José Paulo
A razão burocrática aparece na sociologia de Max Weber como
algo comum à empresa e ao Estado moderno:
“Os dois são, em sua essência fundamental, completamente
iguais. O Estado moderno, do ponto de vista sociológico, é uma “empresa”, do
mesmo modo que uma fábrica: precisamente esta é sua qualidade historicamente
específica”. (Weber: 530).
Weber conceitua a razão burocrática moderna usando o
pensamento de Marx:
“a dependência hierárquica do trabalhador, do empregado de
escritório, do funcionário técnico, do assistente de um instituto universitário
e também a do funcionário e soldado estatal baseia-se uniformemente no fato de
que aqueles instrumentos, reservas e recursos monetários, indispensáveis à empresa
e à existência econômica, encontram-se concentrados no poder de disposição, nos
primeiros casos, do empresário, e nos últimos casos, do senhor político. Este
fundamento econômico decisivo – a <separação>do trabalhador dos meios materiais do empreendimento: dos
meios de produção, dos meios bélicos no exército, dos meios administrativos
materiais na administração pública, dos meios de pesquisa no instituto
universitário e no laboratório, e dos meios monetários em todos estes casos é comum
à moderna organização estatal, na área política, cultural e militar, e à
economia capitalista privada. Em ambos os casos, a disposição sobre esses meios
está nas mãos do poder ao qual obedece, diretamente, o <aparato> da burocracia (juízes, funcionários,
oficiais, capatazes, funcionários de escritório, sargentos) ou à cuja
disposição este se coloca ao ser chamado. Tanto a existência quanto a função
desse aparato estão inseparavelmente concatenadas, como causa e como efeito, à
‘concentração dos meios materiais da empresa’, sendo ele a forma de
manifestação desta concentração. Inevitavelmente, ‘socialização’ crescente
significa hoje também burocratização crescente”. (Weber: 530).
A razão burocrática significa a relação social de produção na
economia e na política como separação entre proprietários dos meios de produção
e não-proprietários. Assim, há dois aspectos nessa história econômica: o poder
burocrático e a proletarização da economia, da política, da cultura e da ordem
militar.
Em Weber, proprietário dos meios de produção significa
proprietário do poder burocrático. Em Gramsci, a razão burocrática atravessa a
história econômica do espaço virtual estrutural do modo de produção capitalista
na política e na economia em direção à formação social capitalista.
2
Em Gramsci, o estado maior do Exército detém o poder
burocrático no aparelho repressivo de Estado; na economia, o patronato tem a
propriedade do poder burocrático na fábrica, na empresa; na política tout
court, o partido político detém o poder burocrático através de sua camada
dirigente. (Buci-Glucksmann: 49).
O proletariado ou econômico ou político ou militar é
constituído pela classe operária, militantes de base, soldados. Uma <classe média> se interpõe entre o poder
burocrático e o proletariado; na fábrica, empregados, contramestres, técnicos
médios em função técnica, administrativa, fiscalização. No partido político,
temos os quadros médios que ligam a camada dirigente aos militantes de base; no
Exército, oficiais subalternos fazem a ligação dos generais com os soldados
como executores dos planos do estado-maior na guerra entre nações, ou contra o
proletariado na luta de classes.
Este retrato da razão burocrática funciona nos países
desenvolvidos e subdesenvolvidos desigual e combinadamente. A razão burocrática
industrial é o espírito do capitalismo weberiano, de fato. Outra razão industrial vai se desenvolver de
forma acabada nos séculos XX e XXI.
Boltanski e Chiapelo inscrevem uma outra razão (razão não
burocrática) na vida industrial pós-II Guerra mundial. Trata-se da <gramática da exploração> no lugar da razão burocrática. Assim,
a razão industrial toma o caminho da razão industrial corporativista na forma
da gramática da exploração industrial:
“Raciocínio do mesmo tipo foi feito para denunciar a
exploração nos contextos socialistas e, de modo geral, nas organizações burocráticas
não controladas por proprietários, e sim por diretores. No entanto, nesse caso,
o diferencial em causa já não é um diferencial de propriedade, mas um
diferencial de poder (também juridicamente garantido), que permite extorquir um
excedente de poder. De fato, aqueles que ocupam os escalões superiores, cujo
status é garantido por um título (escolar, funcional, político etc.),
arrogam-se um poder de decisão que, ao ser formalmente atribuído, é na
realidade ‘composto’ e ‘repartido’ em ‘diversos níveis inferiores’, sendo essa
captação de poder dissimulada pela identificação dos inferiores com a
burocracia que os explora, conforme diz Claude Lefort, de cuja análise nos
valemos. Nesse segundo caso, o retorno ao equilíbrio passa pela redistribuição
do poder oficial, que corresponde à distribuição do poder real, ou seja, a
autogestão”. (Boltanski: 385).
A gramática de autogestão quebra o poder burocrático, a razão
burocrática industrial, como demanda de autonomia e responsabilidade da força
de trabalho no processo de produção industrial:
“Todos os dispositivos associados ao novo espírito do
capitalismo – quer se trate da terceirização, quer da proliferação nas empresas
de centros autônomos de lucro, de círculos de controle de qualidade ou das novas formas de organização do
trabalho – de fato vieram, em certo sentido, atender às demandas de autonomia e
responsabilidade que se fizeram ouvir no início da década de 70 em tom
reivindicativo: os executivos desligados de suas linhas hierárquicas para
assumirem ‘centros autônomos de lucro’ ou para realizar ‘projetos’ e os
operários subtraídos às formas mais divisionárias de organização do trabalho em
linha de montagem, realmente perceberam que seu nível de responsabilidade
aumentou, ao mesmo tempo que era reconhecida sua capacidade para agir de maneira
autônoma e para demonstrar criatividade”. (Boltanski: 430).
Assim, o aparato econômico weberiano (fábrica e aparelho de
Estado) cede seu lugar à forma acabada da <organização corporativa industrial>:
“Commons argumentou que a emergência da organização na forma
de empresa era um veneno injetado no corpo político americano por uma
’conspiração por parte da Suprema Corte do final do século XIX, a qual
deliberadamente interpretou mal a Décima Quarta Emenda da Constituição, uma
tolice que deveria ter sido óbvia para qualquer leitor; todos os outros países
desenvolvidos haviam aceito as corporações sem necessidade de uma Suprema corte
ou Décima Quarta Emenda – na verdade, os Estados Unidos foram o último país
desenvolvido a fazê-lo (depois até mesmo do Japão). Entretanto, Commons fazia
sentido para os leitores de 1924. A organização era uma aberração tão grande,
que somente poderia ser explicada pela existência de alguma conspiração
sinistra. O livro transformou-se em best seller e uma das bíblias dos
‘surradores de empresas’ do New Deal alguns anos depois”. (Drucker:30).
A gramática da corporação industrial funciona pela lógica da
destruição criativa, algo que assusta a empresa weberiana da passagem do
capitalismo liberal. Para o capitalismo neomercantilista:
“A abertura de novos mercados – estrangeiros ou domésticos – e
o desenvolvimento organizacional, da oficina artesanal aos conglomerados como a
U.S. Steel, ilustram o mesmo processo de mutação industrial – se me permitem o
uso do termo biológico – que incessantemente revoluciona a estrutura econômica <a partir de dentro>, incessantemente destruindo a velha,
incessantemente criando uma nova. Esse processo de Destruição Criativa é o fato
essencial acerca do capitalismo. É nisso que consiste o capitalismo e é aí que
têm de viver todas as empresas capitalistas”. (Schumpeter: 112-113).
Lester Thurow subescreve:
Regra N° Dois: AS empresas de sucesso precisam estar
dispostas a canibalizar a si mesmas para se salvarem. Elas precisam estar
dispostas a destruir o antigo enquanto ainda têm sucesso para que possam
construir o novo antes que este tenha êxito. Se elas não destruírem, outras as
farão”. (Drucker: 44).
A gramática da corporação industrial capitalista funciona
pela lógica da destruição criativa, repito. Trata-se de um fenômeno inusitado
na história econômica universal:
“Somente a emergência da gerência a partir da Segunda Guerra
Mundial nos fez perceber que a organização é uma entidade distinta e separada.
Ela não é ‘comunidade’, nem ‘sociedade’, ‘classe’ ou ‘família’, os modernos
integradores conhecidos pelos cientistas sociais. Mas ela também não é um
‘clã’, uma ‘tribo’ ou um ‘grupo de afinidade’, nem nenhum dos outros
integradores da sociedade tradicional, conhecidos e estudados por antropólogos,
etnólogos e sociólogos. A organização é uma coisa nova e distinta”. (Drucker:
31).
A gramática da corporação altera a relação entre
proprietários e não-proprietários do capital. Ela desbanca o poder burocrático
na relação deste com o proletariado. Ela faz desaparecer a sociedade de classes,
na cultura da representação, formada por
burguesia e classe operária. Ela gera novas aparências de semblância
(Arendt: 30-31) como uma sociedade formada por uma reunião de empregados da
sociedade do conhecimento do capitalismo neoliberal:
“Mas na sociedade do conhecimento, nem mesmo os trabalhadores
em serviços menos qualificados são ‘proletários’. Em seu conjunto, os
empregados possuem os meios de produção. Individualmente, poucos são abastados.
Menos ainda são ricos (embora muitos sejam independentes – aqueles que hoje
chamamos de ‘afluentes’). Coletivamente, porém, quer seja através dos seus
fundos de pensão, de fundos mútuos, das suas poupanças de aposentadorias, e
assim por diante, eles possuem os meios de produção. As pessoas que exercem o
poder de voto para os empregados também são empregadas; tome por exemplo os
servidores civis que gerenciam os fundos de pensão dos governos estaduais e
municipais nos Estados Unidos. Esses gerentes de fundos de pensão são os únicos
‘capitalistas’ verdadeiros do país. Portanto, na sociedade pós-capitalista, os
próprios ‘capitalistas’ tornam-se empregados. Eles são remunerados como
empregados; pensam como empregados; olham para si mesmo como empregados. Mas
agem como capitalistas”. (Drucker: 42).
A crítica da razão corporativa industrial pega no ar a crise
do capitalismo de empregados norte-americano causado pela covid-19; o que
restou dele na terceira década do século XXI como gramática da organização
industrial corporativa.
Na década de 1990 já
está claro o significado do passado da gramática em tela:
“O que emergiu dessa década frenética foi uma redefinição da
finalidade e da base lógica da grande empresa e da função da sua gerência. Ao
invés de serem gerenciadas ‘nos melhores interesses equilibrados dos
interessados, as corporações passaram a ser gerenciadas exclusivamente para
‘maximizar o valor do acionista’.
Isso também não irá funcionar porque força a corporação a ser
gerenciada em função do curtíssimo prazo, o que significa prejudicar, ou mesmo
destruir, sua capacidade de produção de riqueza. Significa declínio rápido. Não
se pode obter resultados a longo prazo empilhando uns sobre os outros os
resultados a curto prazo. Eles devem ser obtidos através do equilíbrio entre
necessidades e objetivos a curto e longo prazos. Além disso, gerenciar uma
empresa exclusivamente para os acionistas aliena as próprias pessoas de cuja
motivação e dedicação depende a empresa moderna: os trabalhadores do
conhecimento. Um engenheiro não se sentirá motivado a trabalhar para tornar
rico um especulador”. (Drucker: 53).
Drucker faz a crítica demolidora do capitalismo neoliberal da
razão corporativa industrial. Crítica só tornada realidade com a crise
econômica mundial da hegemonia do capitalismo neoliberal sobre a Europa
ocidental.
Hoje, a Europa parece se encaminhar para a doção do modelo de
economia mista: capitalismo corporativo mundial privado e capitalismo
corporativo de Estado com Estado-cientista cibernético, natural.
Para a América do Norte, adotar o modelo econômico misto
significa por um fim na gramática neoliberal do capitalismo corporativo privado,
alfa e ômega da vida civil americana.
3
Hegel é o teórico da corporação industrial moderna. Ele
escreve:
“<La corporación como remedio contra el
antagonismo de la sociedad civil>.
Si bien han de elevarse quejas sobre el lujo y el ansia de
derroche de las clases industriales, con lo cual tiene que ver el surgimento de
la plebe, no hay que pasar por alto entre las otras causas (por ejemplo, el
devenir cada vez más mecânico del trabajo) el fundamento <ético>, tal y como queda dicho en lo
precedente. Sin ser miembro de una corporación legítima (y sólo en cuanto
legítima es un colectivo una corporación) el indivíduo, <sin dignidad de clase>, queda reducido por su aislamiento
al aspecto egoísta de la indústria, su subsistencia y su goce no son en
absoluto <permanentes>. Buscará en consecuencia obtener <su reconocimiento> mediante las demonstraciones
externas de su éxito en su industria, demonstraciones que son ilimitadas porque
no tiene lugar el viver conforme a su clase dado que la clase no existe (pues
en la sociedad civil <existe> únicamente aquel colectivo que es
legalmente constituído y reconocido), y por ende no se forma tampoco ningún
modo de vida más universal adequado a él”. (Hegel: 674-675).
A gramática da corporação industrial se define por abolir a
luta de classes; ela é o remédio contra o antagonismo da sociedade civil:
“Presentes na década de 70 não só nas ciências sociais, onde
já tinham sido objeto de um grande número de trabalhos, mas também na
literatura, na mídia e no cinema, as classes sociais foram se apagando
progressivamente do campo da representação. Na segunda metade dos anos 80,
analistas reconhecidos e acatados podiam acreditar e afirmar seriamente que
elas já não existiam”. (Boltanski: 316).
4
No capitalismo desenvolvido, a gramática da corporação
industrial cibernética ocupa o aspecto principal de uma dialética de
sintetização entre capitalismo e socialismo, na China. O Ocidente ignora o
modelo de economia mista com planificação, característica que define o
capitalismo corporativo de Estado (CCE) chinês.
A crise econômica mundial da covid-19 é enfrentada na China
através da planificação corporativa de Estado com Estado-cientista. O capitalismo corporativo mundial privado
presente na China se apoia no CCE para lutar contra a crise econômica. Ele terá
que se reinventar através de uma planificação capitalista.
Sob o comando de um Donald Trump neoliberal, os Estados
Unidos encontram imensas dificuldades para enfrentar a crise sanitária, como
humanitarismo, da covid-19. Um capitalismo neoliberal hegemônico no domínio da
saúde não tem como enfrentar a acumulação de cadáveres nas cidades e milhões de
contagiados pelo novo coronavírus. A plebe doente é um aspecto que afeta a
acumulação de capital na América. A crise do capitalismo globalizado é o outro
aspecto decisivo para paralisar a economia americana.
Os Estados Unidos têm um bloqueio mental persistente para se
livrar do modelo neoliberal capitalista, que articula e organiza a vida da
sociedade civil americana. A gramática da corporação industrial neoliberal pesa
como chumbo no cérebro dos americanos. Donald Trump faz movimentos que apontam
para a <restauração>
da razão corporativista
neoliberal para depois da crise da covid-19.
A história econômica mundial dos países desenvolvidos parece
que vão trocar o capitalismo neoliberal pela economia mista. As elites
desenvolvidas têm uma compreensão de que a nova ordem mundial se estabelece
baseada na ideia de um planeta que terá que lidar com plurivocidade de crise na
primeira metade do século XXI.
Para lidar com a nova história planetária, há necessidade de
planificação econômica e um Estado-cientista cibernético natural
internacionalizado nas formações sociais nacionais.
Na terceira metade do século XXI, o Estado-cientista faz
pendant com o capitalismo corporativo privado mundial (com planificação
capitalista) e com o capitalismo corporativo de Estado. A Europa parece adotar
esse caminho. Os Estados Unidos se comportam como um grande elefante branco ema
loja de cristais.
Os países subdesenvolvidos não conhecem a gramática
corporativa industrial. Eles são velhos portadores da gramática do capitalismo
burocrático que tem na CEPAL sua fonte de cultura econômica extemporânea.
Trata-se de um mundo que vive no passado e do passado.
Na superfície de representação da vida dos grandes países
latino-americanos, não aparecem forças históricas que sejam capazes de dirigir os
povos na direção do modelo econômico misto corporativo industrial.
No Brasil, há o agravante do país ter feito do neoliberalismo
uma tradição que domina a vida da sociedade. O Brasil se torna aos poucos um
cemitério a céu aberto de cadáveres da covid-19. Mesmo com a catastrófica crise
da covid-19, a política governamental (governo federal, parlamento, governos
locais) dá prosseguimento ao aprofundamento do subdesenvolvimento neoliberal.
Se quer privatizar grandes hospitais em plena crise da
covid-19. Economistas profissionais falam da crise econômica permanente que se
apodera do Brasil. O ministro da economia insiste em uma narrativa neoliberal que
transforma a economia brasileira em uma esfera mítica. Trata-se da economia como esfera mitológica, como produção de mitos econômicos que substituem os fenômenos reais no domínio da representação.
Paulo Guedes e a grande imprensa são possuídos por uma
narrativa na qual figuras míticas como o capital privado e o Mercado Financeiro
continuam no comando da cultura econômica brasileira. Para eles, a Europa
ocidental se encaminha para o desastre. E só o Brasil pode salvar a hegemonia
do capitalismo privado sobre a economia mundial, se Donald Trump for derrotado
pela burguesia republicana e democrata, que já fala em planificação capitalista
no domínio da saúde pública nos estados americanos.
Viveremos uma época na qual Estado e capitalismo atuarão juntos
para a reprodução ampliada de capital e acumulação capitalista. Todavia, não se
trata de uma repetição econômica do velho capitalismo monopolista de Estado do
século XX.
A Europa resolve fazer a sintetização entre o Ocidente e o
Oriente asiático oriental da planificação. Uma nova ordem mundial emergirá
dessa sintetização.
ARENDT, Hannah. A vida do espírito. O pensar, o querer, o
julgar. RJ: UFRJ/Relume Dumará, 1992
BOLTANSKI & CHIAPELLO, Luc e Ève. O novo espírito do
capitalismo. SP: Martins Fontes, 2009
BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Gramsci et l’État. Paris: Fayard,
1975
HEGEL. Fundamentos de la filosofia del derecho. Madrid:
Libertarias/Prodhufi, 1993
DRUCKER, Peter. Sociedade pós-capitalista. SP: Pioneira, 1993
SCHUMPETER. Capitalismo, socialismo e democracia. RJ: Zahar
Editores, 1984
THUROW, Lester C. A construção da riqueza. RJ: Rocco, 2001
WEBER, Max. Economia e sociedade. V. 2. Brasília, UNB. 1999
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