quarta-feira, 30 de outubro de 2019

GRAMÁTICA DO RISORGIMENTO 1


José Paulo



O <Risorgimento> é o evento da história da produção da unidade italiana.  Gramsci é o autor intelectual que revela para o leitor a unidade cultural política, cultural econômica e literária (fenômenos contidos na formação ideológica italiana) da gramática Risorgimento.
Começo com uma proposição de Gramsci: “‘A inúmera variedade dos sucessos revolucionários’ se somente atribui em bloco a um ente ‘Revolução”, no lugar de ‘assignar cada fato ao indivíduo ou aos grupos de indivíduos reais que foram historicamente autores’. (Gramsci. V. 3: 1981).
Para ler a história é necessário investigar e descobrir os autores históricos dela.
O Risorgimento se define como um problema histórico: a história da formação da unidade italiana, da Itália como nação moderna, problema da gramática histórica (Gramsci. V. 3:2341-2342) da formação do moderno Estado nacional italiano. (Gramsci. V. 3:1981).
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O PROBLEMA do Risorgimento brasileiro é uma história que começa no século XIX. Neste século, há aquela formação de um Estado “nacional” com banhos de sangue vertidos no computo dos interesses “nacionais”, internacionais e locais. A monarquia foi o autor decisivo da constituição do Estado territorial centralizado e centralizador contra indivíduos e grupos de indivíduos envolvidos com as lutas da divisão do país em diversos países.
No nosso século XIX, o Risorgimento foi uma realidade fática. Ele não foi produzido a partir das lutas intelectuais e da pequena burguesia contra as forças das classes econômicas atrasadas e politicamente incapazes. (Gramsci. V. 3: 1980).
Comparando com a Itália, o Brasil é uma história de anarco-empirismo glorioso; “Realmente a unidade nacional é percebida como aleatória, porque forças ‘selvagens’ não conhecidas com precisão, elementarmente destrutivas, se agitam continuamente em sua base. A ditadura de ferro dos intelectuais, de alguns grupos urbanos e da propriedade terratenente, mantém sua coerência sobre excitando a seus elementos militantes com este mito da fatalidade histórica, mais forte do que carência e que qualquer inépcia política e militar”. (Gramsci. V. 3: 1980).
No Brasil, a produção de uma literatura capaz de se aliar ao fenômeno político Risorgimento teve um escasso alcance nacional. Tal literatura floresce, na história moderna, nos momentos mais característicos de crises político-social, quando a separação entre governantes e governados se torna mais profunda e parece anunciar sucessos catastróficos para a vida nacional (Gramsci. V. 3:1975).  
O século XIX brasileiro, foi um século catastrófico na sua primeira metade. E, no entanto, não foi produzida uma literatura que interpretasse a situação catastrófica, que elaborasse a situação como um problema nacional. Que propusesse soluções para a saída da crise histórico-política.
Uma outra característica do passado brasileiro é a ausência de produção literária voltada para a formação de ideologias que ligassem as massas à classe dirigente. Certamente, a ausência de massas civis e livres foi uma causa dessa faceta da história. O modo de produção escravista cria uma classe dirigente que não é, realmente como cultura política, uma classe dirigente. Assim, não há necessidade da existência de uma esfera ético-política, esfera intelectual da articulação da hegemonia.
Gramsci diz:
“as reações espontâneas (e enquanto o sejam) das massas populares podem só servir para indicar a ‘força’ direcional das classes altas; na Itália, os liberal-burgueses descuidaram sempre das massas populares”.  (Gramsci. V. 3:1973).
Sem massas populares livres tout court, sem sociedade civil, sem intelectuais voltados para a articulação da hegemonia das massas, a unidade “nacional” foi uma obra da dominação da monarquia. Corrigindo. A monarquia estabelece a unidade territorial, não a unidade nacional.  Toda uma cultura literária foi produzida desvinculada de movimentos social, político ou cultural. Daí o livro “Abolicionismo”, de Joaquim Nabuco, ser exceção à regra. 
O passado pesa como chumbo no cérebro dos vivos. Na quase terceira década do século XXI, a história brasileira se movimenta como o avesso do Risorgimento. Forças de uma potência indescritível trabalham abertamente para dissolver o Brasil-Nação, sem destruir a unidade territorial “nacional”. Esse fenômeno se apresenta como não afetando a geografia política do país. Ele não é um fenômeno político geográfico. Como é possível acabar com a unidade nacional sem destruir a unidade territorial? O que acontece, acontecerá, com o simulacro de simulação do Estado moderno nacional?
A falta de aparecimento de novos correntes ideológicas de sublimação da unidade territorial sem unidade nacional, a falta de uma literatura que gere uma consciência desse fenômeno é uma atualização do nosso passado do Risorgimento monárquico (e republicano).
O nosso Risorgimento faz a transição da monarquia para a república sem cultura política objetiva (Gramsci. V. 3:1965). Parafraseando Gramsci: “inclusive é evidente que a debilidade orgânica de um complexo ‘vertebrado’ no curso do desenvolvimento é a origem desse desenfrear, de ‘subjetivismo’ arbitrário, muito frequentemente caprichoso, bizarro e extravagante”.  (Gramsci. V. 3: 1974).
A república não chega a se articular como cultura política criada em fontes ideológicas de autores ou escolas de literatura política. Lima Barreto escreveu a gramática do republicanismo democrático no início da República e foi, completamente, ignorado. A república jamais se constituiu como um problema histórico sério para os intelectuais e a pequena burguesia republicana. Estas forças que ligam, historicamente, o Risorgimento ao Estado republicano moderno.   
Na atualidade do avesso do Risorgimento como história da unida nacional, o conjunto das interpretações da crise do Brasil-nação são de caráter político-ideológico imediato, ou seja, não histórico. Um filósofo universitário, paulista, marxista-cultural, fala da inutilidade de interpretação histórica do presente. Temos um presente e um futuro sem passado.  
Gramsci diz:
“Para que um evento ou um processo de sucessos históricos possa dar lugar a um gênero tal de literatura, é de imaginar o seguinte: que seja pouco claro e justificado em seu desenvolvimento pela insuficiência das forças ‘intimas’ que o produziram; pelas escassez de elementos objetivos ‘nacionais’ aos quais referir-se; pela inconsistência e gelatinosidade do organismo estudado”. (Gramsci. V. 3: 1974). 
Se há cultura política brasileira, ela é inconsistente e gelatinosa. O mesmo sentido se aplica à classe dirigente, às massas populares. Estas podem explodir em movimento expontaneísta sem este se traduzir em ideologias políticas fabricadas pela atividade dos intelectuais, que se atualizem como campo de poderes/saberes progressista capaz de criar um fato nacional-popular de massas.
A destruição da unidade nacional (unidade mesmo que só virtualmente definido na Constituição 1988)  não encontra resistência em um ambiente onde o popular-nacional é coisa de festa caipira e folclore midiático. Elites nacionais só existem na junção com fatos do nacional popular de massas urbanas.
Toda a inconsistência e gelatinosidade da cultura nacional-popular acaba por gerar um ambiente favorável ao uso da linguagem “nacional” anarco-empirista. Esta é a irmã do subjetivismo na linguagem (política e econômica). Não há uma linguagem objetiva para se fazer política e tratar dos problemas econômicos nacionais. Nem para se tratar do avesso do Risorgimento supracitado.          

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O nosso Risorgimento produz um pensamento político? O sociólogo Raymundo Faoro diz:
“A consciência da exploração do sistema colonial se expressa na ideologia liberal, que é, ao mesmo tempo, uma filosofia política. O pensamento político – tal como o conceituamos neste ensaio, como integrado na práxis - tem conexão necessária com o liberalismo? Por que, sem exame crítico, identificar a inassimilação, que não chegou a criar uma consciência nacional, como um tipo cultural?”. (Faoro: 58).
Faoro prossegue:
“Um pensamento político sem liberalismo, essa a conclusão? Na verdade, um pensamento político que o arredou, que vitoriosamente lutou para arredá-lo da vida nacional – o que não é a mesma coisa”. (Faoro: 84).
O Risorgimento italiano se caracteriza por ser um fenômeno liberal e moderno?
“O século XVIII foi visto desde o ângulo visual do Risorgimento, e como Risorgimento ele mesmo; com sua burguesia agora nacional; com seu liberalismo que abarca tanto a vida econômica como a religiosa e depois a política, e que não é tanto um ‘princípio’ quanto uma exigência dos produtores; com aquelas primeiras concretas aspirações a uma forma qualquer de unidade”. (Gramsci. V. 3: 1969).
Talvez já seja a hora de admitir que não existe pensamento político brasileiro:
“574. Uma frase e, por isso, num outro sentido, um pensamento podem ser a ‘expressão’ da crença, da esperança, da expectativa etc., mas crer não é pensar. (Uma anotação gramatical). Os conceitos de crer, esperar, ter esperança são de espécies menos diferentes uma da outra do que o são o do conceito de pensar”. (Wittgenstein:157).
A política brasileira não faz pendant com o pensamento político. Ela é do domínio da crença, da esperança, da expectativa. O Brasil não metaboliza o pensamento político gramatical.
O Risorgimento italiano encontra sua gramática no pensamento político de Gramsci?
Gramsci diz:
“da história do Risorgimento, pequena história, insuficientemente regada de sangue; da unidade, donde uma fortuna propicia mais que o mérito adquirido pelos italianos; do Risorgimento, obra de minorias contra a apatia da maioria. Esta tese originada na incapacidade do materialismo histórico de compreender em si a grandeza moral, sem a estatística empírica da abundância de sangue vertida e o computo dos interesses (tinha uma especificidade fácil e estava destinado a ser divulgada em todas as revistas e diários e a fazer que os ignorantes denegrissem a obra perdurável de Mazzini e Cavour), esta tese servia de base a Marconi para una argumentação moralista de estilo vociano”. (Gramsci. V. 3: 1982). 
O Risorgimento brasileiro não encontra na República seu autor capaz de produzir uma gramática da unidade nacional indefectível. Ao contrário, a gramática italiana é dita assim:
“As observações críticas de Omodeo à concepção do Risorgimento como ‘pequena história’ são mal-intencionadas e triviais, e não conseguem captar como tal concepção foi a única tentativa um pouco séria de ‘nacionalizar’ as massas populares, isto é, criar um movimento democrático com raízes e exigências italianas”. (Gramsci. V. 3: 1983).
A gramática da história é aquela da história do presente:
“E se escrever história significa fazer a história do presente, é um grande livro de história aquele que no presente auxilia as forças em desenvolvimento a converter-se em mais conscientes de si mesmas e, por isso, mais concretamente ativas e factíveis”, (Gramsci. V. 3:1983-1984).   
A diferença básica entre gramática e ideologia parece no parágrafo seguinte:
“O defeito máximo de todas estas interpretações ideológicas do Risorgimento consiste no seguinte: que tem sido meramente ideológicas, ou seja, não se dirigiam a suscitar forças políticas atuais. Trabalho de literatos, de dilettantis, construções acrobáticas de homens que queriam fazer ostentação de talento e não de inteligência, ou bem, inclinados a pequenas rusgas intelectuais sem futuro, ou bem, escritas para justificar as forças reacionárias em perigo, emprestando-lhes intenções que não tinham, fins imaginários  e, portanto, prestando-lhes pequenos serviços de lacaios intelectuais (o tipo mais completo destes lacaios é Mario Missiroli) e de mercenários da ciência”. (Gramsci. V. 3:1984).   
As interpretações ideológicas são do domínio do anarco-empirismo:
“Estas interpretações ideológicas da formação nacional e estatal italiana devem ser estudadas de outro platô: o que acontece é ‘acrítico’, por iniciativas individuais de personas mais ou menos ‘geniais’, é um documento do primitivismo dos velhos partidos políticos, do empirismo imediato (grifo meu) de toda ação construtiva (compreendida a do Estado), da ausência na vida italiana de todo movimento ‘vertebrado’ que tenha em si a possibilidade de desenvolvimento permanente e contínuo”. (Gramsci. V. 3:1984).  
O domínio das ideologias anarco-empiristas na interpretação do Risorgimento conota falta de gramática, sgrammaticatura:
“A falta de perspectiva histórica nos programas de partido, perspectiva construída ‘cientificamente’ – isto é, com seriedade escrupulosa, para basear em todo o passado o fim a alcançar no futuro e propor ao povo como uma necessidade com a qual colaborar conscientemente – tem permitido o  florescimento de tantas novelas ideológicas, que constituem na realidade a premissa (o manifesto) de movimentos que são abstratamente supostamente necessários mas, para despertá-los, nada é feito então na prática (Gramsci. V. 3: 1984).
A ideologia anarco-empirista não é constituída por um rol de ideias práticas, e sim por abstrações caprichosamente arbitrárias, bizarras. As ideais práticas são fabricadas na atualização da gramática virtual da política, por autores, em uma situação concreta dada.
O abstracionismo midiático é parte de uma gramática da sociedade de comunicação de massa (incluindo os cibernautas), que aparece, antecipadamente, em uma cena da imprensa italiana:
“Este modo de proceder muito útil as operações das que, frequentemente, se designam como ‘forças ocultas’ ou ‘irresponsáveis’ que têm por porta-voz aos ‘diários independentes’; os que tem necessidade, de vez em quando, de criar movimentos ocasionais de opinião pública e de suscitar acessos de paixão até alcançar determinados objetivos e deixá-los depois languidescer e morrer. São manifestações como ‘as empresas de mercenarismo’, verdadeiras e próprias <corporações econômicas> de mercenarismo ideológico, prontas a servir aos grupos plutocráticos ou de outras naturezas, frequentemente, precisamente, fingindo lutar contra a plutocracia. Organizador típico de tais “companhias” foi Pippo Naldi, discípulo também ele de Oriani e administrador de Mario Missiroli e de suas improvisações jornalísticas”. (Gramsci. V. 3: m1984-1985).
No Brasil, o patriarca Roberto Marinho deixou como herança familial o Grupo Globo. Roberto seria o nosso Mário Missilori? O Grupo Globo a corporação econômica com táticas homólogas ao dos “diários independentes” italianos da década de 1930.
Retomaremos na parte 2.

FAORO, Raymundo. Existe um pensamento político brasileiro? SP: Ática, 1994
Gramsci, Antonio. Quaderni del Carcere. V. 3. Torino: Einaudi, 1977
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. SP: Abril Cultural, 1975