terça-feira, 3 de dezembro de 2019

HISTÓRIA E CAMPO DE PODERES


José Paulo


O livro de Eric Voegelin “Idade Média tardia” (“História das ideias políticas, volume 3”) é o primeiro livro que estuda a história europeia a partir da ideia de campo de poderes. Vários problemas são elaborados por Voegelin, e ele chega a falar da institucionalização do campo de poderes antes de Foucault (Foucault. V. 2: 579) falar da estatização do campo de poderes.
Na história europeia, o campo de poderes mais simples é aquele com centros definidos pelo poder papal e o poder do imperador. Trata-se da realidade política absorvente do Sacrum imperium. (Voegelin: 253).
A evolução do campo de poderes europeu se torna mais complexa com o aparecimento da monarquia nacional (francesa e inglesa) ou reino do poder régio e a cidade-estado associada ou não ao principado territorial. Uma igreja-estado aparece no século XIV. Trata-se do poder papal territorial com força secular:
“Como resultado, a Igreja tornou-se a primeira monarquia absoluta da renascença com uma burocracia central competente e um sistema financeiro impiedosamente eficiente. Padrões de eficiência similares foram alcançados nos reinos nacionais somente no final do século XV, na Inglaterra dos Tudors e na França de Luís XI – embora se deva ter cuidado para não interpretar, como às vezes acontece, o post hoc como propter hoc”. (Voegelin: 197-198).
O problema da institucionalização do campo de poderes acontece na monarquia nacional como estatização do campo de poderes. A institucionalização do campo de poderes do regnum consiste em buscar o fundamento do poder (sua legitimidade política) no povo articulado como uma forma política, antes da soberania popular moderna. (Voegelin:193)
Weber define instituição assim:
“Denominamos instituição uma associação cuja ordem estatuída se impõe, com (relativa) eficácia, à toda ação com determinadas características que tenha lugar dentro de determinado âmbito de vigência”. (Weber: 42). 
Instituição é associação, ordem eficaz na ação, lugar de um âmbito de vigência. Este lugar é a propriedade das regras jurídicas que estão prontas para propagar efeitos, tão logo aconteçam no mundo fático.
A regra jurídica remete para um discurso virtual como a gramática da política. A gramática propaga efeitos no campo de poderes, se acontece no mundo fático. A institucionalização do campo de poderes ocorre através da gramaticalização do campo pelos sujeitos, articulados em uma associação que eles habitam.
A Institucionalização do regnum ocorre através da relação do rei com o povo no processo de legitimação do poder régio pelo povo. Tal fenômeno existe antes da legitimação do governante moderno pela processa eleitoral da soberania popular. Há procedimentos específicos para a institucionalização do poder do imperador, do papa e dos mandatários da cidade-estado.  
A institucionalização do campo de poderes significa a atualização e reatualização permanente das regras da gramática da associação política, tendo na cabeça o imperador, o papa, o rei, o doge, o primeiro-ministro do parlamentarismo, o presidente da república, enfim, o governante.
Weber diz:
“Chamamos  associação uma relação social fechada para fora ou cujo regulamento limita a participação quando a observação de sua ordem está garantida pelo comportamento de determinadas pessoas, destinadas particularmente a esse propósito: de um <dirigente> e, eventualmente, dum <quadro administrativo> que, dado o caso, têm também, em condições normais, o poder de representação”. (Weber: 39).   
A relação social do campo de poderes institucionalizados depende do uso da gramática da política pelos sujeitos como entrelaçamento de signo, elementos normativos e poder polítco:
“A comunicação de significado em interação, cumpre sublinhar, só analiticamente é separável da operação de sanções normativas. Isso é óbvio, por exemplo, na medida em que o próprio uso da linguagem é sancionada pela própria natureza de seu caráter “público”, (Giddens: 22-23). 
Na institucionalização do campo de poderes, o símbolo (e não o signo) é o guia  para a interpretação da história do campo de poderes. São os símbolos da gramática da política os organizadores e de função de articulação política do campo de poderes: o imperador, o rei, o papa, o doge, o príncipe do principado, o primeiro-ministro, o presidente da república.
“Na terminologia indicada no quadro da página anterior, os “signos” implícitos em “significação” não devem ser equiparados a “símbolos”. Muitos autores tratam os dois termos como equivalentes, mas eu considero os símbolos, interpolados em ordens simbólicas, como uma dimensão principal do “grupamento” de instituições. Os ´símbolos coagulam os “excedentes de significado” implícitos no caráter polivalente dos signos; eles unem aquelas interseções de códigos que são especialmente ricas em diversas formas de associação de significados, operando ao longo dos eixos da metáfora e da metonímia”. (Giddens: 26).
A política como ordem institucional do campo de poderes não é uma categoria antropológica baseada na categoria de autoridade, pois a antropologia faz da política uma abstração inconsequente, vulgar e medíocre, da história da política na plurivocidade de campo de poderes:
“Mas o trabalho de antropólogos demonstra de modo bastante efetivo que existem fenômenos ‘políticos’ – relacionados com a ordenação das relações de autoridade – em todas as sociedades”. (Giddens: 27).   
A política é uma categoria histórica da história do campo de poderes europeu e ocidental. Há política: do imperador, do papa, do rei, do príncipe, do doge, do primeiro-ministro com seu partido, do presidente da república, enfim, política do governante ou de seu ersatz, o antigovernante.    
A política tem seu sujeito no campo de poderes. Trata-se  do sujeito de um discurso político que faz pendant com o sujeito foucaultiano?
O sujeito político é o ersatz do sujeito foucaultiano como símbolo na história da plurivocidade de campos de poderes/saberes: 
“A) Primeira questão: quem fala? Quem, no conjunto de todos os sujeitos falantes, tem boas razões para ter esta espécie de linguagem? Quem recebe dela sua singularidade, seus encantos, e de quem, em troca, recebe, se não sua garantia, pelo menos a presunção de que é verdadeira? Qual é o estatuto dos indivíduos que têm – e apenas eles – o direito regulamentar ou tradicional, juridicamente definido ou espontaneamente aceito, de proferir semelhante discurso? O status do médico compreende critérios de competência e de saber: instituições, sistemas, normas pedagógicas; condições legais que dão direito – não sem antes lhe fixar limites – à prática e a experimentação do saber. Compreende, também, um sistema de diferenciação e de relações (divisão das atribuições, subordinação hierárquica, complementariedade funcional, demanda, transmissão e troca de informações) com outros indivíduos ou outros grupos que têm eles próprios seu status (com o poder político e seus representantes, com o Poder Judiciário, com diferentes corpos profissionais, com os grupos religiosos e, se for o caso, com os sacerdotes” (Foucault. 2017: 61   
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O sujeito político é o efeito da gramática e resistência à gramática (efeito da gramática e livre-arbítrio) no campo de poderes/saberes:
Resta deixar claro que é realmente de sujeito que se trata, o que é corroborado pelo fato de que, na minha lógica, o sujeito se exaure ao se produzir como efeito de significante, mantendo-se tão distinto deste”. (Lacan. S. 19: 166).
O sujeito dissipa-se em sua singularidade na luta por conservar o poder político como <sgrammaticatura>, isto é, falta de gramática da política (Gramsci: 4341-4342),  no sentido: <o combate exauriu-lhe as forças de seu livre-arbítrio>. O saber do sujeito esgota-se no exercício do poder político como economia do poder enquanto estratégias e táticas e objetivos no campo do poder como conservação do poder e contrapoder. Campo definido pelas estratégias do poder e as resistências ao poder. (Ewald: 13).   
O sujeito político é o ersatz do médico foucaultiano; médico da política na articulação política de uma formação social. Ou o antisujeito destruidor da plurivocidade do campo de poderes/saberes.
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   O poder econômico se desenvolve com o poder monetário. (Voegelin: 197). Trata-se de uma abstração matemática no campo de poderes/saberes, que distingue o campo de poderes feudal do campo de poderes moderno, em geral:
“Já se supôs tal anseio por ‘mais’ propriedade, que essa compulsão aquisitiva fosse uma característica exclusiva do ‘capitalismo’ e, assim, dos tempos modernos. Segundo nessa opinião, a sociedade medieval se distingue pela satisfação com uma renda apropriada à posição social de cada um.
Dentro de certos limites, essa tese é sem dúvida correta, se o desejo de ‘mais’ é entendido como se aplicando apenas ao dinheiro. Mas, durante boa parte da Idade Média, não era a posse de dinheiro, mas a da terra, que constituía a forma essencial de propriedade. A compulsão aquisitiva teve assim, necessariamente, forma e direção diferentes. Exigia modos de conduta diversos dos vigentes numa sociedade monetária e de economia de mercado. Pode ser verdade que só nos tempos modernos é que se desenvolveu uma classe especializada no comércio, com o desejo de ganhar um volume cada vez maior de <dinheiro>, através de um trabalho incessante. As estruturas sociais que, na economia predominantemente de troca da Idade Média, levavam a um desejo sempre maior de possuir meios de produção – e seus aspectos estruturais, importantes, em ambos os casos – são menos fáceis de se perceber porque o que se desejava era terra, não dinheiro. Além do mais, as funções políticas e militares ainda não se haviam diferenciado das econômicas, como ocorreu gradualmente na sociedade moderna. A ação militar e as ambições políticas e econômicas eram, na maior parte, idênticas; o desejo ardente de aumentar a riqueza sob a forma de terra equivalia à mesma coisa que ampliar a soberania territorial e aumentar o poder militar. O homem mais rico numa determinada área, isto é, o que possuía mais terras, era portanto o militarmente mais poderoso, com o maior número de servidores e, a um só tempo, comandante do exército e governante”. (Elias: 46).  
                              CAMPO DE PODERES ECONÔMICO CIBERNÉTICO
No “Manifesto do Partido Comunista”, Marx e Engels escrevem: “O descobrimento da América e a circum-navegação da África ofereceram à burguesia em ascensão um novo campo de atividades. Os mercados das Índias e da China, a colonização da América, o intercâmbio com as colônias, a multiplicação dos meios de cambio e das mercadorias em geral imprimiram ao comércio, à navegação e à indústria um impulso até então desconhecido, e aceleraram, com isto, o desenvolvimento do elemento revolucionário da sociedade feudal em colapso”.
A força-motor da passagem final do feudalismo para a idade moderna não é uma classe sujeito (a burguesia), e sim o campo de poderes econômico moderno atlântico, cujo símbolo é a descoberta da América.
O campo de poderes econômico tem como motor o capital moderno, como capital dinheiro? “o capital não é uma coisa, e sim uma relação social entre pessoas, efetivada através de coisas”.
O campo de poderes econômico mundial se funda através da associação do “capital” comercial com o Estado nacional. Portugal Espanha se tornam o símbolo dessa aliança que funda a época moderna.
A escravidão do trabalho colonial é o outro símbolo do campo de poderes econômico moderno. A acumulação primitiva de capital é o signo econômico do campo de poderes econômico, que funda a época moderna. Os métodos da acumulação primitiva nada têm de idílicos. Eles encontram-se na origem da violência moderna na economia e na política.
Rigorosamente, “os meios de produção e os de subsistência, dinheiro e mercadoria em si mesmos não são capital”. Capital como força do sistema capitalista é o capital produtivo, não o comercial. “O processo que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo que retira ao trabalhador a propriedade de seus meios de trabalho, um processo que transforma em capital os meios sociais de subsistência e os de produção e converte em assalariados os produtores diretos. A chamada acumulação primitiva é apenas o processo histórico que dissocia o trabalhador dos meios de produção. É considerada primitiva porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção capitalista”.
O campo de poderes econômico moderno mundial acabado tem dois poderes: o capital industrial moderno e o Estado nacional.
Hoje, o neoliberalismo em colapso tem de reconhecer o campo de poderes econômico cibernético globalizado como a força-motor da reprodução ampliada de capital e da acumulação capitalista em escala planetária.
No Brasil, o neoliberalismo caboclo de um Bolsonaro, um Paulo Guedes e um Rodrigo Maia abnega (governantes como antisujeitos da destruição da plurivocidade de campo de poderes/saberes)  abjura o campo de poderes econômico mundial como força motriz da época do capitalismo globalizado cibernético.
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Na passagem para os tempos modernos, a história gramatical do campo dos poderes modernos tem sua singularidade nas Américas como campo do futuro. Hegel diz;
“A América é, portanto, a terra do futuro na qual se revelará, em tempos vindouros, o elemento importante da história universal – talvez a disputa entre a América do Norte e a do Sul. É uma terra de aspirações para todos os que deixam o museu de armas históricas da ‘velha Europa. Menciona-se que Napoleão tenha dito:’ Cette Vieille Europe m’ennuie’. Cabe à América abandonar o solo sobre o qual se tem feito a história universal. O que nela aconteceu até agora nada mais é do que o eco do Velho Mundo, a expressão de uma vida estrangeira.” (Hegel:79).
A América do Norte é a invenção de uma nova gramaticada política na qual o <legislator> americano combina, sincreticamente, a política moderna (republicanismo democrático) com a cultura judaica da antiguidade:
“Nada é mais singular e ao mesmo tempo mais instrutivo que a legislação daquela época: é nela, principalmente, que se encontra a chave do grande enigma social que os Estados Unidos apresentam ao mundo em nossos dias.
Entre esses monumentos, distinguiremos particularmente, como um dos mais caraterísticos, o código de leis que o pequeno Estado de Connecticut promulgou em 1650. Em primeiro lugar, ocuparam-se os legisladores de Connecticut das leis penas; e, para redigi-las, concebem a estranha ideia de se abeberarem nos textos sagrados.
‘Quem quer adorar outro Deus que não seja o Senhor – dizem eles, para começar, - aquele certamente morrerá’. Seguem-se dez ou doze disposições da mesma natureza, tomadas de empréstimo, textualmente, ao Deuterônimo, ao Êxodo e ao Levítico. A blasfêmia, bruxaria, o adultério e o estupro são castigados com a morte; a ofensa cometida por um filho contra seus pais é capitulada na mesma pena. Dessa forma, a legislação de um povo rude e semicivilizado era transportada ao seio de uma sociedade cujo espírito era esclarecido e brandos os costumes; em consequência, jamais se viu a pena de morte mais frequentemente prescrita nas leis, nem mais raramente aplicada”. (Tocqueville: 82-83).
O campo de poderes americano tem que ser estudado para a leitura da história do fim da história ocidental. Isso requer um ensaio solitário.

Elias, Norbert. O processo civilizador. V. 2. Formação do Estado e civilização. RJ: Jorge Zahar Editor, 1993
EWALD, François. Foucault. A norma e o direito. Lisboa: Veja, 1993
FOUCAULT, Michel. Dits e écrits. V. 2. Paris: Gallimard, 1994
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. RJ: Forense Universitária, 2012
GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. SP: Martins Fontes, 1989
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Torino: Einaudi, 1977  
HEGEL. Filosofia da história. Brasília: UNB, 1995
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 19.  ... ou pior. RJ: Zahar, 2012
TOCQUEVILLE, Alexis de. De la démocratie en Amérique. Paris: Gallimard, 1961/1968
WEBER, Max. Economia y sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1984
VOEGELIN, Eric. Idade Média tardia. História das ideias políticas. V. 3. SP: Realizações Editora, 2013
   
  

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