José Paulo
A categoria de hegemonia vai sendo ab-rogada do vocabulário
da narrativa política. Esse ensaio é uma tentativa de restaurá-la como
narrativa da política ocidental.
A democracia ocidental significa transferência do poder do
povo para o governante hegemônico. Para se conservar, a democracia necessita do
povo como soberania popular de articulação da hegemonia em uma formação social
nacional.
Começo com uma comparação histórica entre EE UU e Brasil:
POVO E CIVILIZAÇÃO
AMERICANA
Desde que a população foi inscrita no campo de poderes ocidental,
o povo surgiu como uma categoria política. Em algumas épocas, a existência
política do povo foi pensada como unidade jurídica. Assim, o direito
articularia a população como povo.
Essa ideia faz pendant com a ideia de povo como unidade
civilizacional?
A unidade jurídica de um povo moderno só pode ser uma unidade
constituída pela Constituição: <unidade constitucional>. Tendo como motor
o povo nos campos de poderes como unidade constitucional, a civilização
significa a constitucionalização da população como povo.
O povo civilizacional surge pela gramaticalização da
Constituição pela população como povo. A Constituição é a gramática do povo, em
primeiro grau, sendo também gramática da formação social na história econômica
nacional.
Nas Américas temos dois fenômenos políticos polares. Os EE UU
como uma civilização americana, pois, definindo seu povo pela gramaticalização
da Constituição, de duzentos anos aproximadamente.
O amor à Constituição é o fato que define a diferença entre
os Estados Unidos e o Brasil. Pode-se falar seguramente em povo norte-americano
como unidade civilizacional constitucional, mas não se pode falar de povo
brasileiro. No Brasil, não existe o amor à gramática constitucional.
O Brasil se caracteriza por destruição das Constituições na
República e pela destruição da Constituição da soberania popular de 1823 por d.
Pedro I. A Constituição outorgada 1824 de d. Pedro I não se constitui como a
gramática (discurso virtual) de transformação da população em povo. A
Constituição 1824 foi a Constituição do escravismo colonial.
A dominação do modo de produção escravista na história
econômica do Brasil independente bloqueou a formação do povo brasileiro. Depois
na República, a destruição contínua das Constituições privou a população de uma
gramática constitucional que a transforma-se em um povo (sujeito político
gramatical) - habitando campos de poderes.
Rigorosamente, não se pode falar de civilização brasileira
como se pode falar de civilização americana, para os Estados Unidos.
A Constituição 1988 poderia ser o ponto-de-partida da
transformação da população em uma unidade civilizacional constitucional. Não
obstantes, forças neoliberais em colapso querem destruir a Constituição 1988 e
pôr no lugar dela uma Constituição neoliberal. Assim, a última oportunidade
histórica de construção do povo brasileiro é Ab-rogada da história da formação
social nacional.
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O povo é um sujeito que existe em um campo de poderes moderno
nacional, em uma formação social nacional. Daí, a ideia de povo-nação, ou
melhor, povo nacional. No entanto, só existe povo como sujeito gramatical em
campo de poderes de uma civilização nacional, até o momento atual.
O amor à Constituição pode ser lido pela história do
cristianismo como amor Dei (amor pela civitas Dei, campo da
gramática da política cristã, como amor pelo discurso virtual) em um contraponto
ao amor sui. Trata-se do amor do indivíduo por si, dos governantes por
si, das nações sujeitas ou possuídas pela paixão (libido) de domínio ou
dominação. (Voegelin: 279).
Como uma força da história ocidental, a libido narcísica
define um conceito de individualidade e de indivíduo., muito explorado por
Freud. Na teoria política, o egoísmo em contraponto ao altruísmo define
sociedades e histórias econômicas mundiais. Em uma polarização gramatical, o
Capitalismo é identificada com o egoísmo e o individualismo e o socialismo com
o altruísmo e o comunitarismo.
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Pensar a hegemonia associada à gramática é um esforço que
venho fazendo já há algum tempo, usando Gramsci:
“Poder-se-ia esboçar um quadro da ‘gramática normativa’ que
opera espontaneamente em toda sociedade determinada na medida em que ela tende
a unificar-se, seja como território, seja como cultura, isto é, na medida em
que nela existe uma camada dirigente cuja função seja reconhecida e seguida. O
número das ‘gramáticas espontâneas’ ou ‘imanentes’ é incalculável; pode-se
dizer, teoricamente, que cada pessoa tem sua gramática. Todavia, ao lado desta
‘desagregação’ de fato, deve-se sublinhar os movimentos unificadores, de maior
ou menor amplitude, seja como área territorial, seja como ‘volume linguístico’.
As ‘gramáticas normativas’ escritas tendem a abarcar todo um território
nacional e todo o ‘volume linguístico’, a fim de criar um conformismo
linguístico nacional unitário que, outrossim, coloca num plano mais elevado o
‘individualismo’ expressivo, já que cria um esqueleto mais robusto e homogêneo
para o organismo linguístico nacional, do qual cada indivíduo é o reflexo e o
intérprete”. (Gramsci: 2343).
A camada dirigente reconhecida e seguida pelo <povo> designa a classe dirigente ou classe
hegemônica nacional. O povo é constituído de uma plurivocidade de gramática até
o ponto sem retorno de cada indivíduo possuíndo sua própria gramática?
No domínio da fala, as gramáticas espontâneas fazendo pendant
com a <sgrammaticatura> ou falta de gramática. Elas existem
como buraco imaginário (Montesquieu:35) de implosão do espaço da gramática
normativa escrita da sociedade nacional; implosão da possibilidade de
constituição do povo nacional gramatical, motor do Estado nacional moderno como
junção de sociedade civil e sociedade política.
O indivíduo é o reflexo e o intérprete da gramática nacional.
Aqui, mergulhamos no campo dos sujeitos
e indivíduos. Depois, temos que pensar a gramática nacional no campo das forças
históricas em uma plurivocidade de campo de poderes/saberes.
1)
O
indivíduo é o reflexo da gramática. Lacan diz:” O que enuncio do próprio
sujeito como sendo efeito do discurso” (Lacan. S.18: 47). O sujeito é efeito do
discurso virtual constitucional ou gramática da política (Agamben:28-29). No
mundo moderno, o modelo de discurso virtual é a Constituição de uma formação
social nacional.
2)
Por
enquanto, o indivíduo é o intérprete da gramática da formação social nacional.
Portanto, não existem fatos sociais tout court, e sim
artefatos sociais gramaticais. (Lacan. S. 18:15):
“Mais de uma coisa no mundo é passível do efeito do
significante. Tudo o que está no mundo só se torna fato, propriamente, quando
com ele se articula o significante. Nunca, jamais surge sujeito algum até que o
fato seja dito”. (Lacan. S. 16: 65).
Os artefatos gramaticais são produzidos por quem e em qual
domínio? Eles são produzidos no domínio da gramática normativa nacional capaz
de articular uma plurivocidade de campo de poderes/saberes. Ou o fato
gramatical (artefato) é produzido pela atividade de um povo soberano, ou o país
vive sob o domínio da produção de fatos do campo das gramáticas espontâneas.
Trata-se do domínio do anarco-empirismo gramatical na história política.
Se existe um povo soberano, ele produz o artefato governante
hegemônico como transferência do poder popular para o príncipe. Se não existe,
o governante não é o reflexo da gramática nacional e não pode ser intérprete da
gramática do povo e da formação social nacional. Assim chegamos à ideia de uma
república em colapso como modo de vida política. Falo da república brasileira
ou argentina etc., enfim, da república na história latino-americana.
Voltando ao sujeito:
“Resta deixar claro que é realmente de sujeito que se trata,
o que é corroborado pelo fato de que, na minha lógica, o sujeito se exauri ao
se produzir como efeito de significante, mantendo-se distinto deste”. (Lacan.
S. 19: 166).
O sujeito se <exaure> por que ele se encontra em um campo
de poderes? Se exaure no sentido de que
o combate exauriu-lhe as forças. Assim, o sujeito é uma força prática de ideias
em um campo hegemônico (de uma gramática nacional) movendo homens e mulheres.
(Lenin:29).
“Ser verdadeiramente reconhecido e seguido como camada
dirigente”. A narrativa é o discurso
como interpretação da vida política prática:
“O discurso autêntico é aquele que retira o que diz daquilo
sobre que discorre de tal maneira que, em seu discurso, a comunicação
discursiva revele e, assim, torne acessível aos outros, aquilo sobre que
discorre”, (Heidegger: 63)).
Lacan considera que o discurso autêntico moderno se encontra
no campo freudiano:
“Se a experiencia analítica acha-se implicada, por receber
seus títulos de nobreza do mito edipiano, é justamente por preservar a
contundência da enunciação do oráculo e, eu diria ainda, porque a interpretação
permanece sempre nesse mesmo nível. Ela só é verdadeira por suas consequências,
tal como o oráculo. A interpretação não é submetida à prova de uma verdade que
se decida por sim ou não, mas desencadeia a verdade como tal. Só é verdadeira
na medida em que é verdadeiramente seguida”. (Lacan. S. 18: 13).
A Classe dirigente é verdadeiramente seguida na medida em que
detém o poder gramatical narrativo.
Quanto ao discurso político:
“Mas, ao entrar o discurso político -atente-se para isso – no
avatar, produziu-se o advento do real, a alunissagem, aliás, sem que o filósofo
que há em todos, por intermédio do jornal, se comovesse com isso, a não ser
vagamente.
O que está em jogo agora é o que ajudará a extrair o
real-da-estrutura: aquilo que da língua não constitui cifra, mas signo a
decifrar”. (Lacan, 2003: 535).
O discurso político é a narrativa como trabalho de decifração
da língua, como extração do real da gramática (estrutura) da política. As forças
decifram os signos da língua política hegemônica em um campo de
poderes/saberes. A estabilidade da formação social nacional depende do trabalho
de decifração do signo político como artefato gramatical.
Como interpretação do mundo (algo como algo), a narrativa
política é uma força como uma posição prévia no campo da plurivocidade de
gramática, pois a gramática nacional da política é hegemônica em relação à
outras gramáticas regionais e/ou locais, ou autorais:
“A interpretação de algo como algo funda-se essencialmente,
numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é
apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a concreção da
interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se compraz em se basear
nisso que <está> no texto, aquilo que, de imediato,
apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião prévia,
indiscutida e supostamente evidente, do intérprete. Em todo princípio de
interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretação
necessariamente já <põe>, ou seja, que é preliminarmente dado
na posição prévia, visão prévia e concepção prévia”. (Heidegger: 207).
A força narrativa é o intérprete de <algo como algo> ou mundo da formação social política,
mundo como plurivocidade do campo de poderes gramatical.
A gramática é a essência e o motor da linguagem na formação
social nacional. A narração faz pendant com a gramática e opera na linguagem, e
é medida no pensamento: “Talvez o mesmo movimento do pensamento na linguagem e
dessa linguagem através da relação social, ou melhor, desse <relato> operando na linguagem e medido no
pensamento”. (Faye: 125).
Do campo gramatical político emerge o <poder gramatical narrativo>, que é maior do que a força das
armas:
“É preciso estar atento ao que é dito aqui, quando uma
assembleia declara se constituir. E quando as Meditações husserlianas se
obstinam na formidável tarefa de apreender o que ocorre quando se constitui um
universo de objetos ao mesmo tempo em que se constitui <eu sou>. A nota burlesca, e terrível,
trazida pelo deputado Guillotin no momento em que se abre, noturna, a nova
jornada de 18 de junho de 1789, marca melhor do que qualquer outro signo o que
há de precário na soberania. Esta retira sua força dessa situação precária: puramente
soberana, privada de poder. Cercada por homens armados, desprovida da
possibilidade de dar ordens, exceto a alguns porteiros. Deste 18 de junho ao 14
de julho, não se usou nenhuma força, nenhuma violência que pudesse coagir em
seu nome. Aquele que ainda se diz o soberano pode declarar que ordena, os
homens armados lhe são submissos.
Donde provém o poder que será mais poderoso que a força? Quando
os poucos homens que falam entre setecentos outros pronunciam o <modo de se constituir>, qual é então esse poder pelo qual
eles falam? (Faye:129-130).
O poder gramatical narrativo stalinista substitui o poder
gramatical do povo soberano:
“Tratar-se-á de descobrir as sequencias de discurso ou as
exposições narrativas que vieram legitimar o processo de apropriação do poder
por um secretariado geral que, na ausência de qualquer outra força legítima
face ao partido único, tornou-se substituto do povo soberano ou, mais
empiricamente, do corpo eleitoral”. (Faye: 148).
O stalinismo ou qualquer totalitarismo se sustenta não no uso
da força, e sim na apropriação do poder gramatical narrativo como articulação da
hegemonia de uma formação social.
O poder gramatical na política é um agir narrativo, que é, ao
mesmo tempo, o sonho do relato fundamental:
“Ao contrário, é entre as malhas de seu relato fundamental
que Heidegger entrevê o agir deste <já> narrativo, percebido por ele em
Homero”. (Faye: 194).
No Brasil, Bolsonaro persegue a produção de seu relato
fundamental na tentativa de criar um partido político de sua propriedade
privada familial. De um modo político rústico, Bolsonaro parece não saber que
sabe que o poder gramatical narrativo é a fonte legítima do uso da violência na
formação social da política.
O campo da direita no poder político não sabe que sabe,
através de seus juristas, que o governo não é a fonte de produção do poder
gramatical narrativo. Assim, esse campo se movimenta para destruir a
Constituição socialdemocrata, na atividade parlamentar, e luta para instalar
uma Assembleia Constituinte neoliberal.
Na conjuntura capitalista mundial neoliberal em colapso, as
elites de poder brasileiras se esforçam para deter um poder gramatical,
narrativo, neoliberal na contra-mão da história capitalista mundial.
Na Bolívia, o partido político MAS (e Evo Morales) construiu
um poder gramatical narrativo dos de baixo e indígenas. Com apoio logístico do
departamento de Estado norte-americano e do Brasil, a direita boliviana procura,
através de um golpe de Estado tout court destruir o poder gramatical
narrativo evo-morales, e pôr no lugar dele a forma política inédita na
modernidade <civitas diaboli>
(cidade do Diabo), da
mulher-ditadora clarificada.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. V.
1. Belo Horizonte: UFMG, 2002
FAYE, Jean Pierre. La raison narrative. Paris: Balland, 1990
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. V. 3. Torino:
Einaudi, 1977
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópólis: VOZES, 1988
LACAN, Jacques. Outros Escritos. RJ: Jorge Zahar Editor, 2003
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 16. De um Outro ao outro. RJ:
Zahar, 2008
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fosse semblante. RJ: Zahar, 2009
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MONTESQUIEU. Grandeza e decadência dos romanos. SP: Paumape,
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VOEGELIN, Eric. Helenismo, Roma e cristianismo primitivo. História
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