quarta-feira, 1 de abril de 2020

CAPITALISMO CORPORATIVO DE ESTADO CIBERNÉTICO


José Paulo


No pós-Segunda Guerra mundial, a política nacional de desenvolvimento se tornou uma preocupação dos povos latino-americanos. A falta de cultura econômica continental, de um pensamento nacional latino-americano, eis o que mobilizou economistas cepalinos. Como o argentino Raúl Prebisch e o brasileiro Celso Furtado.
Em um texto clássico cepalino, Raúl fala de um Estado subdesenvolvido, pois desprovido de pensamento econômico nacional:
“Desde logo, há defeitos inerentes a toda burocracia de subdesenvolvimento. Enfim, o anacronismo do Estado não se manifesta unicamente em seu funcionamento administrativo, mas também na pequena capacidade do mecanismo existente para fazer surgir novas concepções, para formular e executar uma política nacional de desenvolvimento”. (Prebisch: 74).
Com a CEPAL, o pensamento econômico latino-americano busca no Estado desenvolvimentista sua força prática de desenvolvimento capitalista industrial:
“Se essas ideias que os economistas latino-americanos têm elaborado devem servir para guiar a ação do Estado sobre as forças do desenvolvimento, é mister apresentá-las em forma clara e acessível”. (Prebisch: 24).
O processo de desenvolvimento industrial da América Latina tomou o rumo do capitalismo dependente com participação das multinacionais. Do pensamento cepalino herdou-se a participação considerável do Estado planificador no modelo econômico - cujas forças eram as multinacionais, o capital privado nacional e o capitalismo de Estado.
                                                              2
O problema do desenvolvimento industrial associado à planificação estatal aparece como uma necessidade social dos países subdesenvolvidos:
“Sob outro ponto de vista, esta tarefa de planejamento, este empenho em agir deliberadamente sobre as forças do desenvolvimento, significa atribuir ao Estado um poder considerável”. (Prebisch: 76).
Trata-se de fabricar o poder econômico de Estado na forma do capitalismo burocrático-industrial de Estado. No domínio da sociedade de classes, surge a burguesia burocrático-industrial de Estado (Prado JR: 112) como <posição de sujeito> no campo de poderes/saberes do capitalismo latino-americano:
“Os documentos da CEPAL observam, com frequência, que a intervenção estatal não é incompatível com o funcionamento da economia de mercado, mas que, pelo contrário, cumpre o papel fundamental de dar curso e eficácia a seu funcionamento. Em outras palavras, a posição da CEPAL é contrária ao laisser-faire, mas, ao  mesmo tempo, parte do reconhecimento da existência de um regime de iniciativa privada, cuja eficácia e adequação aos grandes objetivos do desenvolvimento dependerão de diferentes graus de intervenção, de acordo com as características concretas de cada economia periférica e, especialmente, com a gravidade de seus problemas de estrutura”. (Rodriguez: 171-172). 
A história econômica da América Latina tem seu ponto de inflexão com a instalação de um campo de poderes/saberes capitalista industrial com capitalismo burocrático-industrial de Estado. Trata-se da dialética de sintetização latino-americana de capitalismo com economia estatal.
 O campo de poderes/saberes (saber como cultura econômica) implica uma transformação do Estado subdesenvolvido em Estado planificador:
“Em primeiro lugar, o Estado foi levado a desempenhar funções cada vez mais complexas no conjunto da Economia. Essa participação crescente teve caráter direto e indireto, desde a frequente formulação e reformulação das ‘regras do jogo’ das forças produtivas no mercado até a criação de empresas estatais. Em segundo lugar, a política econômica governamental tornou-se cada vez mais complexa e ambiciosa, chegando a configurar-se como política econômica planificada”. (Ianni: 301).
No nosso campo de poderes capitalista com cultura econômica, fabrica-se um tipo de Estado capitalista planificador como sintetização da economia de mercado com a economia estatal. No caso brasileiro, o Banco estatal significa uma ponta de planificação do sistema bancário nacional vinculado ao setor produtivo.
“Nesse sentido, não seria excessivo afirmar que através do estudo da evolução do BNDE se adquire uma perspectiva privilegiada para entender o modo de expansão e reorganização interna do Estado em período recente”. (Martins: 94).
O capitalismo industrial brasileiro significa a passagem da gramática do Estado oligárquico -subdesenvolvido para a gramática do Estado capitalista burocrático:  
“Esse foi o contexto em que se verificou a transição do princípio do <clientelismo>, que definia o Estado Oligárquico, para o princípio do <mérito>, que passou a caracterizar o Estado Burguês. Não há dúvida de que as práticas clientelísticas subsistiram em vários segmentos do sistema político-administrativo. Nem era de esperar-se que elas fossem totalmente abandonadas. De qualquer modo, no entanto, o governo passou a recrutar funcionários auxiliares e assessores segundo o princípio da competência profissional. Assim, pouco a pouco, renovou-se qualitativamente a composição de boa parte dos auxiliares diretos daqueles que exerciam o Poder Executivo Os governantes passaram a preferir o ‘profissional’, ‘especialista’ ou ‘técnico’, em lugar do ‘prático’, ‘experiente’ ou ‘homem de confiança’. (Ianni: 314).
O Estado capitalista burocrático foi associado ao desenvolvimentismo como sintetização de pensamento econômico latino-americano cepalino com keynesianismo:
“O desenvolvimentismo foi a ideologia que mais diretamente influenciou a economia política brasileira e, também, de um modo geral, todo o pensamento econômico latino-americano. Herdeiro direto da corrente keynesiana, que se opunha ao liberalismo neoclássico, esse ideário empolgou boa parte da intelectualidade latino-americana nos anos 40 e 50, e se constituiu na bandeira de luta de um conjunto heterogêneo de forças sociais favoráveis à industrialização e à consolidação do desenvolvimento capitalista nos países de ponta desse continente” . (Mantega: 23).
Há uma interpretação do capitalismo latino-americano cepalino com industrialização que rompe com a velha linguagem da nossa cultura econômica, obsoleta. Esta interpretação aparece como revolução intelectual no domínio do marxismo das Américas. Ela jamais foi metabolizada pela intelectualidade brasileira:
“o cepalismo é a vontade de saber de uma classe dirigente periférica e ocidentalista. Na década de cinquenta, a Comissão Econômica para a América-Latina ocupa o lugar do maître no discurso político latino-americano. A CEPAL será o agente, o poder como agenciamento da inscrição de um saber no lugar do Outro (a sociedade como campo dos sabres de um dispositivo industrial). Ela torna-se o protagonista de uma vontade de saber-poder industrializante. Não se trata apenas de um grupo intelectual orgânico de uma burguesia periférica; este grupo não representa na esfera ideológica os interesses da burguesia industrial periférica; ele é a atividade de uma considerável vontade de saber preocupada como desenvolvimento autônomo de países periféricos. Para a CEPAL, a industrialização periférica só pode ser o motor de um desenvolvimento integral: econômico, social e político. Essa vontade de saber nacional é também um efeito do modo de articulação hegemônico no século XX: hegemonia com burocracia”.
“No espaço internacional, a CEPAL é a vontade de saber que tem como causa a articulação burocrática da sociedade civil com o Estado. Esta vontade burocrática é um substituto do discurso do capitalista”. (Bandeira da Silveira. 2002: 106).          
                                                         3
Na crise do capitalismo neoliberal burocrático, o capitalismo globalizado aparecerá com capitalismo corporativo mundial. Trata-se de uma mudança no campo de poderes econômico capitalista mundial, que descrevi em 2002:
“No final da década de oitenta, o neoliberalismo alcança o estatuto de simulacro político. Como espetáculo histórico, o neoliberalismo é a ideologia política anglo-americana que reinará nas relações internacionais. Ele é também um outro fenômeno no cenário mundial. Nos quatro cantos do mundo, as elites burocráticas entram em decadência. Por um lado, as corporações multinacionais mudam o seu DNA e o DNA burocrático começa a ser, deste modo, substituído pelo DNA corporativo. Esta substituição é o motor da transição de todas as teorias políticas do século XX – imperialismo; colonialismo tardio; sociologia da dependência etc. – por uma outra lógica do significante político: a teoria da dependência corporativa”. (Bandeira da Silveira. 2002: 135).
O novo campo do capitalismo corporativo mundial provoca uma mutação na política da democracia representativa liberal:
“Na época corporativa, os sistemas partidários perdem os dois modos de articulação espiritual dos partidos com as multidões; a ideologia classista e a matriz burocrática”. (Bandeira da Silveira. 2002: 136).
No Brasil, a democracia 1988 esvaziou-se gramaticalmente como resultado do fenômeno supracitado.
Falando mais amplamente:
“No mundo capitalista, tratava-se de substituir o discurso do burocrata pela fabulação corporativa: substituição do ser social burocrático pelo ser social corporativo. Na sociedade corporativa do capitalismo, os partidos precisam inventar um saber político que ainda não existe: o saber político do capitalismo corporativo mundial. Contudo, este campo de saber já está em desenvolvimento nos aparelhos ideológicos. A Universidade Americana é o centro intelectual e ideológico na instalação deste novo campo de saber. A conjugação de tais fenômenos não acenam para a criação de uma nova origem da política mundial? É útil, esta faculdade de ver a <origem> de um novo mundo político? Estou feliz por dizer que a origem é o efeito de uma experimentação política global? As elites do G7 fizeram da revolução neoliberal uma experimentação política do globalismo corporativista? “. (Bandeira da Silveira. 2002:136-137).
O capitalismo globalizado corporativo mundial neoliberal se apresenta como o modo de produção capitalista de acumulação de riqueza sob hegemonia do capital fictício financeirizado.  
O capitalismo corporativo neoliberal é a etapa capitalista que abole o Estado planificador capitalista no Ocidente:
“O sujeito neoliberal é aquele de uma gramática da história universal como efeito da crise capitalista ocidental na reprodução ampliada de capital e acumulação capitalista. O campo de poderes e o campo de sujeitos existentes funcionavam como fatores da crise do capitalismo industrial nacional e transnacional, na linguagem de Celso Furtado. O campo de poderes/saberes era constituído por uma síntese neoclássica/neokeynesiana condensado no estado administrador da demanda (para promover o pleno emprego) e o Estado do bem-estar (para redistribuir renda). É a época do Estado com planejador e promotor do desenvolvimento econômico”. (Bandeira da Silveira. 2019a: 76).
Nas sociedades industriais latino-americanas do cone Sul, a gramática do capitalismo corporativo mundial não foi metabolizada pela elite governamental de esquerda ou direita. A sociedade industrial urbana em colapso é o signo de uma elite que não fez a passagem da gramática burocrática-capitalista para a gramática corporativista capitalista-industrial, cibernética.
O fenômeno em tela faz ressurgir o subdesenvolvimento capitalista semi industrial urbano como destino dos povos da América do Sul. Tal fenômeno é uma linha de força histórica de plurivocidade de gramática capitalista no mundo desenvolvido cibernético:
“O capitalismo corporativo mundial globalizado desfaz a oligarquia monopolista estatal como fusão do capital financeiro com o Estado. O capitalismo financeiro privado produz uma nova geografia econômica capitalista entre Ocidente e Oriente.
“No Ocidente, o capitalismo financeiro assume o comando da reprodução ampliada de capital e acumulação capitalista. No Oriente asiático, ergue-se um sistema neomercantilista de Estado-nação de uma sociedade industrial asiática, na época cyber. O imperialismo se dissolve no ar como significante da economia política. E permanece a essência do capitalismo monopolista, a saber: de ser uma linguagem econômica mista, isto é, capital privado em aliança com o capital público. No entanto, a ideologia neoliberal fala da necessidade do fim da linguagem econômica mista”. (Bandeira da Silveira. 2019b: 42). 
A China oferece como modelo econômico aos países capitalista subdesenvolvidos o CAPITALISMO CORPORATIVO DE ESTADO cibernético, globalizado, como via de desenvolvimento na época do capitalismo globalizado corporativo neoliberal em colapso.
                                                                     4
No Brasil, a covid-19 irrompe em uma realidade subdesenvolvida que teve seu Estado planificador (no domínio da medicina social) de outrora neutralizado. O Estado social 1988 tem no SUS (Sistema Universal de Saúde) um modelo econômico de planificação gerada nas ideias da medicina social com inspiração no PCB (Partido Comunista Brasileiro).
A política neoliberal bolsonarista quer se desfazer do SUS em prol da medicina privada dos planos de saúde. Com a covid-19, a crise neoliberal da medicina social passa a ser julgada pelas pilhas de cadáveres nas grandes cidades neoliberais. Assim, o neoliberalismo em medicina evoca a paz dos cemitérios com corpos enterrados, ou incinerados, sem registro de óbito.
Por que o Brasil não trilhou a via da gramática do desenvolvimento <capitalismo corporativo de Estado>?
O campo da esquerda lulista no poder político foi dirigido por uma elite intelectual e política refém da cultura econômica cepalina e de um pensamento econômico marxista em colapso. Tal elite foi vítima da hegemonia do capitalismo burocrático de Estado - que acabou como fator causal da corrupção do sistema político partidário.
Após corromper o sistema partidário, a esquerda foi apeada do poder político por uma direita, assumidamente, neoliberal. Com Bolsonaro, a extrema-direita neoliberal tomou para si a tarefa de destruir o modelo econômico do capitalismo burocrático de Estado.
A direita não vinha obtendo sucesso em viabilizar o desenvolvimento do capitalismo neoliberal, entre nós. Na Argentina, Macri fracassou completamente na instalação de um modelo neoliberal mafioso, que, no Brasil, avança com Bolsonaro.
A crise brasileira adquiriu a forma macabra da desarticulação da economia privada sem que o Estado neoliberal ampare empresas, trabalhadores formais e população informal.
Bolsonaro diz que a população tem que escolher entre a fome e a covid19. Nos encontramos entre a cruz e caldeirinha.
Nas grandes cidades, massas famintas e doentes sem o SUS podem vir a experimentar uma anarquia social de grandes proporções. O governo Bolsonaro não parece se intimidar com tal evento previsto, facilmente. Economistas falam em colapso institucional e sócio-estatal no horizonte.
No meio da crise da covid19 em junção com a crise econômica catastrófica, Bolsonaro “faz sua política” de agir no caos social e estatal. Bolsonaro não parece acreditar que as massas venham a se chocar com o aparelho de Estado. Ele não olha para a possibilidade das massas, tendo como motor a covid-19 cum crise econômica apocalíptica quebrarem o aparelho de Estado e desarticularem as instituições da sociedade civil.
Todos os países desenvolvidos trabalham com a hipótese supracitada. Talvez, países subdesenvolvidos como o Brasil não possuam mais recursos em cultura econômica e recursos políticos de um Estado planificador de outrora, artefatos necessários socialmente para evitar a quebra da sociedade nacional e cidades.
Com Bolsonaro, o Brasil encontra-se a deriva.

BANDEIRA DA SILVEIRA. José Paulo. Capitalismo corporativo mundial. RJ: Papel & Virtual, 2002.
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramáticas do capitalismo. Lisboa: Chiado Books, 2019a
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje. Lisboa: Chiado Books, 2019b
IANNI, Octavio. Estado e planejamento econômico no Brasil (1930-1970). RJ: Civilização Brasileira, 1977
MANTEGA, Guido. A economia política brasileira. SP/Petrópolis: Polis/VOZES, 1984
MARTINS, Luciano. Estado capitalista e burocracia no Brasil pós-64
PRADO Jr, Caio. A revolução brasileira. SP: Brasiliense, 1972
PREBISCH, Raúl. Dinâmica do desenvolvimento latino-americano. Brasil: Editora Fundo de Cultura, 1963 
RODRIGUEZ, Octavio. Teoria do subdesenvolvimento da CEPAL. RJ: Forense-Universitária, 1981

   
  
     


 

                                                               

           
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   


  
  


     



  
   

Nenhum comentário:

Postar um comentário