O último movimento evangélico na América do Sul significa uma
alteração no cristianismo ainda não devidamente estudada como história das
ideias políticas. Esse cristianismo funde a vida privada com a vida pública;
ele acaba com a autonomia da política em relação à religião.
Há um passado cristão que se atualiza como gramática da vida
política do presente?
Eric Voegelin é o autor da gramática cristã de campo de
poderes no Ocidente. Faço uma citação longa:
“A transição do sentimento escatológico puro para sentimentos
de compaixão para com os pobres e indiferença ou aversão contra os ricos, com
um fundo de intransigência escatológica, não de Jesus para com os descrentes,
mas dos crentes em relação aos descrentes, é de importância fundamental para a
compreensão dos movimentos políticos posteriores no Ocidente. Nada há na
Antiguidade helênica que possa ser comparado a esses fenômenos peculiares.
Durante toda a Idade Média e até ao nosso presente, encontramo-nos com uma sequência
de movimentos que revive o espírito escatológico da comunidade cristã
primitiva. Ou os membros dos movimentos retiram-se do mundo em comunidades de <santos> e, assim, se os movimentos ganham
força, ameaçam a estrutura civilizacional que não é baseada na expectativa
escatológica, mas num compromisso com o mundo; ou então os santos, esperando
uma rápida reversão da situação, tornam-se agressivos, particularmente quando
seus sentimentos se alimentam das formas mais primitivas da escatologia
israelita. Este sentimento se torna cada vez mais importante após a Reforma;
alcança seu clímax nos derivados secularizados da escatologia cristã, nos
modernos movimentos de massa do comunismo e do nacional-socialismo”. (Voegelin.
V. 1: 213)
A secularização da escatologia cristã no século XX é o
fenômeno mais importante da política mundial, pois, contrapõe stalinismo e
fascismo na II Guerra Mundial.
No entanto, há essa passagem da ideia escatológica do fim dos
tempos para a ideia apocalíptica:
“A ideia apocalíptica implica que o Messias apareceu e que o
seu reino está realmente estabelecido como comunidade entre ele, o Ressurreto,
e os seus crentes”. (Voegelin. V. 1: 220-221).
2
Uma outra gramática da comunidade cristã fala do campo de
sujeitos. O compromisso da Igreja com a
fraqueza do homem define a relação do poder religioso com o crente: “A segunda
conquista realística foi a adaptação da organização da comunidade à fraqueza do
homem”. (Voegelin: v. 1: 225).
O crente não é o herói cristão. A gramática cristã do campo
dos sujeitos não faz do sujeito cristão o herói na dialética materialista da
plurivocidade de campo de poderes/saberes. O saber político cristão não faz
pendant com o discurso do autor heroico das nações modernas, para ir
aproximando a interpretação do nosso presente.
O campo do sujeito cristão encontra-se sob a hegemonia de um
narrador. Trata-se do <poder gramatical> narrativo do Evangelho. Bakhtin pode nos ajudar nesse ponto:
“Esse outro que exerce seu domínio sobre mim não entra em
conflito com meu eu-para-mim, uma vez que, no plano dos valores,
continuo a ser solidário com o mundo dos outros, uma vez que me percebo dentro
de uma coletividade – de minha família, de meu país, da cultura universal; a
posição de valor do outro tem autoridade sobre mim, ele pode conduzir a
narrativa da minha própria vida e estarei interiormente de pleno acordo com
ele. Enquanto minha vida participa dos valores que compartilho com os outros,
está inserida num mundo que compartilho com os outros, essa vida é pensada,
estruturada, organizada no plano da possível consciência que o outro terá dela,
percebida e estruturada como a possível narrativa que o outro terá poderia
fazer dela dirigida a outros (descendentes); a consciência do possível narrador
e o contexto de valores desse narrador organizarão meu ato, meu pensamento e
meu sentimento quando estes participarem do mundo dos outros; cada um dos
aspectos da minha vida poderá ser percebido no todo da narrativa (da história
relatada dessa vida, e que pode encontrar-se em todas as bocas); a contemplação
da minha própria vida não é mais que a antecipação da recordação que essa vida
deixará na memória dos outros – dos meus descendentes, da minha família, ou
simplesmente dos meus próximos( a amplitude e o caráter biográfico de uma vida
é variável)”. (Bakhtin; 167-168).
O poder gramatical narrativo da biografia cristã faz do
passado um fenômeno estético e do futuro um fenômeno moral:
“O modo tranquilo em que se efetua a rememoração de meu
passado remoto é de natureza estética e a evocação se aproxima formalmente da
narrativa (as recordações aclaradas pelo futuro do sentido são recordações
penitentes). A memória do passado é submetida a um processo estético, a memória
do futuro é sempre de ordem moral”. (Bakhtin: 167).
A biografia real é algo que necessita para acontecer de
sujeitos em um campo de poderes como a comunidade cristã:
“A comunidade é uma unidade no espírito: ‘há um só corpo e um
só espírito. (...) Há um só senhor, uma só fé, um só batismo; há um só Deus e
Pai de todos, que está acima de todos, por meio de todos e em todos’, mas
‘a cada um de nós foi dada a graça pela medida do dom (charisma) de
Cristo”. (Voegelin. V. 1: 226).
As biografias do campo de sujeitos fazem da política seu
habitat no campo dos poderes/saberes. Na atualidade, biografias cristãs
adentram à política e subvertem o campo dos poderes nas Américas. Trump e o
Bolsonaro aparecem como signos desse fenômeno. Então, o que é a política?
Gramsci diz:
“A dificuldade de identificar em cada caso, estaticamente
(como imagem fotográfica instantânea), a estrutura (econômica); de fato,
a política é, e cada caso concreto, o reflexo das tendências de desenvolvimento
da estrutura, tendências que não se afirma que devam necessariamente se
realizar. Uma fase estrutural só pode ser concretamente estudada e analisada
depois que ela superou todo o seu processo de desenvolvimento, não durante o
próprio processo, a não ser por hipóteses (declarando-se, explicitamente, que
se trata de hipóteses)”. (Gramsci. V. 1: 239).
Pensemos a política como hipótese dos reflexos do
desenvolvimento da história econômica, que, portanto, não significa que devam
se realizar. Na história econômica das Américas, o <cristianismo político> aparece como a superestrutura do
desenvolvimento do capitalismo subdesenvolvido, inclusive nos EEUU. Nos EEUU,
não significa que o capitalismo subdesenvolvido vai se tornar hegemônico na
história econômica da América. No Brasil, trata-se de uma realidade visível - em
uma tela gramatical econômica neoliberal - se desenvolvendo na nossa história
econômica como <hegemonia cum dominação> .
3
A gramática cristã faz do próximo e da caridade seus
fundamentos:
“Em Romanos 13, 9-10, Paulo se refere aos Dez Mandamentos
como o corpo de regras que devem ser observadas e continua: ’Todos os preceitos
se resumem nesta sentença: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. A caridade não pratica o mal contra o próximo.
Portanto, a caridade é a plenitude da lei’”. (Voegelin. V. 1: 227).
Na gramática do cristianismo político não tem próximo ou
caridade. Assim, esse cristianismo se livra da lógica freudiana <Credo quia absurdum> da leitura da fonte evangélica
paulina:
“Acho que agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo:
‘É precisamente porque teu próximo não é digno de amor, ao contrário, é teu
inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo’. Compreendo então que se trata de um
caso semelhante ao do <Credo quia absurdum>”. (Freud. v. XXI: 132).
A gramática do cristão político se inscreve em campos de
poderes, conjunturalmente. Aqui, há o amigo do cristão (que deve ser amado) e
seu inimigo (que deve ser odiado). A política como reflexo da história política
faz do amigo do cristão político todas as forças de sustentação e reprodução do
capitalismo subdesenvolvido. O inimigo são as forças contrárias ao domínio do
capitalismo subdesenvolvido.
A gramática cristã original se caracteriza pela indiferença
escatológica social: “Continua a prevalecer a indiferença aos problemas sociais
que observamos em relação à atitude para com a propriedade privada”. (Voegelin.
V. 1: 227).
O cristianismo político não é indiferente aos problemas
sociais. A diferença entre mundo celeste e mundo mundano desaparece:
“A lealdade ao estatuto social converte-se, assim, em dever
cristão, não porque Paulo e o autor de 1 Timóteo sejam conservadores ou
advogados de interesse de classe, mas porque o estatuto social pertence a este
mundo’ e, consequentemente, não deve ser objeto de grande interesse para o
cristão renovado. A mesma regra se aplica às relações com as autoridades
governamentais. Os magistrados do império romano têm que ser respeitados,
porque ‘não há autoridade que não venha de Deus”. (Voegelin. V. 1: 228).
Com o cristianismo político, a aquisição de propriedade e
riqueza material torna-se uma regra da ética cristã. O cristão político almeja
se tornar um membro da sociedade do rico. A sociedade do rico cristão faz
pendant com a sociedade do rico burguês (secular), como fator de
desenvolvimento do capitalismo subdesenvolvido.
Ficar longe da autoridade (poder secular) não é uma regra da
gramática do cristão político. Tomar o poder secular e transformá-lo em poder
político evangélico é a regra de ouro da gramática do cristianismo político. O
cristianismo político é a contrarrevolução que se choca com a revolução
permanente do secularismo, que funda e refunda o campo de poderes/saberes
progressista.
4
A relação entre Reforma e capitalismo foi abordada por Weber:
“Por outro lado, não se pode sequer aceitar uma tese tola ou
doutrinária segundo a qual o ‘espírito do capitalismo’ (sempre no sentido
provisório que aqui usamos) somente teria surgido como consequência de
determinadas influências da Reforma, ou que, o Capitalismo, como sistema
econômico, seria um produto da Reforma. Já o fato de algumas formas importantes
do sistema comercial capitalista serem notoriamente anteriores à Reforma, seria
o bastante para sustar essa argumentação”. (Weber: 61).
O cristianismo político da atualidade se apresenta como
superestrutura do capitalismo subdesenvolvido. Ele é uma força prática subjetiva
ou motor material do desenvolvimento do capitalismo subdesenvolvido. No entanto, as forças práticas principais do
aprofundamento do subdesenvolvimento, ou são políticas seculares, ou econômicas
seculares, ou culturais seculares, como os mass media seculares.
O capitalismo subdesenvolvido tem como motor material de seu
desenvolvimento o Estado subdesenvolvido, famoso por desenvolver as
desigualdades materiais, promover a acumulação de riqueza nas mãos de uma
minoria rica, bloquear a formação de uma sociedade de consumo de bens de
consumo imediatos e duráveis para a maioria da população.
A redução da sociedade industrial urbana ao mínimo (ou ao grau
zero) é uma característica do capitalismo subdesenvolvido. A subtração da
divisão do trabalho das profissões universitárias é uma conclusão econômica
lógica.
O cristianismo político ataca as profissões universitárias
urbanas seculares como um mal a ser aniquilado. Ele ataca o Estado-cientista,
quer Ab-rogar o Estado-cientista que é contra a intepretação criacionista da
história da vida, em geral. Assim, ele se transforma em uma força prática subjetiva
da história econômica do subdesenvolvimento.
Um Estado evangélico vai aparecendo como a superestrutura
natural do capitalismo subdesenvolvido. Trata-se de um Estado que abole o poder
econômico - que cuida dos pobres e da população em geral. Fim do poder como <caritas>. Este traço do cristianismo político
aproxima a ideia de Estado evangélico da ideia de Estado neoliberal como contraponto
ao <biopoder> foucaultiano, um fenômeno do campo
de poderes/saberes progressista.
5
A comunidade cristã política é a grande novidade da política das
Américas, alcançando a própria África:
“A teoria dos charismata, dos diferentes dons
espirituais no corpo único de Cristo, impedira que o cristianismo se
transformasse em aristocracia religiosa e dera-lhe uma ampla base popular;
potencialmente, a humanidade como um todo poderia organizar-se na nova
comunidade”. (Voegelin. V. 1: 229).
O cristão político é um ser social que é atraído pela
realidade dos países subdesenvolvidos. A humanidade subdesenvolvida é o seu
ideal. Ele quer se ver e sentir como parte de uma aristocracia cristã. O campo
de poderes do cristão político tem que ser subdesenvolvido. Essa é uma
diferença com a gramática do cristão em uma leitura paulina, como autocrítica:
“O reconhecimento da estrutura social existente, além disso,
compatibilizava a comunidade com qualquer sociedade em que o cristianismo se
difundisse, influenciando as relações sociais somente através da força do amor
fraterno, lentamente transformador. E, finalmente, a autoridade governamental
foi integrada na comunidade ordenada por Deus, tornando a comunidade compatível
com qualquer forma de governo. Estava esboçado a criação de um novo povo a
partir do espírito de Cristo, de um povo que crescesse cada vez mais no mudo
existente, transformando lentamente as nações e civilizações no reino de Deus”.
(Voegelin. V. 1: 229-230).
O cristianismo original metabolizava a existência do Estado
secular. O cristianismo político é uma força em choque com o Estado secular
capitalista. Sua vontade de potência quer um Estado cristão como superestrutura
do capitalismo subdesenvolvido.
O cristianismo político é uma força retrógrada, pois,
contrária a linha de força econômica central do capitalismo globalizado. O
cristianismo político é uma força que quer Ab-rogar da realidade o mundo
cibernético no comando do capitalismo desenvolvido avançado no Ocidente e Ásia
Oriental.
O problema da história brasileira é a existência de dezena de
milhões de pessoas que se constituem como força prática subjetiva da política
nacional. O cristianismo político não tem pátria, como o dinheiro. Ele é um
fenômeno do tribalismo mundial, de Maffesoli:
“Pode-se dizer igualmente que a simples administração das
coisas tem aí sua origem. De fato, conforme Salomon Reinach, a história da
humanidade é <uma laicização progressiva>:
os padres vão racionalizar o religioso, codificar os tabus e canalizar as
expressões mais excessivas da religiosidade ambiente e natural. Encontra-se aí
uma ideia desenvolvida com frequência no século XIX: <as religiões tendem a
laicizar-se> em político”. (Maffesoli: 57).
Os pastores cristãos são parte de uma laicização do mundo
subdesenvolvido capitalista ou não capitalista; eles racionalizam o religioso;
eles racionalizam o subdesenvolvimento.
A tribo cristã política tem na África profunda seu território
natural.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. SP: Martins
Fontes, 1992
FREUD. Sigmund. Obras Completas. V. XXI. RJ: Imago, 1974
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. V. 1. RJ: Civilização
Brasileira, 2015
MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político. A
tribalização do mundo. Porto Alegre: Sulinas, 1997
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo.
SP: Pioneira, 1981
VOEGELIN, Eric. Helenismo, Roma e cristianismo primitivo.
História das ideias políticas. V. 1. SP: Realizações Editora, 2012
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