José Paulo
As duas estratégias modernas de
criação da gramática da ordem social são
a democracia e a autocracia (ditadura). A forma mista democracia/autocracia vem
ganhando terreno em países como Hungria, Turquia., Venezuela, abertamente. Especialistas
em política comparativa falam de uma tendência no Ocidente e no Oriente.
A república presidencialista
americana pode ser considerada uma forma mista?
Em uma página clássica da ciência
política europeia, Hans Kelsen diz que que a eleição do presidente nos EUA é um
enfraquecimento do princípio da soberania. (Kelsen. 1993: 90). O
presidencialismo americano elimina o ultimo resquício de fundamento da ideia de
representação do povo com a eleição de um único indivíduo por milhões de
eleitores.
Se no parlamento no qual estão
compreendidos todos os partidos talvez seja possível pensar que da cooperação
de todas as forças resulte algo que possa ser considerado como vontade
nacional, é impossível pensar em vontade nacional no caso do presidente
designado por eleição presidencial direta e que, por isso mesmo, independe
totalmente do parlamento; e, por outro
lado, não é controlável por todo o corpo popular, imenso e incapaz de agir,
tanto quanto na monarquia hereditária.
A gramática política moderna tem
na relação entre representante e representado um dispositivo da ficção
política. (Kelsen. 1987: 315). Na ficção política, a vontade da maioria é a
vontade geral, o princípio da maioria aparece como o princípio do domínio
legitimo da maioria sobre a minoria. (Kelsen. 1993: 69). A ficção política
soberania popular tem um grau máximo de distância da realidade do representado
e um grau mínimo. O grau máximo se estabelece na relação do povo com o
presidente da república. A distância mínima se estabelece na relação do povo
com o parlamento.
A relação do povo com o
presidente é heterônoma. O presidente é um a força exterior, uma vontade
política exterior que se transforma em lei exterior quando esta vontade
presidencial subjuga o parlamento com o auxílio dos aparelhos ideológicos de
Estado que constroem a opinião pública.
Hans Kelsen diz que a gramática
política moderna tem um elemento sagrado:
“Aquilo que Max Weber denomina,
tão oportunamente, ‘autocefalia’, é tipicamente característico da democracia
real e a distingue da organização política antes chamada autocracia, que agora
se prefere chamar ditadura. A sua ideologia faz o chefe aparecer como um ser de
natureza completamente diferente da natureza da coletividade social a ele
submetida, e, consequentemente, ele vale como um ser superior, de origem
divina, ou é circundado por uma auréola de poderes mágicos”. (Kelsen. 1993: 93).
Se na autocracia, o chefe não é
criado pela comunidade política, na democracia, o comandante em chefe divino é
criado pelo corpo eleitoral. No presidencialismo latino-americano: “a direção exercida pelos
chefes representa um valor absoluto que se expressa na divinização do chefe”.
(Kelsen. 1993: 93). Assim, a política é um fenômeno irracional, ou melhor,
desprovida de razão política.
Acima de qualquer suspeita, Marx
diz da gramática moderna democrática:
“A Assembleia nacional eleita está
em relação metafísica com a nação ao passo que o presidente eleito está em
relação pessoal com ela. A Assembleia Nacional exibe realmente, em seus
representantes individuais, os múltiplos aspectos do espírito nacional,
enquanto no presidente esse espírito nacional encontra a sua encarnação. Em
comparação com a Assembleia, ele possui uma espécie de direito divino; é
presidente pela graça do povo”. (Marx. 1974: 346).
A gramática da moderna democracia
tem estrutura de ficção, e: “a verdade, digamos, por si só, tem uma estrutura
de ficção”. (Lacan. 2008: 186). A política é uma atividade de interpretação da
realidade dos fatos pela soberania popular. A interpretação política não é
binária:
“A interpretação não é submetida
à prova de uma verdade que se decida por sim ou não, mas desencadeia a verdade
como tal. Só é verdadeira na medida em que é verdadeiramente seguida”.
(Lacan.2009: 13).
A gramaticalização da gramática
presidencialista como o verdadeiro faz do presidente um ser investido de um
poder absolutista sagrado se seguido pela maioria do parlamento. O parlamento
representa o poder secular frente ao poder divino do presidente criado pela
ficção política soberania popular.
II
A gramática democrática moderna
trabalha com a ideia de igualdade.:
“no princípio de que qualquer um
pode tornar-se chefe, também o princípio secundário da igualdade fundamental
dos indivíduos transforma-se numa tendência ao maior igualamento possível. A
suposição demagógica de que todos os cidadãos estão igualmente aptos a exercer
qualquer função política acaba por se reduzir à simples possibilidade de que se
tornem aptos a exercer qualquer função política”. (Kelsen. 1993: 96-97).
Com Lenin, a ficção da igualdade
política torna-se populista (“ida ao povo”) e encontra seu apogeu na brochura
“O Estado e a revolução”:
“C’est en ce sens que l’Etat commence à s’eteindre. Au lieu
d’instiruitions spéciales d’une minorité privilégiée (fonctionaires
privillégiés. Chefs de l’armée permanente), la majorité ele-même peut
s’acquitter directement de ces tâches; et plus les fonctions du pouvoir d’Etat
sont exercées par l’ensemble du peuple, moins ce pouvoir devient nécessaire”.
(Lenin,. V. 25: 454).
O mais notável estudioso
ocidental da URSS fala da realidade do Estado soviético desautorizando o
populismo igualitarista de Lenin:
“Dés sa formation, le Sovnarkom
tente de constituer sur des bases nouvelles ses propres appareils
administratifs. En fait, cette tentative ne va pas três loin. Les différents
commissariats du Peuple sont pratiquement conduits à se subordonner (ou à
essayer de se subordonner) une grande partie de l’ancien appareil administratif,
qui ne subit que des transformations internes relativewment mineures”.
(Bethelleim. V. 1: 96).
A URSS criou uma nova gramática política
que ergueu o Estado socialista, mas diferente do populismo igualitarista de
Lenin.
No início do debate em tela,
Hobbes, Locke e Locke e Rousseau na filosofia política se embaralharam com o
par individualismo (igualitarismo) e autoridade:
“Por outras palavras, a partir do
momento em que não mais o grupo mas o indivíduo é concebido como o ser real, a
hierarquia desparece e, com ela, a atribuição imediata da autoridade a um
agente de governo. Nada mais nos resta senão uma coleção de indivíduos, e a
construção de um poder acima deles só pode ser justificada supondo-se o
consentimento comum dos membros da associação”. (Dumont.1985: 92).
O individualismo moderno faz do
igualitarismo a pedra de toque da fabricação da política da modernidade
capitalista industrial. Não é a sociedade de classes sociais que determina a
política e sim o individualismo moderno. A política moderna não tem como
referente classes sociais, e sim o igualitarismo que define o significante
indivíduo moderno. Lenin aprofundou esse elemento da gramática política moderna
levando-o ao credo quia absurdum
(creio porque é absurdo).
O individualismo moderno é
fundado por um fato/artefato político do século XVIII:
“A ‘Declaração dos Direitos do
homem e do Cidadão’ adotada pela Assembleia Constituinte no verão de 1789
marca, num sentido, o triunfo do Indivíduo. Ela tinha sido precedida de
proclamações semelhantes em diversos [estados]
dos Estados Unidos da América, mas foi a primeira a ser adotada como fundamento
da constituição de uma grande nação, imposta a um monarca reticente pela
manifestação popular e proposta como exemplo à Europa e ao mundo. Embora
judiciosamente criticada desde o começo em seu princípio, mormente por Bentham,
ela iria exercer uma ação poderosa, na verdade irresìstível, durante todo o
século XIX e até aos nossos dias.
Após um preâmbulo, abre com os
seguintes artigos:
Art. 1°. Os homens nascem e
permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais somente podem
fundar-se na utilidade comum”. (Dumont.1985
109).
III
Há um consenso entre os que
compartilham o bom senso político de que a eleição de Jair Messias Bolsonaro à
presidência da República teve um caráter de violência simbólica como vingança
do eleitor contra Luís Inácio Lula da Silva. Trata-se da dimensão onde o
presidencialismo encontra-se com o sagrado da violência:
“Como não representa nenhum grupo
particular, e como é apenas ela mesma, a autoridade judiciária não depende de
ninguém em particular, estando, portanto, a serviço de todos, e todos se curvam
diante de suas decisões. Somente o sistema judiciário não hesita em golpear
frontalmente a violência, pois possui um monopólio absoluto sobre a vingança.
Graças a este monopólio, ele consegue, normalmente, abafar a vingança ao invés
de exaspera-la, ao invés de alastrá-la e de multiplicá-la, o que este mesmo
tipo de conduta inevitavelmente provocaria em uma sociedade primitiva.
No final das contas, ao sistema
judiciário e o sacrifício têm, portanto, a mesma função, mas o sistema
judiciário é infinitamente mais eficaz. Só pode existir se associado a um poder
político realmente forte. Como qualquer outro progresso técnico, ele constitui
uma arma de dois gumes, servindo tanto à opressão quanto à liberação”.
(Girad:37)
O monopólio do poder judiciário
sobre o ersatz de vingança está sendo submetido a uma dura prova com o “tribunal
do crime” das organizações criminosas urbanas. A eleição 2018 formou uma
opinião pública cruel que clama por vingança contra o inimigo hegemônico da era
lulista/petista: mulher, negro e LGBT. O
assassinato na rua do homossexual se tornou trivial. Trata-se de um efeito da
maioria que se tornou a vontade de poder dominante.
Na ausência do monopólio da razão
do juiz na interpretação do ersatz de vingança, a vida brasileira mergulha em
um universo que mistura tradição colonial com invenção produzida pela
contemporaneidade na produção da vingança como violência do sagrado.
III
A linguagem política europeia
ocidental é uma fabricação da história das nações do continente supracitado na
árdua construção de uma razão política europeia. O liberalismo político se tece
como linguagem política e razão europeia no período entre a crise do
absolutismo e a Constituição 1875 na França:
C’était la révélation de l’esprit
de 1789 qui imposait à l’Assemblée la mission sacrée de donner une
Constituition a la France et faisait d’elle une incarnation même du pays. Cette
grande aventure intellectuelle, qui n’avaint pas de précédents dans le passé
depuis le temps de Lycurgue et de Solon, qui allait établir le bonheur futur
non seulement des Français mais des hommes sur les bases indestructibles de la
raison, exaltait, dans um mouvement de générosité et d’audace, nobles
libéreaux, curés égalitaires, obscurs légistes provinciaux”. (Jardin:97).
A linguagem política fazendo
pendant com a razão política se constituem como letras (e signos) de uma
gramática política europeia copiada na América Latina. No Brasil, a ideia de
construir uma razão liberal foi abortada a golpe de baionetas:
“Quando a Revolução da Independência
seguia seu curso precipitado, a ala liberal moderada, representada por José
Clemente Pereira, Joaquim Gonçalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa, coronel
Luís Pereira da Nóbrega e João soares Lisboa, teve a ideia de convocação de uma
constituinte, que não só oferecesse maiores garantias de liberdade, como promovesse
a união das províncias, objetivos que o Conselho de Procuradores não conseguira
atingir.
A ideia pode ter sido sugerida
por João Soares Lisboa, que, embora radical, se unira ao grupo liberal, e com o
tempo dele se afastará, será perseguido, preso, e fugirá para Pernambuco, onde
morrerá combatendo ao lado de Frei Caneca a dissolução da Assembleia e a
Constituição outorgada”. (Rodrigues: 21-22).
A Constituição 1823 põe o
imperador como ramo da legislatura. O Art. 110 diz: O Imperador exerce a proposição
que lhe compete na confecção das leis, ou por mensagem ou por ministros
comissários.
Art. 117. Os projetos de lei
adotados pelas duas salas, e pelo imperador, no caso em que é precisa a sanção
imperial, depois de promulgados ficam sendo leis do império. (Dias: 55-56).
Os ministros comissários
representam o imperador no poder legislativo. Art. 111. Os ministros
comissários podem assistir e discutir a proposta, uma vez que as comissões na
maneira já dita tenham dado os seus relatórios, mas não poderão votar.
Não há autonomia entre o poder
legislativo e o poder imperial segundo o princípio da separação e autonomia dos
poderes. (Kelsen. 1993: 89). Um traço levemente absolutista incide na
constituição 1823.
O poder executivo ou do imperador
se define como invasão absolutista da razão liberal relutante:
Art. 142. II – Convocar a nova
assembleia geral ordinária no 1° de julho do terceiro ano da
legislatura existente, e a extraordinária quando julgar que o bem do imperador
o exige.
O projeto de Constituição 1823 foi
a causa de um golpe de Estado desfechado pelo imperador na Assembleia Nacional
Constituinte. O imperador outorgou a Constituição 1824 redefinindo seu poder na
gramática absolutista da política imperial.
Na Constituição 1824, o poder moderador
é o poder pessoal absolutista do imperador delegado privativamente a d. Pedro
I:
Art. 98. O poder moderador é a chave de toda a
organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, com chefe
supremo da nação e seu primeiro representante, para que, incessantemente vele
sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos amis poderes.
O golpe de Estado pombalino
(referência ao absolutismo com aparência de semblância liberal do Marquês de
Pombal) se materializa no Art. 99. A pessoa do Imperador é inviolável e
sagrada; ele não é sujeito a responsabilidade alguma.
O imperador é irresponsável, ele
é o real que invade a razão política liberal tornando-a irracional.
Art. 101. O Imperador exerce o
poder moderador. Tal artigo define o imperador como a dominância do absolutismo
na política brasileira e a foraclusão do liberalismo político da realidade
nacional.
O ato da dissolução da primeira Assembleia
Constituinte nacional é o signo do fim da possibilidade da política liberal
entre nós. Ato fundador da gramática absolutista da vida política nacional de
um príncipe infame:
“Anunciando-se a chegada de um
oficial, que vinha da parte do imperador, o secretário Galvão foi à porta da
sala e trouxe um decreto, que lhe fora entregue com a recomendação de ser lido
e devolvido. Era a dissolução. A Constituinte era dissolvida porque ‘perjurara
ao seu solene juramento de salvar o Brasil’. Afrontando os deputados com essa
terrível acusação, D. Pedro I ainda quis ser irônico, mandando dizer que a
tropa que cercava o edifício viera para defender a Assembleia de qualquer
insulto”. (Sousa: 80).
O poder absolutista imperial
estabeleceu o primeiro Estado de polícia que se tornaria um elemento recorrente
da gramática absolutista do Estado nacional;
“Deportados os deputados
Andradas, José Joaquim da Rocha, Francisco Gê Acayaba de Montezuma e Belchior
Pinheiro de Oliveira, e libertando Nicolau de Campos Vergueiro, o único português
do grupo, por decisão do Conselhos de Estado de 15 de novembro, foi o intendente
geral da polícia armado de todos os
elementos, especialmente despesas secretas, para descobrir ‘clubes’ ,
projetos de perturbação da ordem, e pagar pessoas par vigiarem lugares
públicos, teatros, praças, botequins e lojas com a maior circunspeção e
cautela.
O Conselho determinava que ninguém
podia mais se insultar por motivo de naturalidade, revelando assim a vitória do
partido português junto a D. Pedro I, e determinava a abertura de uma devassa,
servindo de corpo de delito alguns números do Tamoyo e da Sentinela da Praia
Grande”. (Rodrigues: 245).
Vivo em um país no qual a
história não foi gramaticalizada como gramática política absolutista. Tal igramaticalidade
favoreceu a instalação, vida e sobrevida de uma república presidencialista absolutista,
que na terceira-década do século XXI se mostra impotente para resolver nosso problema histórico da produção da
contemporaneidade. Falo do Brasil liderar a construção de um sistema neomercantilista
latino-americano, sistema de Estados neomercantilistas com conteúdo econômico fortes
com Argentina e México.
BETTELHEIM, Charles. Les luttes
de classes en URSS. V. 1. Paris: Maspero/Seuil, 1974
DIAS (ORG), Floriano Aguiar. Constituições
do Brasil. RJ: Editora Liber Juris, 1975
DUMONT, Louis. O
individualismo. RJ: Rocco, 1985
GIRARD, René. A violência e o sagrado.
SP: Paz e Terra/UNESP, 1990
JARDIN, André. Histoire du
libéralisme politique. De la crise de
l’absolutisme à la constituition de 1875
KELSEN. Hans. A democracia. SP:
Martins Fontes, 1993
KELSEN, Hans. Teoria pura do
direito. SP: Martins Fontes, 1987
LACAN, Jacques. O Seminário.
Livro 16. De um Outro ao outro. RJ: Zahar, 2008
LACAN, Jacques.
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SOUSA, Octávio Tarquínio de. Três
golpes de Estado. História dos fundadores do império do Brasil. Belo
Horizonte/SP: Itatiaia/EDUSP.
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