“Um espectro ronda a Europa: o
espectro do comunismo”. Esta frase do Manifesto
do Partido Comunista é a condensação da lógica dos espectros de Marx que
instaura, no discurso marxista, a articulação entre a grande política e o
simulacro no sentido especificamente político (Derrida: 22, 60). O espectro é
uma cópia sem vida do corpo político real passado ou futuro. Na frase supracitada,
trata-se do espectro do futuro que se tornaria um corpo político real com Lenin
na revolução bolchevique na Rússia.
Derrida esclareceu que o espectro
é a não-contemporaneidade a si do presente. É preciso falar do fantasma uma vez
que nenhuma ética e nenhuma política parecem possível, pensável e justas sem
reconhecer em seu princípio o respeito ou por esses outros que não estão mais
presentes, ou por esses outros que ainda não tenham nascido (Derrida: 11). Para
nós, o fantasma interessa como a disjunção na presença mesma do presente, essa
espécie de não-contemporaneidade do tempo presente a ele mesmo, essa
intempestividade ou essa anacronia radicais. Trata-se da articulação entre o
que se ausenta e o que se apresenta. O fantasma deve não ser nada, nada
simplesmente (não-ente, não-efetividade, não-vida). Ou nada imaginário mesmo se
esse nada toma corpo, corpo espectral (Derrida: 49).
A presença deste corpo na
política é capaz de ligar o passado e o futuro ao presente. A conjuração dos mortos
– quando os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado
– se faz através da apropriação de uma linguagem espectral emprestada. Os homens evocam tal linguagem emprestada – com seu conteúdo de ideias e formas de
arte – com suas ilusões de que necessitam para esconderem de si próprios as
limitações do conteúdo de suas lutas e manterem seu entusiasmo no alto nível da
tragédia histórica. Nesta, o simulacro é evocado para transladar o presente
para uma época morta (Marx. 1974: 335-336). Na tragédia política, a multidão parece
articular a política sem a lógica do espectro (Silveira: 2014).
O fantasma que se descreve como
alguma “coisa” espectral faz da lógica do simulacro a porta de entrada para a
política. O corpo espectral é o simulacro que permite a leitura da realidade
política como algo virtual e factual ao mesmo tempo. Em O capital, a lógica do
simulacro articula a estrutura simbólica, quando o capital morto controla o
trabalho vivo (Eagleton: 85). Trata-se
do capital no lugar do grande Outro. O capital como o verdadeiro Deus da
política. O capital é o corpo sem órgão do capitalista, ou antes, do ser
capitalista. É no capital que se engatam as máquinas e os agentes, de modo que
até o seu funcionamento é miraculado por ele. Quando as conexões produtivas
passam das máquinas ao corpo sem órgão (como do trabalho ao capital), elas são
submetidas a uma nova lei que exprime uma distribuição em relação ao elemento
não produtivo como pressuposto natural ou divino, ou seja, as disjunções do
capital (Deleuze e Guattari: 13-15).
II
O espectro mais importante da
política brasileira republicana é o espectro populista que apareceu na
democracia de 1934. Trata-se de Getúlio Vargas como espectro populista do
futuro. Em 1934, Getúlio tem que ser entendido como corpo virtual (fantasma do
futuro) e como corpo político real. Como líder efetivo populista (corpo
político vivo), Getúlio só acontece em 1950 no governo da democracia populista.
O populismo pode ser
caracterizado por três dimensões. Primeiro, a democracia é a condição de
possibilidade dele. Segundo, ele depende de uma articulação da política feita
pelo discurso do direito como expressão do antagonismo de classes ou de outros
antagonismos. Terceiro, ele está associado à política de massas. Em 1934, há
democracia e direito trabalhista, mas não existe política de massa. Como esta
sobredetermina os dois outros aspectos, neste momento, o populismo só existe
como um corpo espectral. Em 1934, Getúlio é o líder populista virtual como
espectro do futuro.
A crise da democracia de 1934
pode ser compreendida, no plano político, pela metamorfose do espectro do
populismo em bonapartismo que só ocorre na democracia despótica da Lei de
Segurança Nacional de 1935. Este é também o momento do despertar do Urstaat colonial em uma experiência de
democracia republicana regulada pelo discurso do mestre colonial oligárquico (Silveira:
2014). O golpe de Estado bonapartista instala um estado de exceção permanente –
o Estado Novo- e Getúlio torna-se o tirano moderno da vida republicana
brasileira. Getúlio não conjurou ansiosamente em seu auxílio os espíritos do
passado? Ele não conjurou em seu auxílio o fantasma de um outro tirano
republicano - o marechal Floriano Peixoto-, imortalizado por Lima Barreto no
romance Triste fim de Policarpo Quaresma?
(Barreto: 207). Na década de 1930, a lógica do espectro articula a crise da
democracia e a instauração de um regime despótico como simulacro (cópia) de
ditadura moderna. A crise de 1954 – que levou Getúlio finalmente ao suicídio
– foi a tentativa de Carlos Lacerda de transformar o populismo em um espectro,
em um corpo sem vida. Ao se transformar em um espectro, Getúlio possibilitou
que o populismo continuasse a existir como um corpo político vivo através de JK
(Juscelino Kubichek) que venceu a eleição presidencial, após a subida de
Getúlio para o céu da política brasileira.
Na eleição presidencial de 1960, não houve espectro rondando a
política. Mas Jânio Quadros na presidência da República é a própria crise. Ele
queria transformar o populismo vivo em bonapartismo. O espectro do bonapartismo
explica a crise política que levou o vice-presidente João Goulart ao cume do
poder de Estado, após o simulacro de renúncia de Jânio Quadros. Ao contrário de
Getúlio, Jânio fracassou em transformar o populismo em bonapartismo. O fracasso
de tal substancialização provou que a alquimia de Jânio era uma alquimia de um
professor de português comparada a uma verdadeira alquimia política como a de
Getúlio. Na crise de 1964, a direita comandada por Carlos Lacerda aliada aos
generais liderados pelo general Castelo Branco
evocaram o fantasma do comunismo – encarnado no governo Goulart – para
desfechar um golpe de Estado. Este instalou um regime despótico militar que só
acabaria na década de 1980. Este fantasma apareceu através da voz de Luís
Carlos Prestes que declarou em março de 1964: “estamos no poder”. A ditadura
militar é um simulacro de ditadura republicana, uma cópia militar do Estado
Novo. Tal ditadura, por caminhos tortuosos, é uma herdeira de Floriano Peixoto
e de Getúlio Vargas com sua cornucópia de tiranos militares.
Na eleição de 1989, Collor
esconjurou Lula e o PT com o espectro do comunismo simbolizado na bandeira
vermelha estrelada do partido. A derrota de Lula significou a derrota de um
corpo político espectral, pois o PT jamais foi comunista. Diz a lenda comunista
que o General Golbery do Couto e Silva – considerado o bruxo do regime militar
– criou o PT para acabar com a hegemonia do PCB entre os trabalhadores e
intelectuais. E que Lula foi, no início de sua vida sindical, um agente da CIA.
Os marxistas do PT jamais acreditaram em tais lendas urbanas – No lo creo em brujas pero que las hay las
hay.
Em 2002, Lula disputou a
presidência com o PSDB. Ele fez a “Carta aos Brasileiros” para esconjurar o
fantasma do comunismo que parecia, para a elite e para camadas da população, possuir
o PT. O governo de Lula pode ser concebido como uma vasta experiência de
dissolução do espectro da luta de classe e de um possível exercício do poder de
Estado capitalista pela classe operária. Lula governou um Estado capitalista
para os capitalistas e em função do capitalismo. Ele foi a versão tropicalista
de que a luta de classes deixara de ocupar o centro da política mundial,
inclusive nas distantes redes da América Latina. Lula e Fernando Henrique
Cardoso são os ideólogos da oligarquia política híbrida criada no século XXI. Esquerda
e direita unidas em torno de um bem supremo: governar o Estado capitalista. Tal
é a ética da oligarquia política híbrida. Uma vez FHC disse: “eu tenho um pé na
senzala”. Esta frase revelava para a nação o desejo de FHC instalar no Brasil
uma democracia fundamentada em um pensamento político mestiço? Mas para FHC tal
pensamento só poderia ser uma paródia de um verdadeiro pensamento político
mestiço. A oligarquia política híbrida corresponde na política ao sintoma
neurótico da psicologia do indivíduo. Freud concebe o sintoma neurótico como
uma “formação de compromisso”, já que em sua estrutura convivem tensamente duas
forças antagônicas (Eagleton: 122). Na oligarquia política híbrida, há sempre
uma “formação de compromisso” entre duas forças antagônicas:
direita/esquerda.
III
Na eleição de 2014, não há
espectros. A lógica do simulacro está ausente. Então, a eleição é obra do acaso
ou da publicidade (marketing político)? Ou está sendo regida pelo inconsciente
político – uma interseção entre o Real e o Simbólico que subsume o imaginário
político brasileiro? Não é preciso pensar na possibilidade do inconsciente
político operar como causa ausente da
política no século XXI? O discurso do inconsciente é estruturado como uma
linguagem. Trata-se da Ordem da Lei e do Direito de assinação atributiva ou
excludente sob a forma da Ordem do significante, ou seja, sob a forma de uma
Ordem formalmente idêntica à ordem da linguagem (Althusser: 23, 26). Linguagem
política! Linguagem articulada a partir de dois significantes-mestre: público e
privado. O Real é o significante foracluído do simbólico, ou seja, impossível de
ser simbolizado. A entrada em cena do inconsciente político tem como causa a
morte do candidato do PSB, Eduardo Campos. Tal morte é o real impossível de ser
simbolizado. Marina Silva assumiu o lugar de Eduardo Campos e as pesquisas de
opinião indicam que ela será a opositora de Dilma no segundo turno. Com exceção
da eleição de 1989, as eleições presidenciais têm sido um confronto entre o PT
e o PSDB. Um simulacro de confronto entre o capital e o trabalho. Isto não caracteriza
a eleição no reino da oligarquia política híbrida? Mas para a população, Marina
é o significante capaz de encontrar um caminho para a crise brasileira? Tal
crise é um sintoma da eleição de 2014. A crise é o segredo bem guardado pela elite
econômica e pela oligarquia política híbrida. Como o texto do sonho, o sintoma
revela e oculta simultaneamente. Os jornais televisivos falam cotidianamente
dele. E a crise, é possível descrevê-la?
Um primeiro aspecto da crise é a
lógica da justiça que regula a política brasileira no século XXI. Trata-se de
uma justiça que põe para funcionar o princípio da justiça oligárquica
brasileira colonial: ajudar os amigos, e prejudicar os outros? Fazer o bem para
os idênticos e prejudicar os diferentes? O PT é pilotado por tal justiça na era
lula? A declaração de que o partido vai transformar a vida do governo de Marina
em uma sucursal do inferno na terra não é algo pilotado pela justiça
oligárquica? O fim da oligarquia política híbrida significa o fim da política
para o PT como algo positivo? Significa lançar o país em uma crise política do
tipo venezuelana? As declarações de Marina não parecem apontar para a
construção de uma vontade política que expressa o desejo de encerrar o ciclo no
poder da oligarquia política híbrida? O PT não poderia fazer parte desta
vontade política saindo da órbita da lógica do simulacro? Marina advoga uma
outra justiça para a articulação da política? A política não deve ter como cimento
a família ou as redes de amizade oligárquicas, cimento da justiça oligárquica.
Não se trata de articular a política pela ética oligárquica de fazer o bem para
os amigos, e aos inimigos a lei. Trata-se de articular a política a partir do
princípio socrático, que chegou até ao cristianismo primitivo, de não prejudicar
ninguém. Uma justiça que não opere, na política, a partir da dialética
identidade versus diferença.
Em posse do governo federal, o PT
como partido hegemônico da oligarquia política híbrida não articula a política
pela justiça oligárquica colonial. Então, qual é a lógica da justiça petista?
Ajudar os amigos e buscar um equilíbrio com o inimigo para evitar a crise da
oligarquia política híbrida. Trata-se de evitar a presença de Mefistófeles na
política. Mefistófeles diz: “Sou parcela do Além, força que cria o mal e também
faz o bem” (Goethe: 59). Com Goethe, o Diabo não é inscrito no lugar do grande
Outro da política? Dividir os bens públicos com o “inimigo” – os governadores
de oposição, por exemplo - não é um modo de evitar a posição do diabo na
política? Collor que só sabia viver a política pela articulação da velha
justiça oligárquica não foi abandonado pela elite política? Ele não seguia
fervorosamente a ideia de justiça mefistofeliana? Quando a multidão pediu na rua o seu
impeachment, nem o pacto com o diabo foi capaz de salvá-lo. Collor colocou em
prática um contrato com o diabo que aplicava a justiça oligárquica de um modo
restrito: “para os amigos tudo, para os outros a lei”. Os amigos eram o pessoal
restrito ao bando oligárquico, basicamente de Alagoas, seu estado natal. A
justiça oligárquica ampliada teve uma longa vida no governo autocrático de José
Sarney. Através dela, Sarney transformou a transição para a democracia em um
regime autoritário civil (Silveira: 2013) que durou uma eternidade. Entretanto
na ideologia dominante patrocinada pela velha justiça oligárquica colonial, ele
é glorificado como a nêmesis do regime autoritário militar e o campeão da
democracia de 1988. A justiça socrática
de Marina não significa um caminho para desfazer ou os nós da política amarrada
pela oligarquia política híbrida, ou os nós da justiça oligárquica colonial
capaz de amarrar a política brasileira no século XXI?
IV
Qual é a ética da oligarquia
política híbrida? A oligarquia brasileira tradicional fez da riqueza o seu bem
supremo. O privatismo – a apropriação privada da riqueza pública – é o
significante que a articula no espaço político. A oligarquia política híbrida
tem a conservação do poder como seu sumo bem. A autarquia econômica é o
significante que sustentou a oligarquia tradicional, significante geoeconômico,
territorial (engenho, fazenda), que está na origem da transição da oligarquia
como discurso do senhor para o mundo “moderno”. O privatismo e a autarquia
sustentam, por um lado, a apropriação privada da riqueza e, por outro, o homem
oligárquico como homo clausus. O
corolário é a articulação, no campo simbólico, da cidade oligárquica como modelo para a política brasileira. A
oligarquia política híbrida é articulada pelos significantes supracitados que a
enredam como inconsciente político. Mas a ética dela tem a conservação do poder
como bem supremo. O projeto de poder do PT – não deixar o poder federal,
enquanto existir a democracia de 1988 – é a vontade de poder como expressão de
tal ética.
A ética da oligarquia política
híbrida é regulada por um certo realismo político. Trata-se da tentativa de
subtrair os atos políticos à qualquer avaliação moral. O realismo político
professa que a ética é algo do domínio da vida privada. A política é uma esfera
autônoma integralmente separada da dimensão ética. Por isso, a política
realista se define pela procura de certos efeitos a qualquer preço, sejam quais
forem os meios, aos quais se deve recorrer, com a consequente exclusão da
dimensão moral. Para a oligarquia política híbrida, a moral é uma forma de
consciência, uma ideologia, ou seja, um conjunto de ideais, normas e juízos de
valor – juntamente com atos humanos respectivos – que servem aos interesses de
um determinado grupo social. Esta visão de mundo é derivada do marxismo do PT e
da formação marxista de Fernando Henrique Cardoso – principal ideólogo do PSDB e da
oligarquia política híbrida.
O mensalão é um fato produzido
pelo realismo político do PT – que governava com Lula – que levou os dois
principais militantes do núcleo duro estalinista do PT a serem condenados pelo
STF. Outro fato deste tipo é a quase implosão da Petrobras no governo Dilma
Rousseff, provocado pela corrupção dos partidos da base aliada e pela gestão
irracional da empresa operada pela lógica privada de apropriação da riqueza
pública (privatismo). Outro fato é o uso privado pelo PT e PMDB e outros
partidos do capital dos Fundos de Pensão, revelado pela Operação Lava Jato da
Polícia Federal. Esta é uma dimensão da crise brasileira que tem como causa
ausente a soberania do discurso do senhor colonial sobre a nossa política no
século XXI.
Depois do mensalão, o PT deixou
de ser o partido que pela ética republicana se contrapunha a ética oligárquica.
O egoísmo ético oligárquico promove a
sujeição do universal ao particular. Ele não é apenas uma ideologia, mas uma
forma real de comportamento efetivo do homo
clausus oligárquico. Ele é parte de um processo “vivido” inconsciente e
institucional no qual a lógica privada subsume a lógica pública do inconsciente
político.
A relação do PT com a estrutura
oligárquica obedece à lógica heterônoma. Ele é uma caixa de ressonância de uma
voz que lhe fala de fora - do inconsciente político como cadeia causal do
discurso oligárquico. Há uma determinação externa que faz do egoísmo ético
petista o avesso de um fato moral, pensando o ethos como uma forma de vida política e o mores como “costumes” no sentido de um conjunto de normas ou regras
adquiridos pelo hábito. Não há subjetivação do discurso do mestre pelo PT como
algo substituto à subjetivação marxista-leninista (estalinismo). Assim, o PT
continua, instrumentalmente, renegando seu papel de partido dirigente da
oligarquia política híbrida na era Lula, e renegando que seja, ao lado do PMDB,
o principal dispositivo de repetição da cultura política oligárquica colonial uma
vez que esta funciona para ele como um Deus
ex machina. Para o PT, a consciência é menos algo dentro de nós que algo ao
redor de nós e entre nós, uma rede de significantes que nos constitui
inteiramente, de fora, do exterior. Assim, o partido se mantém puro em seu ser
político como subjetividade marxista-leninista. Este é o espírito dos
revolucionários que tem raízes no populismo russo (narodovolchestvo). No Os
Demônios, Dostoiévski escreveu: “Para o homem russo a honra é apenas um
fardo supérfluo. Aliás, em toda a sua história sempre foi um fardo. O que mais
pode atraí-lo é o franco “direito à desonra”. A nota do Editor diz que o nosso
escritor joga com uma passagem da Publicação
da Sociedade Vingança do Povo: “Nós, do povo...guiados pelo ódio a tudo o
que não é o povo, somos isentos do conceito de obrigações morais e de honra em
relação ao mundo que odiamos e do qual nada espera a não ser o mal...” (Dostoiévski:
360). Por caminhos tortuosos, o populismo russo não se tornou a matriz
simbólica do marxismo-leninismo? Nas mãos do PT, a política brasileira do século
XXI não tem um colorido russo?
Para o populismo russo petista, a
quase implosão da Petrobras – um sintoma da crise brasileira – não diz respeito
ao ser político do partido. Em setembro de 2014, o engenheiro Paulo Roberto Costa – ex-diretor da Petrobrás entre 2004 e 2012 – usou a delação premiada
para não acabar como Marco Valério, operador financeiro do mensalão condenado a
várias décadas de prisão. As investigações da PF revelam a existência de uma
ampla rede de corrupção (privatismo) na empresa envolvendo funcionários de
carreira, grandes empreiteiras, doleiros e políticos importantes. Para terem
acesso aos contratos da estatal, as empreiteiras eram aconselhadas a reverterem
parte de seus lucros aos cofres da rede de partidos do governo petista. Depois
de lavado por doleiros, o dinheiro era distribuído entre os políticos e os
partidos. Faziam parte de tal rede três governadores, seis senadores, um
ministro de Estado e 25 deputados federais. Entre os mais notáveis estavam o
presidente do Senado, Renam Calheiros (PMDB), o senador Ciro Nogueira,
presidente do PP, e o tesoureiro nacional do PT, Vaccari Neto. Entre os
governadores, Sérgio Cabral (PMDB), do Rio de Janeiro, e a filha de José
Sarney, Roseana, do Maranhão. Paulo Roberto Costa declarou que conversou
frequentemente com o então presidente Lula e que costumava tratar com ele dos
assuntos da Petrobras: “Por várias vezes, tratei diretamente com o presidente
Lula” (Veja. 10/09/2014). A quase implosão da estatal é um trabalho político da
oligarquia política híbrida que foi pilotada pela mesma lógica da oligarquia
brasileira tradicional: o privatismo. Tal lógica beneficiava o governo Dilma,
pois o dinheiro sujo, arrecadado pela rede privatista, bancava a base de
sustentação do governo no Congresso. O “presidencialismo de coalizão” não é uma
necessidade da política brasileira, mas um mecanismo que sustenta o poder da
oligarquia política híbrida. Trata-se da miséria da política que submete o
presidente da República à lógica privatista do discurso do mestre. Assim, os
presidentes petistas substituíram a ética republicana de usar o governo para
fazer o Bem para o maior número de pessoas pela ética oligárquica de fazer o
Bem para os amigos. Movendo bilhões de dólares, a “petrogate” explica a fala de
Paulo Roberto Costa: “Se eu falar, não vai ter eleição”. Frase sibilina que
retém o segredo da crise brasileira. Esta é a crise do modelo político
brasileiro criado na década de 1990 que não alterou em um milímetro a estrutura
simbólica (estrutura de poder) que articula a política brasileira. Dois
partidos modernos (PT e PSDB) se transformaram em suporte e veículo do discurso
do mestre colonial. O marxista Caio Prado Jr. sempre esteve certo em apontar a
repetição do Brasil colonial no Brasil republicano. O pensamento conservador de
um Oliveira Vianna e de um Gilberto Freyre também iluminou este fato. A
possibilidade da vitória de Marina Silva não é uma conclusão lógica da crise
brasileira? O modelo político está em crise e a população inventa um líder
carismático como solução lógica para a crise? A vida pessoal e política de
Marina a qualifica para ocupar o lugar do líder carismático? A população
inventa o líder carismático como voz do discurso do Outro, da Ordem Simbólica. O
problema é que a ordem simbólica não pode evitar a lógica do insignificante na
política (Hegel: 26). As virtudes do líder carismático podem ser
insignificantes para resolver a crise brasileira. Na política, as paixões, os
objetivos do interesse particular e a satisfação do egoísmo são fatores mais
poderosos que a razão e as virtudes; seu poder está em não considerar nenhum
dos limites que o direito e a moralidade lhes querem impor. Aqui, trata-se de
um direito e de uma ética que não são a expressão de vontade de poder
oligárquica ou capitalista. Mas na visão de Hegel, se o Estado não é apenas um
aparelho, nem tudo está perdido: se o Estado é o que existe, é a vida real e
ética, pois ele é a unidade do querer universal, essencial, e do querer
objetivo – isso é a moralidade objetiva (Hegel: 39). O mundo real, o bem
verdadeiro e a razão divina universal têm o poder de se realizar. Esse bem e
essa razão em sua representação mais concreta é Deus. Deus governa o mundo, e o
conteúdo de seu governo, a realização de seu plano, é a história universal
(Hegel: 37-38). O grande Outro governa a política na história universal. Isso não
é um princípio de esperança para os povos submetidos ao inferno do discurso do
mestre colonial no século XXI? No início reinou Cronos, o tempo. Foi a era de
ouro, sem obras morais. O que foi criado, os feitos dessa época – foi devorado
por ele mesmo. Um Deus político dominou o tempo e impôs um objetivo ao seu
curso, criando uma obra moral: o Estado (Hegel: 69-70). Esta mitologia
hegeliana da criação do Estado pelo grande Outro como um fato ético remete a
política para a dimensão da lógica pública do inconsciente político. Algo que o
capitalismo reduziu aos interesses da burguesia. Só foi possível conceber a
ideia do Estado como aparelho que serve aos interesses de uma classe, quando
ocorreu a subsunção integral do Estado (público) ao capital (privado). Como
aparelho, o Estado deixa de ser articulado pelo grande Outro. A categoria
interesse toma o lugar da ordem simbólica na articulação da política. Esta
secularização abjeta da política é o desencantamento de um mundo que quer
excluir o inconsciente político como um fator determinante da vida política.
BIBLIOGRAFIA
ALTHUSSER, Louis. Positions. Freud et Lacan. Paris:
Editions Sociales. 1976
DELEUZE E GUATTARI, Gilles e Félix. O anti-édipo. Capitalismo e esquizofrênia. Portugal: Assírio e
Alvim. Sem data
DERRIDA, Jaques. Espectros de Marx. RJ: Relume-Dumará.
1994
DOSTOIÉVSKI. OS demônios. SP: Editora 34. 2005
GOETHE. Fausto e Werther. SP: Nova Cultural. 2002
EAGLETON, Terry. Ideologia. SP: Editora da Universidade
Estadual Paulista e Editora Boitempo. 1997
HEGEL. Filosofia da história. Brasília: Editora da UNB. 1995
LIMA BARRETO. Triste fim do Policarpo Quaresma. SP:
Brasiliense. 1959
MARX. Os Pensadores. SP: Editora Abril Cultural. 1974
SILVEIRA, José Paulo Bandeira da.
Leitura da política brasileira
(1985-1992). “Publique-se”. Livraria Saraiva. 2013
SILVEIRA, José Paulo Bandeira. Oligarquia e política. “Publique-se”.
Livraria Saraiva. 2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário