José Paulo
No pós-Segunda Guerra mundial, a política nacional de
desenvolvimento se tornou uma preocupação dos povos latino-americanos. A falta
de cultura econômica continental, de um pensamento nacional latino-americano,
eis o que mobilizou economistas cepalinos. Como o argentino Raúl Prebisch e o
brasileiro Celso Furtado.
Em um texto clássico cepalino, Raúl fala de um Estado
subdesenvolvido, pois desprovido de pensamento econômico nacional:
“Desde logo, há defeitos inerentes a toda burocracia de
subdesenvolvimento. Enfim, o anacronismo do Estado não se manifesta unicamente
em seu funcionamento administrativo, mas também na pequena capacidade do
mecanismo existente para fazer surgir novas concepções, para formular e
executar uma política nacional de desenvolvimento”. (Prebisch: 74).
Com a CEPAL, o pensamento econômico latino-americano busca no
Estado desenvolvimentista sua força prática de desenvolvimento capitalista
industrial:
“Se essas ideias que os economistas latino-americanos têm
elaborado devem servir para guiar a ação do Estado sobre as forças do
desenvolvimento, é mister apresentá-las em forma clara e acessível”. (Prebisch:
24).
O processo de desenvolvimento industrial da América Latina
tomou o rumo do capitalismo dependente com participação das multinacionais. Do
pensamento cepalino herdou-se a participação considerável do Estado planificador
no modelo econômico - cujas forças eram as multinacionais, o capital privado
nacional e o capitalismo de Estado.
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O problema do desenvolvimento industrial associado à
planificação estatal aparece como uma necessidade social dos países
subdesenvolvidos:
“Sob outro ponto de vista, esta tarefa de planejamento, este
empenho em agir deliberadamente sobre as forças do desenvolvimento, significa
atribuir ao Estado um poder considerável”. (Prebisch: 76).
Trata-se de fabricar o poder econômico de Estado na forma do
capitalismo burocrático-industrial de Estado. No domínio da sociedade de classes,
surge a burguesia burocrático-industrial de Estado (Prado JR: 112) como <posição de sujeito> no campo de poderes/saberes do
capitalismo latino-americano:
“Os documentos da CEPAL observam, com frequência, que a
intervenção estatal não é incompatível com o funcionamento da economia de
mercado, mas que, pelo contrário, cumpre o papel fundamental de dar curso e
eficácia a seu funcionamento. Em outras palavras, a posição da CEPAL é
contrária ao laisser-faire, mas, ao
mesmo tempo, parte do reconhecimento da existência de um regime de
iniciativa privada, cuja eficácia e adequação aos grandes objetivos do
desenvolvimento dependerão de diferentes graus de intervenção, de acordo com as
características concretas de cada economia periférica e, especialmente, com a
gravidade de seus problemas de estrutura”. (Rodriguez: 171-172).
A história econômica da América Latina tem seu ponto de
inflexão com a instalação de um campo de poderes/saberes capitalista industrial
com capitalismo burocrático-industrial de Estado. Trata-se da dialética de
sintetização latino-americana de capitalismo com economia estatal.
O campo de
poderes/saberes (saber como cultura econômica) implica uma transformação do
Estado subdesenvolvido em Estado planificador:
“Em primeiro lugar, o Estado foi levado a desempenhar funções
cada vez mais complexas no conjunto da Economia. Essa participação crescente
teve caráter direto e indireto, desde a frequente formulação e reformulação das
‘regras do jogo’ das forças produtivas no mercado até a criação de empresas
estatais. Em segundo lugar, a política econômica governamental tornou-se cada
vez mais complexa e ambiciosa, chegando a configurar-se como política econômica
planificada”. (Ianni: 301).
No nosso campo de poderes capitalista com cultura econômica,
fabrica-se um tipo de Estado capitalista planificador como sintetização da
economia de mercado com a economia estatal. No caso brasileiro, o Banco estatal
significa uma ponta de planificação do sistema bancário nacional vinculado ao
setor produtivo.
“Nesse sentido, não seria excessivo afirmar que através do
estudo da evolução do BNDE se adquire uma perspectiva privilegiada para
entender o modo de expansão e reorganização interna do Estado em período
recente”. (Martins: 94).
O capitalismo industrial brasileiro significa a passagem da
gramática do Estado oligárquico -subdesenvolvido para a gramática do Estado capitalista
burocrático:
“Esse foi o contexto em que se verificou a transição do
princípio do <clientelismo>, que definia o Estado Oligárquico,
para o princípio do <mérito>, que passou a caracterizar o Estado
Burguês. Não há dúvida de que as práticas clientelísticas subsistiram em vários
segmentos do sistema político-administrativo. Nem era de esperar-se que elas
fossem totalmente abandonadas. De qualquer modo, no entanto, o governo passou a
recrutar funcionários auxiliares e assessores segundo o princípio da
competência profissional. Assim, pouco a pouco, renovou-se qualitativamente a
composição de boa parte dos auxiliares diretos daqueles que exerciam o Poder
Executivo Os governantes passaram a preferir o ‘profissional’, ‘especialista’
ou ‘técnico’, em lugar do ‘prático’, ‘experiente’ ou ‘homem de confiança’.
(Ianni: 314).
O Estado capitalista burocrático foi associado ao
desenvolvimentismo como sintetização de pensamento econômico latino-americano
cepalino com keynesianismo:
“O desenvolvimentismo foi a ideologia que mais diretamente influenciou
a economia política brasileira e, também, de um modo geral, todo o pensamento
econômico latino-americano. Herdeiro direto da corrente keynesiana, que se
opunha ao liberalismo neoclássico, esse ideário empolgou boa parte da
intelectualidade latino-americana nos anos 40 e 50, e se constituiu na bandeira
de luta de um conjunto heterogêneo de forças sociais favoráveis à
industrialização e à consolidação do desenvolvimento capitalista nos países de
ponta desse continente” . (Mantega: 23).
Há uma interpretação do capitalismo latino-americano cepalino
com industrialização que rompe com a velha linguagem da nossa cultura econômica,
obsoleta. Esta interpretação aparece como revolução intelectual no domínio do
marxismo das Américas. Ela jamais foi metabolizada pela intelectualidade
brasileira:
“o cepalismo é a vontade de saber de uma classe dirigente
periférica e ocidentalista. Na década de cinquenta, a Comissão Econômica para a
América-Latina ocupa o lugar do maître no discurso político latino-americano. A
CEPAL será o agente, o poder como agenciamento da inscrição de um saber no
lugar do Outro (a sociedade como campo dos sabres de um dispositivo
industrial). Ela torna-se o protagonista de uma vontade de saber-poder
industrializante. Não se trata apenas de um grupo intelectual orgânico de uma
burguesia periférica; este grupo não representa na esfera ideológica os
interesses da burguesia industrial periférica; ele é a atividade de uma
considerável vontade de saber preocupada como desenvolvimento autônomo de
países periféricos. Para a CEPAL, a industrialização periférica só pode ser o
motor de um desenvolvimento integral: econômico, social e político. Essa
vontade de saber nacional é também um efeito do modo de articulação hegemônico
no século XX: hegemonia com burocracia”.
“No espaço internacional, a CEPAL é a vontade de saber que
tem como causa a articulação burocrática da sociedade civil com o Estado. Esta
vontade burocrática é um substituto do discurso do capitalista”. (Bandeira da
Silveira. 2002: 106).
3
Na crise do capitalismo neoliberal burocrático, o capitalismo
globalizado aparecerá com capitalismo corporativo mundial. Trata-se de uma mudança
no campo de poderes econômico capitalista mundial, que descrevi em 2002:
“No final da década de oitenta, o neoliberalismo alcança o
estatuto de simulacro político. Como espetáculo histórico, o neoliberalismo é a
ideologia política anglo-americana que reinará nas relações internacionais. Ele
é também um outro fenômeno no cenário mundial. Nos quatro cantos do mundo, as
elites burocráticas entram em decadência. Por um lado, as corporações
multinacionais mudam o seu DNA e o DNA burocrático começa a ser, deste modo,
substituído pelo DNA corporativo. Esta substituição é o motor da transição de
todas as teorias políticas do século XX – imperialismo; colonialismo tardio;
sociologia da dependência etc. – por uma outra lógica do significante político:
a teoria da dependência corporativa”. (Bandeira da Silveira. 2002: 135).
O novo campo do capitalismo corporativo mundial provoca uma
mutação na política da democracia representativa liberal:
“Na época corporativa, os sistemas partidários perdem os dois
modos de articulação espiritual dos partidos com as multidões; a ideologia
classista e a matriz burocrática”. (Bandeira da Silveira. 2002: 136).
No Brasil, a democracia 1988 esvaziou-se gramaticalmente como
resultado do fenômeno supracitado.
Falando mais amplamente:
“No mundo capitalista, tratava-se de substituir o discurso do
burocrata pela fabulação corporativa: substituição do ser social burocrático
pelo ser social corporativo. Na sociedade corporativa do capitalismo, os
partidos precisam inventar um saber político que ainda não existe: o saber
político do capitalismo corporativo mundial. Contudo, este campo de saber já
está em desenvolvimento nos aparelhos ideológicos. A Universidade Americana é o
centro intelectual e ideológico na instalação deste novo campo de saber. A
conjugação de tais fenômenos não acenam para a criação de uma nova origem da
política mundial? É útil, esta faculdade de ver a <origem> de um novo mundo político? Estou
feliz por dizer que a origem é o efeito de uma experimentação política global?
As elites do G7 fizeram da revolução neoliberal uma experimentação política do
globalismo corporativista? “. (Bandeira da Silveira. 2002:136-137).
O capitalismo globalizado corporativo mundial neoliberal se
apresenta como o modo de produção capitalista de acumulação de riqueza sob
hegemonia do capital fictício financeirizado.
O capitalismo corporativo neoliberal é a etapa capitalista
que abole o Estado planificador capitalista no Ocidente:
“O sujeito neoliberal é aquele de uma gramática da história
universal como efeito da crise capitalista ocidental na reprodução ampliada de
capital e acumulação capitalista. O campo de poderes e o campo de sujeitos
existentes funcionavam como fatores da crise do capitalismo industrial nacional
e transnacional, na linguagem de Celso Furtado. O campo de poderes/saberes era
constituído por uma síntese neoclássica/neokeynesiana condensado no estado
administrador da demanda (para promover o pleno emprego) e o Estado do
bem-estar (para redistribuir renda). É a época do Estado com planejador e
promotor do desenvolvimento econômico”. (Bandeira da Silveira. 2019a: 76).
Nas sociedades industriais latino-americanas do cone Sul, a
gramática do capitalismo corporativo mundial não foi metabolizada pela elite
governamental de esquerda ou direita. A sociedade industrial urbana em colapso
é o signo de uma elite que não fez a passagem da gramática burocrática-capitalista
para a gramática corporativista capitalista-industrial, cibernética.
O fenômeno em tela faz ressurgir o subdesenvolvimento
capitalista semi industrial urbano como destino dos povos da América do Sul.
Tal fenômeno é uma linha de força histórica de plurivocidade de gramática capitalista
no mundo desenvolvido cibernético:
“O capitalismo corporativo mundial globalizado desfaz a
oligarquia monopolista estatal como fusão do capital financeiro com o Estado. O
capitalismo financeiro privado produz uma nova geografia econômica capitalista
entre Ocidente e Oriente.
“No Ocidente, o capitalismo financeiro assume o comando da
reprodução ampliada de capital e acumulação capitalista. No Oriente asiático,
ergue-se um sistema neomercantilista de Estado-nação de uma sociedade
industrial asiática, na época cyber. O imperialismo se dissolve no ar como
significante da economia política. E permanece a essência do capitalismo
monopolista, a saber: de ser uma linguagem econômica mista, isto é, capital
privado em aliança com o capital público. No entanto, a ideologia neoliberal
fala da necessidade do fim da linguagem econômica mista”. (Bandeira da
Silveira. 2019b: 42).
A China oferece como modelo econômico aos países capitalista
subdesenvolvidos o CAPITALISMO CORPORATIVO DE ESTADO cibernético, globalizado, como via de
desenvolvimento na época do capitalismo globalizado corporativo neoliberal em
colapso.
4
No Brasil, a covid-19 irrompe em uma realidade
subdesenvolvida que teve seu Estado planificador (no domínio da medicina
social) de outrora neutralizado. O Estado social 1988 tem no SUS (Sistema
Universal de Saúde) um modelo econômico de planificação gerada nas ideias da
medicina social com inspiração no PCB (Partido Comunista Brasileiro).
A política neoliberal bolsonarista quer se desfazer do SUS em
prol da medicina privada dos planos de saúde. Com a covid-19, a crise
neoliberal da medicina social passa a ser julgada pelas pilhas de cadáveres nas
grandes cidades neoliberais. Assim, o neoliberalismo em medicina evoca a paz
dos cemitérios com corpos enterrados, ou incinerados, sem registro de óbito.
Por que o Brasil não trilhou a via da gramática do
desenvolvimento <capitalismo corporativo de Estado>?
O campo da esquerda lulista no poder político foi dirigido
por uma elite intelectual e política refém da cultura econômica cepalina e de
um pensamento econômico marxista em colapso. Tal elite foi vítima da hegemonia
do capitalismo burocrático de Estado - que acabou como fator causal da
corrupção do sistema político partidário.
Após corromper o sistema partidário, a esquerda foi apeada do
poder político por uma direita, assumidamente, neoliberal. Com Bolsonaro, a
extrema-direita neoliberal tomou para si a tarefa de destruir o modelo
econômico do capitalismo burocrático de Estado.
A direita não vinha obtendo sucesso em viabilizar o
desenvolvimento do capitalismo neoliberal, entre nós. Na Argentina, Macri
fracassou completamente na instalação de um modelo neoliberal mafioso, que, no
Brasil, avança com Bolsonaro.
A crise brasileira adquiriu a forma macabra da desarticulação
da economia privada sem que o Estado neoliberal ampare empresas, trabalhadores
formais e população informal.
Bolsonaro diz que a população tem que escolher entre a fome e
a covid19. Nos encontramos entre a cruz e caldeirinha.
Nas grandes cidades, massas famintas e doentes sem o SUS
podem vir a experimentar uma anarquia social de grandes proporções. O governo
Bolsonaro não parece se intimidar com tal evento previsto, facilmente. Economistas
falam em colapso institucional e sócio-estatal no horizonte.
No meio da crise da covid19 em junção com a crise econômica
catastrófica, Bolsonaro “faz sua política” de agir no caos social e estatal.
Bolsonaro não parece acreditar que as massas venham a se chocar com o aparelho
de Estado. Ele não olha para a possibilidade das massas, tendo como motor a
covid-19 cum crise econômica apocalíptica quebrarem o aparelho de Estado e
desarticularem as instituições da sociedade civil.
Todos os países desenvolvidos trabalham com a hipótese
supracitada. Talvez, países subdesenvolvidos como o Brasil não possuam mais
recursos em cultura econômica e recursos políticos de um Estado planificador de
outrora, artefatos necessários socialmente para evitar a quebra da sociedade
nacional e cidades.
Com Bolsonaro, o Brasil encontra-se a deriva.
BANDEIRA DA SILVEIRA. José Paulo. Capitalismo corporativo
mundial. RJ: Papel & Virtual, 2002.
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramáticas do capitalismo.
Lisboa: Chiado Books, 2019a
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje.
Lisboa: Chiado Books, 2019b
IANNI, Octavio. Estado e planejamento econômico no Brasil
(1930-1970). RJ: Civilização Brasileira, 1977
MANTEGA, Guido. A economia política brasileira.
SP/Petrópolis: Polis/VOZES, 1984
MARTINS, Luciano. Estado capitalista e burocracia no Brasil
pós-64
PRADO Jr, Caio. A revolução brasileira. SP: Brasiliense, 1972
PREBISCH, Raúl. Dinâmica do desenvolvimento latino-americano.
Brasil: Editora Fundo de Cultura, 1963
RODRIGUEZ, Octavio. Teoria do subdesenvolvimento da CEPAL. RJ:
Forense-Universitária, 1981
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