José Paulo
A cultura como fabricação de artefato é uma ideia de
Merleau-Ponty. (Merleau-Ponty. 1971:103). No final da vida, Lacan usou a ideia
supracitada para dizer que não existe fato, e sim somente artefato.
A realidade realmente existente só existe em algum discurso
como o discurso político, o discurso econômico, o discurso do maître, ou o
discurso psicanalítico?
A realidade deve ser buscada fora do que se sabe, fora da
plurivocidade do campo de saberes/poderes. Deve ser buscada de fora do campo
supracitado. A realidade existe como fato para aquém da produção cultural de
artefatos.
Precisamos de um saber no qual a fé perceptiva, como dúvida
do mundo que se vê como percurso das coisas, interroga-se a si mesma. O mundo
existe sob a forma de interrogação e fé perceptiva da dúvida sobre a cultura
como produção de artefato.
Uma cultura que se define pelo falar por falar desemboca no
anarco-empirismo, no qual o eu e o mundo possuem uma identidade absoluta. Aí
não há espaço para saber nada sobre como o mundo se faz como produção de fatos
e artefatos. Não há espaço para o método de interrogação do mundo como
fabricação da gramática da história ou da lógica das coisas.
Lacan diz:
“Entretanto, se falei de artefato a propósito do discurso,
foi porque, para o discurso, não existe nada de fato, se assim posso me
expressar, só existe fato pelo fato de dizê-lo. O fato enunciado é, ai mesmo
tempo, fato do discurso. É isso que designo com o termo artefato e, é claro, é
isso que se trata de reduzir”. (Lacan. S. 18: 12-13).
Trata-se da redução da realidade ao discurso. Lacan pressupõe
que a realidade e o discurso são idênticos? Ou só existe a realidade dita em um
discurso?
A relação da linguagem com a
realidade se constitui através de evidências e totalidade e, também, abertura
ao SER da realidade do invisível (Merleau-Ponty: 100).
“a linguagem não é apenas a
conservatória das significações fixas adquiridas, porque seu poder cumulativo
resulta de um poder de antecipação e de pré-posse, porque não se fala apenas do
que se sabe, por exibição – mas também do que não se sabe, para sabê-lo -, e a
linguagem, fazendo-se, exprime, pelo menos lateralmente, uma ontogênese à qual
pertence. Resulta, porém, daí, que as palavras mais carregadas de filosofia não
são necessariamente as que encerram o que dizem, são antes as que se abrem mais
energicamente para o Ser, porquanto revelam mais estritamente a vida do todo e
fazem vibrar as nossas evidencias habituais até desjuntá-las”. (Merleau-Ponty:
1971:103).
O método <crítica da economia política> (“crítica das ideologias”) gerou uma
percepção do mundo capitalista que se atualizou em uma força prática utópica de
transformação revolucionária da história econômica. O socialismo científico é a
disjunção das evidencias habituais e da vida do todo capitalista. Todavia, o
socialismo realmente existente é uma história econômica derrotada pela história
econômica capitalista.
O triunfo da história econômica
capitalista aparece como plurivocidade história econômica capitalista no século
XXI. Trata-se de um mundo invisível do qual o campo de poderes/saberes em
junção com o campo de indivíduos/sujeitos capitalista nada fala.
Para falar do mundo invisível
supracitado, se faz necessário um platô situado fora do campo de
poderes/saberes em junção com o campo de sujeitos capitalista neoliberal. A realidade
invisível da história econômica do século XXI é aquela da plurivocidade de
história econômica capitalista, ou melhor, da luta entre a história econômica
do capitalismo desenvolvido, industrial cibernético com a história econômica do
capitalismo subdesenvolvido, industrial, tradicional articulado pelo mundo
cibernético.
As relações do sujeito com a linguagem do significante e a
realidade dos fatos e dos artefatos parte do fato que o sujeito se <exaure> ao se produzir como efeito de
significante, mantendo-se distinto deste. (Lacan. S. 19: 166). O sujeito do capitalismo desenvolvido é
aquele sujeito cujo combate com o subdesenvolvimento exauriu-lhe as força; ele
foi despejado até a última gota na luta. Tal fato explica o porquê das
gramáticas da história econômica capitalista são produzidas em uma região de
capitalismo subdesenvolvido.
O mundo invisível do capitalismo mundial só é visível em uma
região de capitalismo subdesenvolvido sem sociedade industrial no comando da
história econômica nacional. O sujeito capitalista desenvolvido se exaure na
luta do campo de poderes/saberes capitalista em junção com o campo dos sujeitos
do capitalismo globalizado, que se define na luta pela hegemonia entre
desenvolvimento e subdesenvolvimento.
2
O capitalismo subdesenvolvido industrial tradicional cyber se
configura pelos fenômenos seguintes: capitalismo petrolífero, complexo
industrial-militar nuclear, mineração, Banco e Mercado Financeiro. É um
fenômeno da expansão do subdesenvolvimento um departamento 3 hipertrofiado.
Trata-se de um desenvolvimento anômalo da necessidade de produção e reprodução
do material monetário na época da hegemonia do neoliberalismo do capitalismo
globalizado:
“Daqui resulta para o processo de reprodução do capital
social total a necessidade da produção e reprodução do material monetário. Aos
dois grandes departamentos da produção social, a produção de meios de produção
e a produção de bens de consumo, deveria acrescentar-se, como departamento
terceiro, a produção de meios de troca, dos quais é característico que não servem
nem para a produção nem para o consumo, mas que representam o trabalho social
em mercadorias que não são suscetíveis de uso. É verdade que o dinheiro e a
produção de dinheiro assim como a troca e a produção de mercadorias, são muito
mais antigos que a forma de produção capitalista. Mas somente nessa ´última a
circulação de dinheiro se converteu na forma geral da circulação social e com
isso em elemento básico do processo de reprodução social. Esta é somente a
representação da produção e reprodução do dinheiro em seu entrelaçamento
orgânico com os outros dois departamentos de produção social, que forneceria o
esquema completo do conjunto do processo capitalista em seus aspectos
essenciais”. (Rosa: 7).
Dois aspectos devem ser sublinhados:
“A MASSA do dinheiro a reconverter-se em capital resulta do
vasto processo de reprodução, mas, considerada de per si, como capital-dinheiro
de empréstimo, não constitui ela mesma capital reprodutivo”. (Marx. 1985:580).
A distinção entre capital fictício e capital real é essencial
para se compreender a história econômica do capitalismo no século XXI. Com a expansão
do capitalismo subdesenvolvido, o capital fictício torna-se hegemônico no
processo de reprodução social do capitalismo mundial. Assim, o mundo
capitalista se faz e refaz por uma irracionalidade econômica devastadora. (Marx.
1985:463).
No departamento 3, a propriedade do capital fictício é uma
propriedade jurídica garantida pelo Estado. A hegemonia do capital fictício põe
e repõe a história econômica sob a égide de uma relação jurídica capitalista.
Portanto, a história econômica não é mais uma história econômica capitalista
per si:
“A circulação real do dinheiro como capital é, portanto,
pressuposto da transação jurídica em virtude da qual o prestatário tem de
devolver o dinheiro ao prestamista”. (Marx. 1985: 404).
A expansão do subdesenvolvimento capitalista já um efeito da
história jurídica do capital. Por outro lado, o neoliberalismo quer um Estado
mínimo que seja o efeito da história jurídica do capitalismo. Aliás, o Estado
mínimo neoliberal se transformou em um motor do desenvolvimento do
subdesenvolvimento capitalista nas Américas, para falar da região econômica que
mais conheço.
A história jurídica do capitalismo no comando da realidade
econômica é uma força prática de desenvolvimento do subdesenvolvimento no
capitalismo globalizado. A partir daí, a lógica econômica do modo de produção
capitalista fazendo pendant com a gramática de sua sociedade de classes
industrial desaparecem na história do capitalismo no Ocidente.
As classes sociais deixam de ser, como força prática utópica,
o motor das transformações do capitalismo. A linguagem do capitalismo deixa de
nomear fenômenos como burguesia nacional, subdesenvolvimento e desenvolvimento,
países desenvolvidos e em desenvolvimento, países emergentes etc. Trata-se da
decomposição da linguagem capitalista tout court. Este fenômeno de decomposição
da linguagem exaure o campo de sujeitos capitalista como saber sobre a história
econômica capitalista.
A fundação do campo a
gramática do ser ergue um platô capaz de ver o mundo para além das aparências
de semblância do campo de poderes/saberes do capitalismo neoliberal do mundo
visível:
“De acordo com a distinção que Portmann faz entre aparências
autênticas e inautênticas, poder-se-ia falar de semblâncias autênticas e
inautênticas. Estas últimas, miragens como a de alguma fada Morgana,
dissolvem-se espontaneamente ou desaparecem com uma inspeção mais cuidadosa; as
primeiras, como o movimento do Sol levantando-se pela manhã para pôr-se ao
entardecer, ao contrário, não cederão a qualquer volume de informação
científica, porque esta é a maneira pela qual a <aparência> do Sol e da Terra <parece> inevitável a qualquer criatura presa
à Terra e que não pode mudar de moradia. Aqui estamos lidando com aquelas
‘ilusões naturais e inevitáveis’ de nosso aparelho sensorial, a que Kant se
referiu na introdução à dialética transcendental da razão. Ele chamou a ilusão
no juízo transcendente de ‘natural e inevitável’ porque era ‘inseparável da
razão humana e..., mesmo depois que seu caráter ilusório foi exposto, não
deixará de lográ-la e de atraí-la continuamente para aberrações momentâneas que
sempre pedem outras correções’. (Arendt: 31).
O capitalismo neoliberal globalizado é história econômica
como aparências de semblância autênticas. O campo de sujeitos é morada da Terra
do campo de poderes/saberes da história econômica desse capitalismo, que vê a
história econômica como aparências de semblância econômica neoliberal
autêntica. Portanto, o campo de sujeitos não vê a história do capitalismo como
a realidade econômica determinada pela propriedade jurídica do capital
fictício.
Só um platô fora da terra (o astronauta, ou melhor, gramática
do astronauta) poderá ver o mundo invisível do capitalismo como história
econômica determinada pela história jurídica do capital fictício. Então, a
gramática do astronauta pode ser a <gramática imperiosa do ser>:
“àquilo que faz com que o mundo seja mundo, a uma gramática
imperiosa do ser, a núcleos de sentido indecomponíveis, redes de propriedades
inseparáveis”. (Merleau-Ponty: 107).
A gramática imperiosa do ser capitalista é aquela da luta
pela dominação do planeta da história econômica do capitalismo subdesenvolvido,
sob hegemonia do capital fictício, com a história econômica do capitalismo
desenvolvido, industrial, cibernético. Luta
entre o capital fictício aliado da economia subdesenvolvida industrial
tradicional cyber e o capital real desenvolvido, industrial, cibernético.
3
Podemos estar no começo de uma nova história?
“É preciso conservar a essência marxista da história e tratar
como variáveis empíricas e confusas os fatos que parecem pô-la em questão ou,
ao contrário, estamos num ponto de inflexão onde, sob a essência marxista da
história, transparece uma essência mais autêntica e mais plena?
A estratégia neoliberal é se apresentar como a nova história
no lugar do marxismo. Com o neoliberalismo, o velho marxismo entrou em crise no
século XXI como interpretação da história econômica do capitalismo globalizado.
Nos países desenvolvidos, os intelectuais pararam de investigar
o capitalismo e alguns falavam de sociedade pós-capitalista (Drucker: 3-24). Sobre
o capitalismo, o último grande livro marxista foi o “Fim do capitalismo como o
conhecemos”. (Altvater: 37-50).
A derrota do marxismo foi gramaticalizada em livros
excepcionais como “Spectres de Marx” (Derrida: 21), “Da sedução”, com o fim do
modelo teórico economia política (Baudrillard. 1991:43-45), e “Simulacres et
simulation”, como o desparecimento do real em uma hiper-realidade, como fim da
história capitalista. (Baudrillard. 1981: 69-71).
No Brasil, um marxismo infantil ignora a essência neoliberal
da história do presente e continua falando a linguagem do velho marxismo. No
entanto, surge neste país a gramática marxista do ser capitalista, ignorada
pela esquerda, pois, ela significa um ponto de inflexão na história do marxismo
das Américas.
Sobre a nova discussão sobre a história neoliberal, temos
dois livros seminais: “Velocidade e política”, com seu conceito de <criminostat> (Virilio: 57) e “Capitalismo criminoso” (Platt:19,
45, 101).
Os fenômenos supracitados constituem uma recriação do
capitalismo subdesenvolvido em território dos Estados Unidos, que levou e
sustenta Donald Trump no poder político americano.
Os Estados Unidos se tornam o país paradigmático da história econômica
do capitalismo globalizado do século XXI. Na América, uma luta pela hegemonia é
vivida pelo capitalismo globalizado, desenvolvido, industrial, cibernético com
o capitalismo subdesenvolvido, da velha indústria, articulada pela técnica
cibernética.
A eleição americana 2020 obedece à luta das gramáticas da
plurivocidade da história capitalista. Desde Obama, o capitalismo
subdesenvolvido industrial ganha terreno sobre a vida americana em detrimento
do capitalismo desenvolvido cibernético. Com Trump, o <capitalismo subdesenvolvido evangélico> se tornou uma força prática na política arrebatadora.
Na segunda metade de 2019, com a crise da história das essências
neoliberais, a gramática imperiosa marxista da história fundou um novo campo
marxista de saber, no Rio de Janeiro:
‘A gramática historial é a junção de economia, campo de
poderes/saberes e campo de sujeitos.
No capitalismo, há uma plurivocidade de gramática econômica no
domínio da gramática historial. Tenho explorado empiricamente esta
plurivocidade. Cada gramática econômica possui um campo de poderes e campo de
sujeitos”. (Bandeira da Silveira. 2019a: 49).
As gramáticas do capitalismo têm duas linhas de força gramaticais
principais: desenvolvimento, industrial cibernético e subdesenvolvimento industrial
tradicional, cyber. Como já tenho afirmado, o subdesenvolvimento (com seu
apocalipse ambiental) aparece como uma força prática historial que vai estendendo
seu domínio sobre o planeta.
A transformação da realidade econômica e da sociedade é
profunda:
“A sociedade de classes do capitalismo subdesenvolvido
dependente cyber passa por uma transformação profundamente radical, pois, há
Spaltung, ou seja, quebra de mundo pelo rompimento com os laços que ligam o
subdesenvolvimento à civilização ocidental”. (Bandeira ad Silveira. 2019b:
135).
Dando um passo adiante. O subdesenvolvimento industrial cyber
descontrói a ideia de Ocidente e a própria história ocidental. A Ásia oriental
se tornou o território geoeconômico por onde passa o futuro do capitalismo
globalizado cibernético, industrial, desenvolvido:
“Na terceira década do século XXI, a China continuará a exportação
do capital chinês como comércio de mercadorias. Trata-se de uma etapa do
neocolonialismo chinês superficial que antecipa a internacionalização
neomercantilista profunda do capital cyber chinês no espaço econômico da
internet das coisas. Há um sistema neomercantilista de Estados fortes na
sociedade industrial asiática cyber que se expandirá na primeira metade do
século XXI”. (Bandeira da Silveira. 2019a: 87).
O impacto da história neoliberal sobre a sociedade
capitalista poderá definir o rumo do capitalismo globalizado na Ásia Orienta?
“A vitória do capital sobre o trabalho aparece como uma
catástrofe para a sociedade capitalista, pois, ela sofre uma involução em
termos de sociedade de direitos da modernidade. A era dos direitos é
substituída pela era do não direito: a precarização da vida em sociedade na
falta do discurso do direito moderno articulatório, direito com laço social
capitalista moderno civilizatório.
O capitalismo globalizado neoliberal aprofunda a insegurança socioeconômica
com a expansão do emprego informal. A sociedade salarial não é mais o palco da
luta de classes por direitos trabalhistas. A proletarização neoliberal forçada
faz da sociedade do trabalho um espaço de precariedade econômico-existencial absoluta”.
(Bandeira da Silveira. 2019b: 182).
Trata-se da vitória do capitalismo como modelo de desenvolvimento
do capitalismo subdesenvolvido industrial. Enfim, a sociedade capitalista
industrial cibernética asiática será arrastada para o domínio do subdesenvolvimento,
e não será erguida nela a <civilização capitalista cibernética> do século XXI?
ARENDT, Hannah. A vida do espírito. O pensar, o querer, o
julgar. RJ: UFRJ/Relume Dumará, 1992
ALTVATER, Elmar. O fim do capitalismo como o conhecemos. RJ:
Civilização Brasileira, 2010
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramáticas do capitalismo. Lisboa:
Chiado Books, 2019ª
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje.
Lisboa: Chiado Books, 2019b
BAUDRILLARD, Jean. Da sedução. Campinas: Papirus, 1991
Baudrillard, Jean. Simulacres et simulation. Paris: Galilée,
1981
DERRIDA, Jacques. Spectres de Marx. Paris: Galilée, 1993
DRUCKER, Peter. Sociedade pós-capitalista. SP: Pioneira, 1993
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 18. De um discurso que não
fosse semblante. RJ: Zahar, 2009
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 19. ... ou pior. RJ: Zahar,2012
MARX. O capital. Livro 3, v. 5. SP: Difel, 1985
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. SP:
Perspectiva, 1971
PLATT, Stephen. Capitalismo criminoso. SP: Cultrix, 2017
ROSA LUXEMBURGO. A acumulação do capital. RJ: Zahar Editores,
1970
VIRILIO, Paul. Velocidade e política. SP: Estação Liberdade,
1996
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