quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

DO PRESIDENCIALISMO E DO SAGRADO


José Paulo



As duas estratégias modernas de criação da gramática da ordem social  são a democracia e a autocracia (ditadura). A forma mista democracia/autocracia vem ganhando terreno em países como Hungria, Turquia., Venezuela, abertamente. Especialistas em política comparativa falam de uma tendência no Ocidente e no Oriente.

A república presidencialista americana pode ser considerada uma forma mista?
Em uma página clássica da ciência política europeia, Hans Kelsen diz que que a eleição do presidente nos EUA é um enfraquecimento do princípio da soberania. (Kelsen. 1993: 90). O presidencialismo americano elimina o ultimo resquício de fundamento da ideia de representação do povo com a eleição de um único indivíduo por milhões de eleitores.
Se no parlamento no qual estão compreendidos todos os partidos talvez seja possível pensar que da cooperação de todas as forças resulte algo que possa ser considerado como vontade nacional, é impossível pensar em vontade nacional no caso do presidente designado por eleição presidencial direta e que, por isso mesmo, independe totalmente do parlamento;  e, por outro lado, não é controlável por todo o corpo popular, imenso e incapaz de agir, tanto quanto na monarquia hereditária. 

A gramática política moderna tem na relação entre representante e representado um dispositivo da ficção política. (Kelsen. 1987: 315). Na ficção política, a vontade da maioria é a vontade geral, o princípio da maioria aparece como o princípio do domínio legitimo da maioria sobre a minoria. (Kelsen. 1993: 69). A ficção política soberania popular tem um grau máximo de distância da realidade do representado e um grau mínimo. O grau máximo se estabelece na relação do povo com o presidente da república. A distância mínima se estabelece na relação do povo com o parlamento.

A relação do povo com o presidente é heterônoma. O presidente é um a força exterior, uma vontade política exterior que se transforma em lei exterior quando esta vontade presidencial subjuga o parlamento com o auxílio dos aparelhos ideológicos de Estado que constroem a opinião pública. 

Hans Kelsen diz que a gramática política moderna tem um elemento sagrado:
“Aquilo que Max Weber denomina, tão oportunamente, ‘autocefalia’, é tipicamente característico da democracia real e a distingue da organização política antes chamada autocracia, que agora se prefere chamar ditadura. A sua ideologia faz o chefe aparecer como um ser de natureza completamente diferente da natureza da coletividade social a ele submetida, e, consequentemente, ele vale como um ser superior, de origem divina, ou é circundado por uma auréola de poderes mágicos”.  (Kelsen. 1993: 93).

Se na autocracia, o chefe não é criado pela comunidade política, na democracia, o comandante em chefe divino é criado pelo corpo eleitoral. No presidencialismo  latino-americano: “a direção exercida pelos chefes representa um valor absoluto que se expressa na divinização do chefe”. (Kelsen. 1993: 93). Assim, a política é um fenômeno irracional, ou melhor, desprovida de razão política. 
Acima de qualquer suspeita, Marx diz da gramática moderna democrática:
“A Assembleia nacional eleita está em relação metafísica com a nação ao passo que o presidente eleito está em relação pessoal com ela. A Assembleia Nacional exibe realmente, em seus representantes individuais, os múltiplos aspectos do espírito nacional, enquanto no presidente esse espírito nacional encontra a sua encarnação. Em comparação com a Assembleia, ele possui uma espécie de direito divino; é presidente pela graça do povo”. (Marx. 1974: 346).

A gramática da moderna democracia tem estrutura de ficção, e: “a verdade, digamos, por si só, tem uma estrutura de ficção”. (Lacan. 2008: 186). A política é uma atividade de interpretação da realidade dos fatos pela soberania popular. A interpretação política não é binária:
“A interpretação não é submetida à prova de uma verdade que se decida por sim ou não, mas desencadeia a verdade como tal. Só é verdadeira na medida em que é verdadeiramente seguida”. (Lacan.2009: 13).

A gramaticalização da gramática presidencialista como o verdadeiro faz do presidente um ser investido de um poder absolutista sagrado se seguido pela maioria do parlamento. O parlamento representa o poder secular frente ao poder divino do presidente criado pela ficção política soberania popular.    

                                                                               II   
A gramática democrática moderna trabalha com a ideia de igualdade.:
“no princípio de que qualquer um pode tornar-se chefe, também o princípio secundário da igualdade fundamental dos indivíduos transforma-se numa tendência ao maior igualamento possível. A suposição demagógica de que todos os cidadãos estão igualmente aptos a exercer qualquer função política acaba por se reduzir à simples possibilidade de que se tornem aptos a exercer qualquer função política”. (Kelsen. 1993: 96-97).  

Com Lenin, a ficção da igualdade política torna-se populista (“ida ao povo”) e encontra seu apogeu na brochura “O Estado e a revolução”:
“C’est en ce sens que l’Etat commence à s’eteindre. Au lieu d’instiruitions spéciales d’une minorité privilégiée (fonctionaires privillégiés. Chefs de l’armée permanente), la majorité ele-même peut s’acquitter directement de ces tâches; et plus les fonctions du pouvoir d’Etat sont exercées par l’ensemble du peuple, moins ce pouvoir devient nécessaire”. (Lenin,. V. 25: 454).

O mais notável estudioso ocidental da URSS fala da realidade do Estado soviético desautorizando o populismo igualitarista de Lenin:
“Dés sa formation, le Sovnarkom tente de constituer sur des bases nouvelles ses propres appareils administratifs. En fait, cette tentative ne va pas três loin. Les différents commissariats du Peuple sont pratiquement conduits à se subordonner (ou à essayer de se subordonner) une grande partie de l’ancien appareil administratif, qui ne subit que des transformations internes relativewment mineures”. (Bethelleim. V. 1: 96).

A URSS criou uma nova gramática política que ergueu o Estado socialista, mas diferente do populismo igualitarista de Lenin.

No início do debate em tela, Hobbes, Locke e Locke e Rousseau na filosofia política se embaralharam com o par individualismo (igualitarismo) e autoridade:
“Por outras palavras, a partir do momento em que não mais o grupo mas o indivíduo é concebido como o ser real, a hierarquia desparece e, com ela, a atribuição imediata da autoridade a um agente de governo. Nada mais nos resta senão uma coleção de indivíduos, e a construção de um poder acima deles só pode ser justificada supondo-se o consentimento comum dos membros da associação”. (Dumont.1985: 92).

O individualismo moderno faz do igualitarismo a pedra de toque da fabricação da política da modernidade capitalista industrial. Não é a sociedade de classes sociais que determina a política e sim o individualismo moderno. A política moderna não tem como referente classes sociais, e sim o igualitarismo que define o significante indivíduo moderno. Lenin aprofundou esse elemento da gramática política moderna levando-o ao credo quia absurdum (creio porque é absurdo).      

O individualismo moderno é fundado por um fato/artefato político do século XVIII:
“A ‘Declaração dos Direitos do homem e do Cidadão’ adotada pela Assembleia Constituinte no verão de 1789 marca, num sentido, o triunfo do Indivíduo. Ela tinha sido precedida de proclamações semelhantes em diversos [estados] dos Estados Unidos da América, mas foi a primeira a ser adotada como fundamento da constituição de uma grande nação, imposta a um monarca reticente pela manifestação popular e proposta como exemplo à Europa e ao mundo. Embora judiciosamente criticada desde o começo em seu princípio, mormente por Bentham, ela iria exercer uma ação poderosa, na verdade irresìstível, durante todo o século XIX e até aos nossos dias.
Após um preâmbulo, abre com os seguintes artigos:
Art. 1°. Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais somente podem fundar-se na utilidade comum”.  (Dumont.1985 109).   

                                                                                    III               
Há um consenso entre os que compartilham o bom senso político de que a eleição de Jair Messias Bolsonaro à presidência da República teve um caráter de violência simbólica como vingança do eleitor contra Luís Inácio Lula da Silva. Trata-se da dimensão onde o presidencialismo encontra-se com o sagrado da violência:
“Como não representa nenhum grupo particular, e como é apenas ela mesma, a autoridade judiciária não depende de ninguém em particular, estando, portanto, a serviço de todos, e todos se curvam diante de suas decisões. Somente o sistema judiciário não hesita em golpear frontalmente a violência, pois possui um monopólio absoluto sobre a vingança. Graças a este monopólio, ele consegue, normalmente, abafar a vingança ao invés de exaspera-la, ao invés de alastrá-la e de multiplicá-la, o que este mesmo tipo de conduta inevitavelmente provocaria em uma sociedade primitiva.
No final das contas, ao sistema judiciário e o sacrifício têm, portanto, a mesma função, mas o sistema judiciário é infinitamente mais eficaz. Só pode existir se associado a um poder político realmente forte. Como qualquer outro progresso técnico, ele constitui uma arma de dois gumes, servindo tanto à opressão quanto à liberação”. (Girad:37)

O monopólio do poder judiciário sobre o ersatz de vingança está sendo submetido a uma dura prova com o “tribunal do crime” das organizações criminosas urbanas. A eleição 2018 formou uma opinião pública cruel que clama por vingança contra o inimigo hegemônico da era lulista/petista: mulher, negro e LGBT.  O assassinato na rua do homossexual se tornou trivial. Trata-se de um efeito da maioria que se tornou a vontade de poder dominante.

Na ausência do monopólio da razão do juiz na interpretação do ersatz de vingança, a vida brasileira mergulha em um universo que mistura tradição colonial com invenção produzida pela contemporaneidade na produção da vingança como violência do sagrado.   

                                                                               III
A linguagem política europeia ocidental é uma fabricação da história das nações do continente supracitado na árdua construção de uma razão política europeia. O liberalismo político se tece como linguagem política e razão europeia no período entre a crise do absolutismo e a Constituição 1875 na França:
C’était la révélation de l’esprit de 1789 qui imposait à l’Assemblée la mission sacrée de donner une Constituition a la France et faisait d’elle une incarnation même du pays. Cette grande aventure intellectuelle, qui n’avaint pas de précédents dans le passé depuis le temps de Lycurgue et de Solon, qui allait établir le bonheur futur non seulement des Français mais des hommes sur les bases indestructibles de la raison, exaltait, dans um mouvement de générosité et d’audace, nobles libéreaux, curés égalitaires, obscurs légistes provinciaux”. (Jardin:97).  

A linguagem política fazendo pendant com a razão política se constituem como letras (e signos) de uma gramática política europeia copiada na América Latina. No Brasil, a ideia de construir uma razão liberal foi abortada a golpe de baionetas:
“Quando a Revolução da Independência seguia seu curso precipitado, a ala liberal moderada, representada por José Clemente Pereira, Joaquim Gonçalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa, coronel Luís Pereira da Nóbrega e João soares Lisboa, teve a ideia de convocação de uma constituinte, que não só oferecesse maiores garantias de liberdade, como promovesse a união das províncias, objetivos que o Conselho de Procuradores não conseguira atingir.
A ideia pode ter sido sugerida por João Soares Lisboa, que, embora radical, se unira ao grupo liberal, e com o tempo dele se afastará, será perseguido, preso, e fugirá para Pernambuco, onde morrerá combatendo ao lado de Frei Caneca a dissolução da Assembleia e a Constituição outorgada”. (Rodrigues: 21-22).

A Constituição 1823 põe o imperador como ramo da legislatura. O Art. 110 diz: O Imperador exerce a proposição que lhe compete na confecção das leis, ou por mensagem ou por ministros comissários. 
Art. 117. Os projetos de lei adotados pelas duas salas, e pelo imperador, no caso em que é precisa a sanção imperial, depois de promulgados ficam sendo leis do império. (Dias: 55-56).
Os ministros comissários representam o imperador no poder legislativo. Art. 111. Os ministros comissários podem assistir e discutir a proposta, uma vez que as comissões na maneira já dita tenham dado os seus relatórios, mas não poderão votar.

Não há autonomia entre o poder legislativo e o poder imperial segundo o princípio da separação e autonomia dos poderes. (Kelsen. 1993: 89). Um traço levemente absolutista incide na constituição 1823.

O poder executivo ou do imperador se define como invasão absolutista da razão liberal relutante:
Art. 142. II – Convocar a nova assembleia geral ordinária no 1° de julho do terceiro ano da legislatura existente, e a extraordinária quando julgar que o bem do imperador o  exige.

O projeto de Constituição 1823 foi a causa de um golpe de Estado desfechado  pelo imperador na Assembleia Nacional Constituinte. O imperador outorgou a Constituição 1824 redefinindo seu poder na gramática absolutista da política imperial.

Na Constituição 1824, o poder moderador é o poder pessoal absolutista do imperador delegado privativamente a d. Pedro I:
Art.  98. O poder moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, com chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que, incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos amis poderes.

O golpe de Estado pombalino (referência ao absolutismo com aparência de semblância liberal do Marquês de Pombal) se materializa no Art. 99. A pessoa do Imperador é inviolável e sagrada; ele não é sujeito a responsabilidade alguma.

O imperador é irresponsável, ele é o real que invade a razão política liberal tornando-a irracional.

Art. 101. O Imperador exerce o poder moderador. Tal artigo define o imperador como a dominância do absolutismo na política brasileira e a foraclusão do liberalismo político da realidade nacional.    

O ato da dissolução da primeira Assembleia Constituinte nacional é o signo do fim da possibilidade da política liberal entre nós. Ato fundador da gramática absolutista da vida política nacional de um príncipe infame:
“Anunciando-se a chegada de um oficial, que vinha da parte do imperador, o secretário Galvão foi à porta da sala e trouxe um decreto, que lhe fora entregue com a recomendação de ser lido e devolvido. Era a dissolução. A Constituinte era dissolvida porque ‘perjurara ao seu solene juramento de salvar o Brasil’. Afrontando os deputados com essa terrível acusação, D. Pedro I ainda quis ser irônico, mandando dizer que a tropa que cercava o edifício viera para defender a Assembleia de qualquer insulto”. (Sousa: 80).

O poder absolutista imperial estabeleceu o primeiro Estado de polícia que se tornaria um elemento recorrente da gramática absolutista do Estado nacional;
“Deportados os deputados Andradas, José Joaquim da Rocha, Francisco Gê Acayaba de Montezuma e Belchior Pinheiro de Oliveira, e libertando Nicolau de Campos Vergueiro, o único português do grupo, por decisão do Conselhos de Estado de 15 de novembro, foi o intendente geral da polícia armado de todos os  elementos, especialmente despesas secretas, para descobrir ‘clubes’ , projetos de perturbação da ordem, e pagar pessoas par vigiarem lugares públicos, teatros, praças, botequins e lojas com a maior circunspeção e cautela.
O Conselho determinava que ninguém podia mais se insultar por motivo de naturalidade, revelando assim a vitória do partido português junto a D. Pedro I, e determinava a abertura de uma devassa, servindo de corpo de delito alguns números do Tamoyo e da Sentinela da Praia Grande”. (Rodrigues: 245).

Vivo em um país no qual a história não foi gramaticalizada como gramática política absolutista. Tal igramaticalidade favoreceu a instalação, vida e sobrevida de uma república presidencialista absolutista, que na terceira-década do século XXI se mostra impotente para resolver nosso  problema histórico da produção da contemporaneidade. Falo do Brasil liderar a construção de um sistema neomercantilista latino-americano, sistema de Estados neomercantilistas com conteúdo econômico fortes com Argentina e México.


BETTELHEIM, Charles. Les luttes de classes en URSS. V. 1. Paris: Maspero/Seuil, 1974
DIAS (ORG), Floriano Aguiar. Constituições do Brasil. RJ: Editora Liber Juris, 1975
DUMONT, Louis. O individualismo.  RJ: Rocco, 1985
GIRARD, René. A violência e o sagrado. SP: Paz e Terra/UNESP, 1990
JARDIN, André. Histoire du libéralisme politique.  De la crise de l’absolutisme à la constituition de 1875
KELSEN. Hans. A democracia. SP: Martins Fontes, 1993
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. SP: Martins Fontes, 1987
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 16. De um Outro ao outro. RJ: Zahar, 2008
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 18. De um discurso que não fosse semblante. RJ: Zahar, 2009
LÉNINE. Ouvres. Tome 25. Paris/Moscou: Éditions Sociales/Éditions du Progrés, 1977
MARX. Os Pensadores. O 18 Brumário de luís Bonaparte. SP: Abril cultural, 1974
RODRIGUES, José Honório. A Assembleia Constituinte de 1923. Petrópolis: VOZES, 1974
SOUSA, Octávio Tarquínio de. Três golpes de Estado. História dos fundadores do império do Brasil. Belo Horizonte/SP: Itatiaia/EDUSP.





    

  

 

  





 

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