une position
centrale”. (Bloch: 14).
No campo dos sujeitos do poder animal, a esperança é o desejo
ligado à crença de conseguir se adaptar à situação do subdesenvolvimento. Recusar
o fracasso é conseguir se adaptar à realidade do subdesenvolvimento. A ideia de
futuro como aquilo que é esperado é uma forma de conciliação do sujeito com a
realidade do subdesenvolvimento.
Os mass media jogam um papel fundamental na relação do poder
animal com o campo dos sujeitos. Os mass media são parte do campo dos poderes
animais territoriais, pois, eles funcionam como um discurso que concilia o
sujeito com a realidade do subdesenvolvimento. Os mass media bloqueiam a
transformação da esperança em um projeto utópico de desenvolvimento capitalista
no sentido de uma sociedade capitalista, industrial, desenvolvida, cibernética.
Quanto ao desespero: “Le désespoir est lui-même, tant dans
l'expérience du fait qu'à la longue, l'état le plus intolérable qui soit, il
est absolument insupportable aux besoins humains. (Bloch: 11).
O desespero é o real impossível de ser suportado. No campo
dos sujeitos do poder em tela, o real do subdesenvolvimento invade a existência
como precariedade absoluta. O próprio Estado artificial subdesenvolvido faz
pendant com o estado de precariedade do trabalho e da vida, regulado pelo
Estado natural subdesenvolvido.
3
O poder territorial animal do homem tem uma
ancoragem na realidade econômica da cidade. No Brasil, ele se desenvolve,
especialmente, em cidades da província (estado) do Rio de Janeiro, em especial,
na capital. Tal poder animal está se espalhando por todo o território nacional.,
como veremos adiante.
Qual é a anatomia desse poder animal.? Grupos do aparelho
repressivo de Estado em junção com a economia criminosa é o fator de
desenvolvimento do campo do poder animal.
Como fonte de “legitimação” desse poder, temos a esperança de ascensão
social em massa das classes baixas para uma classe média criminosa urbana, a
partir do desenvolvimento da economia miliciana do subdesenvolvimento.
A economia miliciana é um fenômeno do subdesenvolvimento
capitalista brasileiro. Este aspecto econômico explica a expansão da economia
miliciana por quase todo o território nacional. Tal realidade produz efeitos na
economia em geral, política, e no mundo da vida.
A política governamental e parlamentar passam a ser dirigidas
por um partido político criminoso do <criminostat> (Virilio: 55). O capitalismo criminoso (Platt: 19, 45, 101)
assume a “hegemonia” no espaço econômico nacional. O Estado artificial legal
vai sendo substituído por um Estado natural SUBDESENVOLVIDO como Estado despótico
neoliberal (Bandeira da Silveira:103-110) como expressão do capitalismo
criminoso, do criminostat e do campo de
poderes animais.
CRÔNICA GRAMATICAL
No Brasil, a anatomia do poder apresenta certos fenômenos
mórbidos como aquele do <poder territorial animal>.
O grande mamífero predador se define por fabricar o poder
territorial animal. Em um território que ele considera de sua propriedade
natural, ele vive para expulsar aqueles animais que representam uma ameaça ao
seu poder territorial.
NO Brasil, o poder territorial animal ganhou um imenso
impulso com a economia miliciana, no Rio, e se espalhando por todo o território
nacional. O poder territorial animal é um poder urbano cujo motor é a economia
ilegal: economia criminosa.
A expansão do poder territorial animal retira do Estado o
poder político sobre a cidade. E faz da cidade um território econômico
criminoso no qual a economia capitalista perde seus mercados legais. Assim, o
poder territorial animal faz parelha e se torna alavanca para o <capitalismo
criminoso>.
Chefe do Estado de polícia, o governador do Rio se mostra
incapaz de combater o poder animal para retomar o controle do território pelo
Estado. Em outros estados, o fenômeno em tela se reproduz em uma escala
devastadora. Assim, o poder animal solapa na realidade do território o poder
nacional constitucional: local e nacional. E ergue um Estado natural no lugar
do Estado artificial.
Em relação ao poder animal incrustado na realidade material
da cidade, o poder de Estado aparece como abstração inoperante, obsoleta, para
combater a expansão do poder animal. Aí, algo que já não é uma cidade toma o
lugar da polis.
Por que uma realidade possuída por uma violência macabra da
força física não é percebida pela sociedade nacional e da polis?
A percepção da realidade foi expropriada pelos mass media da
sociedade de comunicação de massa, como sociedade do espetáculo. Especialmente,
a televisão faz da violência macabra do poder animal o filé mignon de sua
programação jornalística, espetáculo emocional e sentimental, sem nomeá-lo ou
interpretá-lo. Ela naturaliza o poder animal para as massas como um fenômeno da
segunda natureza da cidade que já não é uma <civitas>.
Se o poder animal tem como aliado o poder nacional
governamental e parlamentar, (e a indiferença oportunista do STF) então, o
destino do Brasil é a fabricação de um poder nacional territorial animal que
substituirá, naturalmente, o Estado nacional constitucional 1988.
Falando de território, sem água potável, a <civitas> se
desfaz!
ARENDT, Hannah. A vida do espírito. O pensar, o querer, o
julgar. RJ: UFRJ/Relume Dumará, 1992
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje.
Lisboa: Chiado Books, 2019
BLOCH, Ernest. Le príncipe esperance. Paris: Gallimard, 1959
FREUD. OBRAS Completas. V. 21. RJ: Imago: 1974
HOBBES. Leviatã. Os Pensadores. SP: Abril Cultural, 1974
PLATT, Stephen. Capitalismo criminoso. SP: Cultrix, 2017
VIRILIO, Paul. Vitesse et politique. Paris: Galilée, 1977
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