quinta-feira, 30 de abril de 2020

CRÍTICA DA RAZÃO CORPORATIVA INDUSTRIAL


José Paulo


A razão burocrática aparece na sociologia de Max Weber como algo comum à empresa e ao Estado moderno:
“Os dois são, em sua essência fundamental, completamente iguais. O Estado moderno, do ponto de vista sociológico, é uma “empresa”, do mesmo modo que uma fábrica: precisamente esta é sua qualidade historicamente específica”. (Weber: 530).
Weber conceitua a razão burocrática moderna usando o pensamento de Marx:
“a dependência hierárquica do trabalhador, do empregado de escritório, do funcionário técnico, do assistente de um instituto universitário e também a do funcionário e soldado estatal baseia-se uniformemente no fato de que aqueles instrumentos, reservas e recursos monetários, indispensáveis à empresa e à existência econômica, encontram-se concentrados no poder de disposição, nos primeiros casos, do empresário, e nos últimos casos, do senhor político. Este fundamento econômico decisivo – a <separação>do trabalhador dos meios materiais do empreendimento: dos meios de produção, dos meios bélicos no exército, dos meios administrativos materiais na administração pública, dos meios de pesquisa no instituto universitário e no laboratório, e dos meios monetários em todos estes casos é comum à moderna organização estatal, na área política, cultural e militar, e à economia capitalista privada. Em ambos os casos, a disposição sobre esses meios está nas mãos do poder ao qual obedece, diretamente, o <aparato> da burocracia (juízes, funcionários, oficiais, capatazes, funcionários de escritório, sargentos) ou à cuja disposição este se coloca ao ser chamado. Tanto a existência quanto a função desse aparato estão inseparavelmente concatenadas, como causa e como efeito, à ‘concentração dos meios materiais da empresa’, sendo ele a forma de manifestação desta concentração. Inevitavelmente, ‘socialização’ crescente significa hoje também burocratização crescente”. (Weber: 530).
A razão burocrática significa a relação social de produção na economia e na política como separação entre proprietários dos meios de produção e não-proprietários. Assim, há dois aspectos nessa história econômica: o poder burocrático e a proletarização da economia, da política, da cultura e da ordem militar.  
Em Weber, proprietário dos meios de produção significa proprietário do poder burocrático. Em Gramsci, a razão burocrática atravessa a história econômica do espaço virtual estrutural do modo de produção capitalista na política e na economia em direção à formação social capitalista.  

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Em Gramsci, o estado maior do Exército detém o poder burocrático no aparelho repressivo de Estado; na economia, o patronato tem a propriedade do poder burocrático na fábrica, na empresa; na política tout court, o partido político detém o poder burocrático através de sua camada dirigente. (Buci-Glucksmann: 49).
O proletariado ou econômico ou político ou militar é constituído pela classe operária, militantes de base, soldados. Uma <classe média> se interpõe entre o poder burocrático e o proletariado; na fábrica, empregados, contramestres, técnicos médios em função técnica, administrativa, fiscalização. No partido político, temos os quadros médios que ligam a camada dirigente aos militantes de base; no Exército, oficiais subalternos fazem a ligação dos generais com os soldados como executores dos planos do estado-maior na guerra entre nações, ou contra o proletariado na luta de classes.  
Este retrato da razão burocrática funciona nos países desenvolvidos e subdesenvolvidos desigual e combinadamente. A razão burocrática industrial é o espírito do capitalismo weberiano, de fato.  Outra razão industrial vai se desenvolver de forma acabada nos séculos XX e XXI.      
Boltanski e Chiapelo inscrevem uma outra razão (razão não burocrática) na vida industrial pós-II Guerra mundial. Trata-se da <gramática da exploração> no lugar da razão burocrática. Assim, a razão industrial toma o caminho da razão industrial corporativista na forma da gramática da exploração industrial:
“Raciocínio do mesmo tipo foi feito para denunciar a exploração nos contextos socialistas e, de modo geral, nas organizações burocráticas não controladas por proprietários, e sim por diretores. No entanto, nesse caso, o diferencial em causa já não é um diferencial de propriedade, mas um diferencial de poder (também juridicamente garantido), que permite extorquir um excedente de poder. De fato, aqueles que ocupam os escalões superiores, cujo status é garantido por um título (escolar, funcional, político etc.), arrogam-se um poder de decisão que, ao ser formalmente atribuído, é na realidade ‘composto’ e ‘repartido’ em ‘diversos níveis inferiores’, sendo essa captação de poder dissimulada pela identificação dos inferiores com a burocracia que os explora, conforme diz Claude Lefort, de cuja análise nos valemos. Nesse segundo caso, o retorno ao equilíbrio passa pela redistribuição do poder oficial, que corresponde à distribuição do poder real, ou seja, a autogestão”. (Boltanski: 385).
A gramática de autogestão quebra o poder burocrático, a razão burocrática industrial, como demanda de autonomia e responsabilidade da força de trabalho no processo de produção industrial:
“Todos os dispositivos associados ao novo espírito do capitalismo – quer se trate da terceirização, quer da proliferação nas empresas de centros autônomos de lucro, de círculos de controle de qualidade  ou das novas formas de organização do trabalho – de fato vieram, em certo sentido, atender às demandas de autonomia e responsabilidade que se fizeram ouvir no início da década de 70 em tom reivindicativo: os executivos desligados de suas linhas hierárquicas para assumirem ‘centros autônomos de lucro’ ou para realizar ‘projetos’ e os operários subtraídos às formas mais divisionárias de organização do trabalho em linha de montagem, realmente perceberam que seu nível de responsabilidade aumentou, ao mesmo tempo que era reconhecida sua capacidade para agir de maneira autônoma e para demonstrar criatividade”. (Boltanski: 430).
Assim, o aparato econômico weberiano (fábrica e aparelho de Estado) cede seu lugar à forma acabada da <organização corporativa industrial>:
“Commons argumentou que a emergência da organização na forma de empresa era um veneno injetado no corpo político americano por uma ’conspiração por parte da Suprema Corte do final do século XIX, a qual deliberadamente interpretou mal a Décima Quarta Emenda da Constituição, uma tolice que deveria ter sido óbvia para qualquer leitor; todos os outros países desenvolvidos haviam aceito as corporações sem necessidade de uma Suprema corte ou Décima Quarta Emenda – na verdade, os Estados Unidos foram o último país desenvolvido a fazê-lo (depois até mesmo do Japão). Entretanto, Commons fazia sentido para os leitores de 1924. A organização era uma aberração tão grande, que somente poderia ser explicada pela existência de alguma conspiração sinistra. O livro transformou-se em best seller e uma das bíblias dos ‘surradores de empresas’ do New Deal alguns anos depois”. (Drucker:30).
A gramática da corporação industrial funciona pela lógica da destruição criativa, algo que assusta a empresa weberiana da passagem do capitalismo liberal. Para o capitalismo neomercantilista:
“A abertura de novos mercados – estrangeiros ou domésticos – e o desenvolvimento organizacional, da oficina artesanal aos conglomerados como a U.S. Steel, ilustram o mesmo processo de mutação industrial – se me permitem o uso do termo biológico – que incessantemente revoluciona a estrutura econômica <a partir de dentro>, incessantemente destruindo a velha, incessantemente criando uma nova. Esse processo de Destruição Criativa é o fato essencial acerca do capitalismo. É nisso que consiste o capitalismo e é aí que têm de viver todas as empresas capitalistas”. (Schumpeter: 112-113).
Lester Thurow subescreve:
Regra N° Dois: AS empresas de sucesso precisam estar dispostas a canibalizar a si mesmas para se salvarem. Elas precisam estar dispostas a destruir o antigo enquanto ainda têm sucesso para que possam construir o novo antes que este tenha êxito. Se elas não destruírem, outras as farão”. (Drucker: 44).        
                                                              
A gramática da corporação industrial capitalista funciona pela lógica da destruição criativa, repito. Trata-se de um fenômeno inusitado na história econômica universal:
“Somente a emergência da gerência a partir da Segunda Guerra Mundial nos fez perceber que a organização é uma entidade distinta e separada. Ela não é ‘comunidade’, nem ‘sociedade’, ‘classe’ ou ‘família’, os modernos integradores conhecidos pelos cientistas sociais. Mas ela também não é um ‘clã’, uma ‘tribo’ ou um ‘grupo de afinidade’, nem nenhum dos outros integradores da sociedade tradicional, conhecidos e estudados por antropólogos, etnólogos e sociólogos. A organização é uma coisa nova e distinta”. (Drucker: 31).
A gramática da corporação altera a relação entre proprietários e não-proprietários do capital. Ela desbanca o poder burocrático na relação deste com o proletariado. Ela faz desaparecer a sociedade de classes, na cultura da representação, formada por   burguesia e classe operária. Ela gera novas aparências de semblância (Arendt: 30-31) como uma sociedade formada por uma reunião de empregados da sociedade do conhecimento do capitalismo neoliberal:
“Mas na sociedade do conhecimento, nem mesmo os trabalhadores em serviços menos qualificados são ‘proletários’. Em seu conjunto, os empregados possuem os meios de produção. Individualmente, poucos são abastados. Menos ainda são ricos (embora muitos sejam independentes – aqueles que hoje chamamos de ‘afluentes’). Coletivamente, porém, quer seja através dos seus fundos de pensão, de fundos mútuos, das suas poupanças de aposentadorias, e assim por diante, eles possuem os meios de produção. As pessoas que exercem o poder de voto para os empregados também são empregadas; tome por exemplo os servidores civis que gerenciam os fundos de pensão dos governos estaduais e municipais nos Estados Unidos. Esses gerentes de fundos de pensão são os únicos ‘capitalistas’ verdadeiros do país. Portanto, na sociedade pós-capitalista, os próprios ‘capitalistas’ tornam-se empregados. Eles são remunerados como empregados; pensam como empregados; olham para si mesmo como empregados. Mas agem como capitalistas”. (Drucker: 42).
A crítica da razão corporativa industrial pega no ar a crise do capitalismo de empregados norte-americano causado pela covid-19; o que restou dele na terceira década do século XXI como gramática da organização industrial corporativa.
 Na década de 1990 já está claro o significado do passado da gramática em tela:
“O que emergiu dessa década frenética foi uma redefinição da finalidade e da base lógica da grande empresa e da função da sua gerência. Ao invés de serem gerenciadas ‘nos melhores interesses equilibrados dos interessados, as corporações passaram a ser gerenciadas exclusivamente para ‘maximizar o valor do acionista’.
Isso também não irá funcionar porque força a corporação a ser gerenciada em função do curtíssimo prazo, o que significa prejudicar, ou mesmo destruir, sua capacidade de produção de riqueza. Significa declínio rápido. Não se pode obter resultados a longo prazo empilhando uns sobre os outros os resultados a curto prazo. Eles devem ser obtidos através do equilíbrio entre necessidades e objetivos a curto e longo prazos. Além disso, gerenciar uma empresa exclusivamente para os acionistas aliena as próprias pessoas de cuja motivação e dedicação depende a empresa moderna: os trabalhadores do conhecimento. Um engenheiro não se sentirá motivado a trabalhar para tornar rico um especulador”. (Drucker: 53).
Drucker faz a crítica demolidora do capitalismo neoliberal da razão corporativa industrial. Crítica só tornada realidade com a crise econômica mundial da hegemonia do capitalismo neoliberal sobre a Europa ocidental.
Hoje, a Europa parece se encaminhar para a doção do modelo de economia mista: capitalismo corporativo mundial privado e capitalismo corporativo de Estado com Estado-cientista cibernético, natural. 
Para a América do Norte, adotar o modelo econômico misto significa por um fim na gramática neoliberal do capitalismo corporativo privado, alfa e ômega da vida civil americana.       
     
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Hegel é o teórico da corporação industrial moderna. Ele escreve:
<La corporación como remedio contra el antagonismo de la sociedad civil>.
Si bien han de elevarse quejas sobre el lujo y el ansia de derroche de las clases industriales, con lo cual tiene que ver el surgimento de la plebe, no hay que pasar por alto entre las otras causas (por ejemplo, el devenir cada vez más mecânico del trabajo) el fundamento <ético>, tal y como queda dicho en lo precedente. Sin ser miembro de una corporación legítima (y sólo en cuanto legítima es un colectivo una corporación) el indivíduo, <sin dignidad de clase>, queda reducido por su aislamiento al aspecto egoísta de la indústria, su subsistencia y su goce no son en absoluto <permanentes>. Buscará en consecuencia obtener <su reconocimiento> mediante las demonstraciones externas de su éxito en su industria, demonstraciones que son ilimitadas porque no tiene lugar el viver conforme a su clase dado que la clase no existe (pues en la sociedad civil <existe> únicamente aquel colectivo que es legalmente constituído y reconocido), y por ende no se forma tampoco ningún modo de vida más universal adequado a él”. (Hegel: 674-675).
A gramática da corporação industrial se define por abolir a luta de classes; ela é o remédio contra o antagonismo da sociedade civil:
“Presentes na década de 70 não só nas ciências sociais, onde já tinham sido objeto de um grande número de trabalhos, mas também na literatura, na mídia e no cinema, as classes sociais foram se apagando progressivamente do campo da representação. Na segunda metade dos anos 80, analistas reconhecidos e acatados podiam acreditar e afirmar seriamente que elas já não existiam”. (Boltanski: 316).
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No capitalismo desenvolvido, a gramática da corporação industrial cibernética ocupa o aspecto principal de uma dialética de sintetização entre capitalismo e socialismo, na China. O Ocidente ignora o modelo de economia mista com planificação, característica que define o capitalismo corporativo de Estado (CCE) chinês.
A crise econômica mundial da covid-19 é enfrentada na China através da planificação corporativa de Estado com Estado-cientista.  O capitalismo corporativo mundial privado presente na China se apoia no CCE para lutar contra a crise econômica. Ele terá que se reinventar através de uma planificação capitalista.
Sob o comando de um Donald Trump neoliberal, os Estados Unidos encontram imensas dificuldades para enfrentar a crise sanitária, como humanitarismo, da covid-19. Um capitalismo neoliberal hegemônico no domínio da saúde não tem como enfrentar a acumulação de cadáveres nas cidades e milhões de contagiados pelo novo coronavírus. A plebe doente é um aspecto que afeta a acumulação de capital na América. A crise do capitalismo globalizado é o outro aspecto decisivo para paralisar a economia americana.
Os Estados Unidos têm um bloqueio mental persistente para se livrar do modelo neoliberal capitalista, que articula e organiza a vida da sociedade civil americana. A gramática da corporação industrial neoliberal pesa como chumbo no cérebro dos americanos. Donald Trump faz movimentos que apontam para a <restauração> da razão corporativista neoliberal para depois da crise da covid-19.
A história econômica mundial dos países desenvolvidos parece que vão trocar o capitalismo neoliberal pela economia mista. As elites desenvolvidas têm uma compreensão de que a nova ordem mundial se estabelece baseada na ideia de um planeta que terá que lidar com plurivocidade de crise na primeira metade do século XXI.
Para lidar com a nova história planetária, há necessidade de planificação econômica e um Estado-cientista cibernético natural internacionalizado nas formações sociais nacionais.
Na terceira metade do século XXI, o Estado-cientista faz pendant com o capitalismo corporativo privado mundial (com planificação capitalista) e com o capitalismo corporativo de Estado. A Europa parece adotar esse caminho. Os Estados Unidos se comportam como um grande elefante branco ema loja de cristais.
Os países subdesenvolvidos não conhecem a gramática corporativa industrial. Eles são velhos portadores da gramática do capitalismo burocrático que tem na CEPAL sua fonte de cultura econômica extemporânea. Trata-se de um mundo que vive no passado e do passado.  
Na superfície de representação da vida dos grandes países latino-americanos, não aparecem forças históricas que sejam capazes de dirigir os povos na direção do modelo econômico misto corporativo industrial.
No Brasil, há o agravante do país ter feito do neoliberalismo uma tradição que domina a vida da sociedade. O Brasil se torna aos poucos um cemitério a céu aberto de cadáveres da covid-19. Mesmo com a catastrófica crise da covid-19, a política governamental (governo federal, parlamento, governos locais) dá prosseguimento ao aprofundamento do subdesenvolvimento neoliberal.
Se quer privatizar grandes hospitais em plena crise da covid-19. Economistas profissionais falam da crise econômica permanente que se apodera do Brasil. O ministro da economia insiste em uma narrativa neoliberal que transforma a economia brasileira em uma esfera mítica. Trata-se da economia como esfera mitológica, como produção de mitos econômicos que substituem os fenômenos reais no domínio da representação.   
Paulo Guedes e a grande imprensa são possuídos por uma narrativa na qual figuras míticas como o capital privado e o Mercado Financeiro continuam no comando da cultura econômica brasileira. Para eles, a Europa ocidental se encaminha para o desastre. E só o Brasil pode salvar a hegemonia do capitalismo privado sobre a economia mundial, se Donald Trump for derrotado pela burguesia republicana e democrata, que já fala em planificação capitalista no domínio da saúde pública nos estados americanos.
Viveremos uma época na qual Estado e capitalismo atuarão juntos para a reprodução ampliada de capital e acumulação capitalista. Todavia, não se trata de uma repetição econômica do velho capitalismo monopolista de Estado do século XX.  
A Europa resolve fazer a sintetização entre o Ocidente e o Oriente asiático oriental da planificação. Uma nova ordem mundial emergirá dessa sintetização.

ARENDT, Hannah. A vida do espírito. O pensar, o querer, o julgar. RJ: UFRJ/Relume Dumará, 1992
BOLTANSKI & CHIAPELLO, Luc e Ève. O novo espírito do capitalismo. SP: Martins Fontes, 2009
BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Gramsci et l’État. Paris: Fayard, 1975
HEGEL. Fundamentos de la filosofia del derecho. Madrid: Libertarias/Prodhufi, 1993
DRUCKER, Peter. Sociedade pós-capitalista. SP: Pioneira, 1993
SCHUMPETER. Capitalismo, socialismo e democracia. RJ: Zahar Editores, 1984
THUROW, Lester C. A construção da riqueza. RJ: Rocco, 2001
WEBER, Max. Economia e sociedade. V. 2. Brasília, UNB. 1999   
        
                     

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