José Paulo
O livro de Eric Voegelin “Idade Média tardia” (“História das
ideias políticas, volume 3”) é o primeiro livro que estuda a história europeia
a partir da ideia de campo de poderes. Vários problemas são elaborados por
Voegelin, e ele chega a falar da institucionalização do campo de poderes antes
de Foucault (Foucault. V. 2: 579) falar da estatização do campo de poderes.
Na história europeia, o campo de poderes mais simples é
aquele com centros definidos pelo poder papal e o poder do imperador. Trata-se
da realidade política absorvente do Sacrum imperium. (Voegelin: 253).
A evolução do campo de poderes europeu se torna mais complexa
com o aparecimento da monarquia nacional (francesa e inglesa) ou reino do poder
régio e a cidade-estado associada ou não ao principado territorial. Uma
igreja-estado aparece no século XIV. Trata-se do poder papal territorial com
força secular:
“Como resultado, a Igreja tornou-se a primeira monarquia
absoluta da renascença com uma burocracia central competente e um sistema
financeiro impiedosamente eficiente. Padrões de eficiência similares foram
alcançados nos reinos nacionais somente no final do século XV, na Inglaterra
dos Tudors e na França de Luís XI – embora se deva ter cuidado para não
interpretar, como às vezes acontece, o post hoc como propter hoc”.
(Voegelin: 197-198).
O problema da institucionalização do campo de poderes
acontece na monarquia nacional como estatização do campo de poderes. A
institucionalização do campo de poderes do regnum consiste em buscar o
fundamento do poder (sua legitimidade política) no povo articulado como uma
forma política, antes da soberania popular moderna. (Voegelin:193)
Weber define instituição assim:
“Denominamos instituição uma associação cuja ordem estatuída
se impõe, com (relativa) eficácia, à toda ação com determinadas características
que tenha lugar dentro de determinado âmbito de vigência”. (Weber: 42).
Instituição é associação, ordem eficaz na ação, lugar de um
âmbito de vigência. Este lugar é a propriedade das regras jurídicas que estão
prontas para propagar efeitos, tão logo aconteçam no mundo fático.
A regra jurídica remete para um discurso virtual como a
gramática da política. A gramática propaga efeitos no campo de poderes, se
acontece no mundo fático. A institucionalização do campo de poderes ocorre
através da gramaticalização do campo pelos sujeitos, articulados em uma
associação que eles habitam.
A Institucionalização do regnum ocorre através da
relação do rei com o povo no processo de legitimação do poder régio pelo povo. Tal
fenômeno existe antes da legitimação do governante moderno pela processa
eleitoral da soberania popular. Há procedimentos específicos para a
institucionalização do poder do imperador, do papa e dos mandatários da
cidade-estado.
A institucionalização do campo de poderes significa a
atualização e reatualização permanente das regras da gramática da associação política,
tendo na cabeça o imperador, o papa, o rei, o doge, o primeiro-ministro do
parlamentarismo, o presidente da república, enfim, o governante.
Weber diz:
“Chamamos associação
uma relação social fechada para fora ou cujo regulamento limita a participação
quando a observação de sua ordem está garantida pelo comportamento de
determinadas pessoas, destinadas particularmente a esse propósito: de um <dirigente> e, eventualmente, dum <quadro administrativo> que, dado o caso, têm também, em
condições normais, o poder de representação”. (Weber: 39).
A relação social do campo de poderes institucionalizados depende
do uso da gramática da política pelos sujeitos como entrelaçamento de signo,
elementos normativos e poder polítco:
“A comunicação de significado em interação, cumpre sublinhar,
só analiticamente é separável da operação de sanções normativas. Isso é óbvio,
por exemplo, na medida em que o próprio uso da linguagem é sancionada pela
própria natureza de seu caráter “público”, (Giddens: 22-23).
Na institucionalização do campo de poderes, o símbolo (e não
o signo) é o guia para a interpretação
da história do campo de poderes. São os símbolos da gramática da política os
organizadores e de função de articulação política do campo de poderes: o
imperador, o rei, o papa, o doge, o príncipe do principado, o
primeiro-ministro, o presidente da república.
“Na terminologia indicada no quadro da página anterior, os
“signos” implícitos em “significação” não devem ser equiparados a “símbolos”.
Muitos autores tratam os dois termos como equivalentes, mas eu considero os
símbolos, interpolados em ordens simbólicas, como uma dimensão principal do
“grupamento” de instituições. Os ´símbolos coagulam os “excedentes de
significado” implícitos no caráter polivalente dos signos; eles unem aquelas
interseções de códigos que são especialmente ricas em diversas formas de associação
de significados, operando ao longo dos eixos da metáfora e da metonímia”.
(Giddens: 26).
A política como ordem institucional do campo de poderes não é
uma categoria antropológica baseada na categoria de autoridade, pois a antropologia
faz da política uma abstração inconsequente, vulgar e medíocre, da história da
política na plurivocidade de campo de poderes:
“Mas o trabalho de antropólogos demonstra de modo bastante
efetivo que existem fenômenos ‘políticos’ – relacionados com a ordenação das
relações de autoridade – em todas as sociedades”. (Giddens: 27).
A política é uma categoria histórica da história do campo de
poderes europeu e ocidental. Há política: do imperador, do papa, do rei, do
príncipe, do doge, do primeiro-ministro com seu partido, do presidente da
república, enfim, política do governante ou de seu ersatz, o antigovernante.
A política tem seu sujeito no campo de poderes. Trata-se do sujeito de um discurso político que faz
pendant com o sujeito foucaultiano?
O sujeito político é o ersatz do sujeito foucaultiano como
símbolo na história da plurivocidade de campos de poderes/saberes:
“A) Primeira questão: quem fala? Quem, no conjunto de todos
os sujeitos falantes, tem boas razões para ter esta espécie de linguagem? Quem
recebe dela sua singularidade, seus encantos, e de quem, em troca, recebe, se
não sua garantia, pelo menos a presunção de que é verdadeira? Qual é o estatuto
dos indivíduos que têm – e apenas eles – o direito regulamentar ou tradicional,
juridicamente definido ou espontaneamente aceito, de proferir semelhante
discurso? O status do médico compreende critérios de competência e de
saber: instituições, sistemas, normas pedagógicas; condições legais que dão
direito – não sem antes lhe fixar limites – à prática e a experimentação do
saber. Compreende, também, um sistema de diferenciação e de relações (divisão
das atribuições, subordinação hierárquica, complementariedade funcional,
demanda, transmissão e troca de informações) com outros indivíduos ou outros
grupos que têm eles próprios seu status (com o poder político e seus
representantes, com o Poder Judiciário, com diferentes corpos profissionais,
com os grupos religiosos e, se for o caso, com os sacerdotes” (Foucault. 2017:
61
2
O sujeito político é o efeito da gramática e resistência à
gramática (efeito da gramática e livre-arbítrio) no campo de poderes/saberes:
Resta deixar claro que é realmente de sujeito que se trata, o
que é corroborado pelo fato de que, na minha lógica, o sujeito se exaure ao se
produzir como efeito de significante, mantendo-se tão distinto deste”. (Lacan.
S. 19: 166).
O sujeito dissipa-se em sua singularidade na luta por
conservar o poder político como <sgrammaticatura>, isto é, falta de gramática da política (Gramsci: 4341-4342),
no sentido: <o combate exauriu-lhe as forças de seu livre-arbítrio>. O saber do sujeito esgota-se no exercício do poder político
como economia do poder enquanto estratégias e táticas e objetivos no campo do
poder como conservação do poder e contrapoder. Campo definido pelas estratégias
do poder e as resistências ao poder. (Ewald: 13).
O sujeito político é o ersatz do médico foucaultiano; médico
da política na articulação política de uma formação social. Ou o antisujeito
destruidor da plurivocidade do campo de poderes/saberes.
3
O poder
econômico se desenvolve com o poder monetário. (Voegelin: 197). Trata-se de uma
abstração matemática no campo de poderes/saberes, que distingue o campo de
poderes feudal do campo de poderes moderno, em geral:
“Já se supôs tal anseio por ‘mais’ propriedade, que essa
compulsão aquisitiva fosse uma característica exclusiva do ‘capitalismo’ e,
assim, dos tempos modernos. Segundo nessa opinião, a sociedade medieval se
distingue pela satisfação com uma renda apropriada à posição social de cada um.
Dentro de certos limites, essa tese é sem dúvida correta, se
o desejo de ‘mais’ é entendido como se aplicando apenas ao dinheiro. Mas,
durante boa parte da Idade Média, não era a posse de dinheiro, mas a da terra,
que constituía a forma essencial de propriedade. A compulsão aquisitiva teve
assim, necessariamente, forma e direção diferentes. Exigia modos de conduta
diversos dos vigentes numa sociedade monetária e de economia de mercado. Pode
ser verdade que só nos tempos modernos é que se desenvolveu uma classe
especializada no comércio, com o desejo de ganhar um volume cada vez maior de <dinheiro>, através de um trabalho incessante.
As estruturas sociais que, na economia predominantemente de troca da Idade
Média, levavam a um desejo sempre maior de possuir meios de produção – e seus
aspectos estruturais, importantes, em ambos os casos – são menos fáceis de se
perceber porque o que se desejava era terra, não dinheiro. Além do mais, as
funções políticas e militares ainda não se haviam diferenciado das econômicas,
como ocorreu gradualmente na sociedade moderna. A ação militar e as ambições
políticas e econômicas eram, na maior parte, idênticas; o desejo ardente de
aumentar a riqueza sob a forma de terra equivalia à mesma coisa que ampliar a
soberania territorial e aumentar o poder militar. O homem mais rico numa
determinada área, isto é, o que possuía mais terras, era portanto o
militarmente mais poderoso, com o maior número de servidores e, a um só tempo,
comandante do exército e governante”. (Elias: 46).
CAMPO DE PODERES ECONÔMICO CIBERNÉTICO
No “Manifesto do Partido Comunista”,
Marx e Engels escrevem: “O descobrimento da América e a circum-navegação da
África ofereceram à burguesia em ascensão um novo campo de atividades. Os
mercados das Índias e da China, a colonização da América, o intercâmbio com as
colônias, a multiplicação dos meios de cambio e das mercadorias em geral
imprimiram ao comércio, à navegação e à indústria um impulso até então
desconhecido, e aceleraram, com isto, o desenvolvimento do elemento
revolucionário da sociedade feudal em colapso”.
A força-motor da passagem final do
feudalismo para a idade moderna não é uma classe sujeito (a burguesia), e sim o
campo de poderes econômico moderno atlântico, cujo símbolo é a descoberta da
América.
O campo de poderes econômico tem como
motor o capital moderno, como capital dinheiro? “o capital não é uma coisa, e
sim uma relação social entre pessoas, efetivada através de coisas”.
O campo de poderes econômico mundial
se funda através da associação do “capital” comercial com o Estado nacional.
Portugal Espanha se tornam o símbolo dessa aliança que funda a época moderna.
A escravidão do trabalho colonial é o
outro símbolo do campo de poderes econômico moderno. A acumulação primitiva de
capital é o signo econômico do campo de poderes econômico, que funda a época
moderna. Os métodos da acumulação primitiva nada têm de idílicos. Eles
encontram-se na origem da violência moderna na economia e na política.
Rigorosamente, “os meios de produção
e os de subsistência, dinheiro e mercadoria em si mesmos não são capital”.
Capital como força do sistema capitalista é o capital produtivo, não o
comercial. “O processo que cria o sistema capitalista consiste apenas no
processo que retira ao trabalhador a propriedade de seus meios de trabalho, um
processo que transforma em capital os meios sociais de subsistência e os de
produção e converte em assalariados os produtores diretos. A chamada acumulação
primitiva é apenas o processo histórico que dissocia o trabalhador dos meios de
produção. É considerada primitiva porque constitui a pré-história do capital e
do modo de produção capitalista”.
O campo de poderes econômico moderno
mundial acabado tem dois poderes: o capital industrial moderno e o Estado
nacional.
Hoje, o neoliberalismo em colapso tem
de reconhecer o campo de poderes econômico cibernético globalizado como a
força-motor da reprodução ampliada de capital e da acumulação capitalista em
escala planetária.
No Brasil, o neoliberalismo caboclo
de um Bolsonaro, um Paulo Guedes e um Rodrigo Maia abnega (governantes como
antisujeitos da destruição da plurivocidade de campo de poderes/saberes) abjura o campo de poderes econômico mundial
como força motriz da época do capitalismo globalizado cibernético.
5
Na passagem para os tempos modernos,
a história gramatical do campo dos poderes modernos tem sua singularidade nas
Américas como campo do futuro. Hegel diz;
“A América é, portanto, a terra do
futuro na qual se revelará, em tempos vindouros, o elemento importante da
história universal – talvez a disputa entre a América do Norte e a do Sul. É
uma terra de aspirações para todos os que deixam o museu de armas históricas da
‘velha Europa. Menciona-se que Napoleão tenha dito:’ Cette Vieille Europe
m’ennuie’. Cabe à América abandonar o solo sobre o qual se tem feito a história
universal. O que nela aconteceu até agora nada mais é do que o eco do Velho
Mundo, a expressão de uma vida estrangeira.” (Hegel:79).
A América do Norte é a invenção de
uma nova gramaticada política na qual o <legislator> americano combina, sincreticamente, a política moderna
(republicanismo democrático) com a cultura judaica da antiguidade:
“Nada é mais singular e ao mesmo
tempo mais instrutivo que a legislação daquela época: é nela, principalmente,
que se encontra a chave do grande enigma social que os Estados Unidos apresentam
ao mundo em nossos dias.
Entre esses monumentos,
distinguiremos particularmente, como um dos mais caraterísticos, o código de
leis que o pequeno Estado de Connecticut promulgou em 1650. Em primeiro lugar,
ocuparam-se os legisladores de Connecticut das leis penas; e, para redigi-las,
concebem a estranha ideia de se abeberarem nos textos sagrados.
‘Quem quer adorar outro Deus que não
seja o Senhor – dizem eles, para começar, - aquele certamente morrerá’.
Seguem-se dez ou doze disposições da mesma natureza, tomadas de empréstimo,
textualmente, ao Deuterônimo, ao Êxodo e ao Levítico. A blasfêmia, bruxaria, o
adultério e o estupro são castigados com a morte; a ofensa cometida por um
filho contra seus pais é capitulada na mesma pena. Dessa forma, a legislação de
um povo rude e semicivilizado era transportada ao seio de uma sociedade cujo
espírito era esclarecido e brandos os costumes; em consequência, jamais se viu
a pena de morte mais frequentemente prescrita nas leis, nem mais raramente
aplicada”. (Tocqueville: 82-83).
O campo de poderes americano tem que
ser estudado para a leitura da história do fim da história ocidental. Isso
requer um ensaio solitário.
Elias, Norbert. O processo
civilizador. V. 2. Formação do Estado e civilização. RJ: Jorge Zahar Editor,
1993
EWALD, François. Foucault. A norma e
o direito. Lisboa: Veja, 1993
FOUCAULT, Michel. Dits e écrits. V.
2. Paris: Gallimard, 1994
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do
saber. RJ: Forense Universitária, 2012
GIDDENS, Anthony. A constituição da
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GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere.
Torino: Einaudi, 1977
HEGEL. Filosofia da história.
Brasília: UNB, 1995
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro
19. ... ou pior. RJ: Zahar, 2012
TOCQUEVILLE, Alexis de. De la
démocratie en Amérique. Paris: Gallimard, 1961/1968
WEBER, Max. Economia y sociedad.
México: Fondo de Cultura Económica, 1984
VOEGELIN, Eric. Idade Média tardia.
História das ideias políticas. V. 3. SP: Realizações Editora, 2013
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