José Paulo
O trabalho científico é demorado
e se faz em redes de iminentes colaboradores, instituições universitárias,
estudantes de pós-graduação e a cooperação entre cientistas dos EUA e Europa.
Estou falando da fabricação quase industrial do livro “Os dois corpos do rei”. O
livro em tela necessitou de um volume considerável de capital-dinheiro público.
Com a decadência da razão europeia (e anglo-americana), a cultura científica
perdeu o vigor da década de 1950.
Trata-se de um livro sobre
teologia política medieval, de uma teologia que alcançou o século XX. Nesse meu
ensaio uso a interpretação do Ricardo II do livro do maravilhoso de Kantorowicz
para imaginar a relação da spaltung do eu
real com a política medieval a partir do Ricardo II de Shakespeare. No fim,
falo do eu burguês!
II
2 corpos do rei é um significante
medieval transliterário que habita os domínios da literatura, da teologia e do
direito. Ele é o significante-mestre da política medieval e do absolutismo.
O Rei tem o corpo natural e o
corpo real (de realeza), divino, angelical; corpo real não sujeito à
imbecilidade, velhice ou morte; o rei que nunca morre (corpo político imortal)
faz pendant , no Renascimento, com a propriedade pessoal do patrimonialismo real
no absolutismo; o corpo real é produzido pela consagração em ritual que erige a
dignidade sacramental com os símbolos da coroa, cetro, diadema, óleo e nome ou
título real.
Os 2 corpos do rei fala de uma
separação entre o eu real e o eu do homem comum no drama histórico Ricardo II. Kantorowicz
pensa os 2 corpos do rei a partir da teologia política. A teologia política tem
pontos fortes em Aristóteles e no estoicismo.
A teologia política fala do
orador perfeito como hegemonikón.
(Elorduy. S. J.: 110). Este corresponde ao sujeito gramatical existencial rector percipio. Hegemonikón é a parte mais elevada da alma (rector percipio) que governa as fantasias, o campo dos afetos,
tendências, representações e os instintos ou pulsões. O hegemonikón é o avesso da besta dominada
por apetites das coisas.
A teologia política pensa a
autoridade como posse do rector percipio,
ou seja, aquele que tem as melhores qualidades (ethos) para governar. A teologia pensa o princípio do movimento
político como perfeição; ela fala da existência de Deus (Eloduy,
S. J.: 112-113). como ser perfeito. Deus é a primazia do domínio da bondade
e da inteligência como coisas inseparáveis.
Na teologia política de
Aristóteles, a atualização do poder (potência) se deve a certos seres que podem
mover racionalmente os homens, mulheres e crianças (e coisas) e que seus
poderes são racionais. Tributária de ordem teológica, a razão teológica (Eloduy,
S. J.:112) faz pendant com o poder de mover racionalmente a política.
Aristóteles diz que o hegemonikón na forma humana do rector percipio é um homem que deve ser
excluído da polis/politeia. Porque
não seria digno que ele obedecesse aos mais indignos que ele, nem que todos os
demais se vissem privados do direito natural do homem de mandar
alternativamente, só porque surgira entre eles um ser de uma magnitude superior
à humana; o domínio da bondade e inteligência, inseparáveis, superiores em perfeição ao homem comum só
Deus possuiu. (Eloduy, S. J.: 112-113).
Hegemonikón fala de um poder de movimentar a política como grau
zero de coerção: heimarméne. Esta condensa
em si toda a força e capacidade de produzir movimento. ( Eloduy, S. J.: 141). Hegemonikón é o princípio diretor da
persona estabelecida como unidade do eu cum logos que articula as partes da
alma, sem o qual irremediavelmente conduziria a uma conformação anômala,
monstruosa. (Eloduy, S. J.: 111).
Na psicanálise em gramática
econômica, a persona não encontra-se dissociada da política; ela não é um eu
caixa-forte como em certas teorias psicológicas; uma terapia pela
gramaticalização da persona não pode ser dissociada da política tout court. O significante teológico 2
corpos do rei fala da spaltung de qualquer sujeito gramatical: da divisão do
sujeito à quebra do mundo do sujeito gramatical como linguagem política. (Bloom:
318, 325).
O drama histórico Ricardo II tem
como objeto a spaltung do sujeito
gramatical em ethos e pathos. (Bloom: 320-321). O 2 corpos do
rei é a divisão do sujeito em sublime (ethos)
e grotesco (pathos). A força das
religiões na atualidade se deve ao sujeito realmente existente dividido entre a
busca do sublime (identificação com Deus = Campo simbólico lacaniano) e a queda
nos prazeres grotescos da carne da era feudiana.
III
Pode-se abordar o sujeito pelo governo
de si; pode-se abordar o sujeito como governante de homens, mulheres e
crianças. Neste domínio encontra-se o significante 2 corpos do rei.
Ricardo II é um homem da sociedade de corte do final do
século XIV e rei de uma nobreza militar usada para fazer a Guerra dos Cem Anos.
Ele convocou (sobre a base de possessão da terra) a última ordem de batalha
propriamente feudal, em 1385, em um ataque contra a Escócia. (Anderson: 113). O
eu de Ricardo é determinado pela polémios
(Derrida:110) e pela vida da sociedade de corte.
Ao contrário do eu real
territorial, o eu burguês mais completo é associado ao desenvolvimento da desterritorialização
da esfera econômica capitalista industrial:
“Além do mais, as funções
políticas e militares ainda não se haviam se diferenciado das econômicas, coo
ocorreu gradualmente na sociedade moderna. A ação militar e as ambições
políticas e econômicas eram, na maior parte, idênticas; o desejo ardente de
aumentar a riqueza sob a forma de terras equivalia à mesma coisa que ampliar a
soberania territorial e aumentar o poder militar. O homem mais ricos numa
determinada área, isto é o que possuía mais terra, era portanto o militarmente
mais poderoso, com maior número de servidores e, a um só tempo, comandante do
exército e governante”. (Elias.1993: 46).
O eu medieval territorial da
sociedade ocidental não se constitui como um imaginário (eu↔ eu)? É mais correto falar de um supereu
medieval formado só na sociedade de corte?
Elias diz:
“o tempo deles - e o tempo, como a
moeda, é função da interdependência social – era sujeito apenas
superficialmente à continua divisão e regulação impostas pela dependência em
relação a outras pessoas. O mesmo se aplicava a suas paixões. Eram selvagens,
cruéis, inclinados a explosões de violência e, de igual modo, abandonavam-se à
alegria do momento. Podiam fazer isso. Pouco havia na situação em que viviam
que os compelisse a adotar moderação em seus atos. Pouco em seu condicionamento
os forçava a desenvolver o que poderíamos chamar de um supereu rigoroso e
estável, como função da dependência e das compulsões originarias de outras
pessoas e que neles se transformassem em autodisciplina”. (Elias. 1993: 70).
O eu real fazendo parelha com a
etiqueta se estabelece como relação de dominação eu (rei autodisciplinado) ↔eu
(súdito:
“Para Luís XIV, a função da
etiqueta não consiste apenas em marcar a distância que o separa dos seus
súditos. A etiqueta é para ele um
instrumento de dominação. Luís XIV exprimiu muito claramente este
pensamento nas suas Memórias: ‘Enganam-se grosseiramente aqueles que pensam que
não passam de questões de cerimônia. Os povos sobre os quais reinamos, não
podendo penetrar no amago das coisas, fazem os seus juízos pelo que veem de
fora e é quase sempre a partir das precedências e das posições hierárquicas que
medem o seu respeito e obediência. Como é importante para o público ser
governado por uma só pessoa, também é importante para ele que aquele que
desempenha essa função esteja de tal modo acima dos outros que ninguém se possa
confundir ou comparar com ele e não se pode, sem lesar todo o corpo do Estado,
retirar à sua cabeça os sinais de superioridade, e mesmo os mais ínfimos, que a
distinguem dos seus membros’.
Esta é a opinião de Luís XIV
sobre a etiqueta. Para ele, não se trata de um simples cerimonial, mas de um
meio de dominar os seus súbditos. O povo não crê no poder, mesmo real, se ele
não se manifesta na aparência exterior do monarca. Precisa de ver para crer.
Quanto mais distante se mostra o príncipe, maior será o respeito que o povo lhe
testemunha”. (Elias. 1987)
Respeito e obediência são dois
fenômenos da relação eu↔eu generalizada. Eles dependem das aparências de
semblância autenticas criadas e recriadas também pela etiqueta. Assim, o rei é
o Sol que nasce e se põe todo dia, não como metáfora e sim como realidade
natural:
“De acordo com a distinção que
Portmann faz entre aparências autênticas e inautênticas, poder-se-ia falar de
semblâncias autênticas e inautênticas. Estas últimas, miragens como de alguma fada Morgana, dissolvem-se
espontaneamente ou desaparecem com uma inspeção mais cuidadosa; as primeira,
como o movimento do Sol levantando-se pela manhã para pôr-se ao entardecer, ao
contrário, não cederão a qualquer volume de informação científica, porque esta
é a maneira pela qual a aparência do Sol e da Terra aparece inevitável a
qualquer criatura presa à Terra e que não pode mudar de moradia. Aqui estamos
lidando com aquelas ‘ilusões naturais e inevitáveis’ de nosso aparelho
sensorial, a que Kant se referiu na introdução à dialética transcendental da
razão”. (Arendt: 31).
Respeito, obediência e hierarquia
definem a relação entre o eu comandante (governante, rei, senhor) e o eu
comandado (governado, vassalo) como súbdito;
o eu-governado não é dito é um ersatz de dito, súbdito como reconhecimento da
sociedade criada pelo trabalho do escravo. O eu governante, senhor e chefe é
capaz de prever as coisas (estrategista) e o eu súbdito é capaz de fazer as
coisas com seu corpo, ou seja, é o trabalho manual que cria a riqueza material.
(Aristoteles. 1982:677).
A relação eu↔ eu é parte da história
universal como relação mente e corpo; o eu-rei governa com a mente (e
etiquetas) o corpo político da nação. O 2 corpos do rei é um significante da
paz (sociedade como produção de riqueza pelo trabalho do súbdito ou escravo)
como dialética senhor e escravo; e um significante da guerra como estratégia.
A dialética de reconhecimento senhor-escravo
é dita assim:
“Pour que la réalité humaine puisse
se constituer en tant que réalité <reconnue>, il faut que les deux
adversaires restent en vie aprés la lutte. Or ceci n’est possible qu’à
condition qu’ils se comportent différemment dans cette lutte. Par des actes de
liberté irréductibles, voire imprévisibles ou <indéductibles>, ils
doivent se constituer en tant qu’inégaux dans et par cette lutte même. L’un,
sans y être aucunement <prédestiné>, doit avoir peur de l’autre, doit céder
à l’autre, doit refuser le risque de sa vie en vue de la satisfaction de son
désir de <reconnaissance>. Il doit abandonner son désir et satisfaire le
désir de l’autre; il doit le <reconnaître> sans être <reconnue> par
lui. Or, le <reconnaître> ainsi, c’est le <reconnaître> comme son
Maître, et se reconnaître et se faire reconnaître comme Esclave du Maître”.
(Kojève:15).
A propósito, a dialética
supracitada não estabelece a relação home (senhor) /mulher (súbdita) na era
moderna? A rebelião do eu-mulher contra
o homem na atualidade é o desejo de destruir a dialética senhor versus escravo?
A dialética senhor/escravo se
apossa do corpo celestial do rei Ricardo:
“En efecto, esta conciencia se ha
sentido angustiada no por esto o por aquello, no por este o por aquel instante, sino por su esencia
entera, pues há sentido el miedo de la muerte, del señor absoluto”. (Hegel.
1987; 119).
O rei Ricardo fala do Rei Ricardo
mergulhado na incerteza:
Rei Ricardo – Havia-me
esquecido...Não sou rei? Acorda, indolente majestade! Estás dormindo. Não vale
o nome do rei vinte mil nomes? Arma-te, arma-te, meu nome! Um súdito
insignificante ataca a tua glória suprema...Não olheis para a terra, favoritos
de um rei...Não estamos nas alturas? (Shakespeare: 108).
A dialética senhor/súbdito é aquela entre
Ricardo e Bolingbroque que deporia Ricardo e o assassinaria para se transformar
no novo senhor-rei Henrique IV.
“Rei Ricardo – Nem toda a água do
mar irritado e rugidor pode apagar o óleo santo da fronte de um rei ungido. O sopro
dos simples mortais não pode depor o deputado eleito pelo senhor. Para cada
homem que Bollingbroke obrigue a levantar o aço pérfido contra a nossa áurea
coroa, Deus opõe, a favor de Ricardo, um anjo glorioso de seu sólio celestial.
Se os anjos combatem, os fracos mortais devem sucumbir, pois o céu sempre foi
guardião do direito”. (Shakespeare: 108).
A dialética corpo mortal do rei
versus corpo angelical (imortal) tem a morte como senhor-absoluto no
despojamento do narcisismo freudiano do eu gramatical como sede do hegemonikón = logos (Elorduy, S. J.;
113).
“Escolhamos os executores de
nossas vontades e falemos de testamentos. E, contudo, não...nada disto; pois
que podemos legar à terra, exceto os corpos que nela depositamos? Nossa terra,
nossas vidas e tudo pertencem a Bolingbroke e nada, somente a morte, podemos
chamar de nossa esta miúda estatueta de frágil argila que serve de massa e
cobertura para nossos ossos. Em nome de Deus, sentemo-nos em terra e narremos
tristes histórias de reis desaparecidos; como foram destronados uns, mortos
outros na guerra; perseguidos estes pelos espectros dos que depuseram;
envenenados aqueles pelas esposas; alguns, mortos durante o sono; todos
assassinados. Porque no circulo oco que cinge as têmporas mortais de um rei a
morte mantém sua corte e ali domina a farsante, ridicularizando a pompa dele,
concedendo-lhe um sopro, uma pequena cena para representar de rei, tornar-se
temível e matar com o olhar, iludindo-se com seu egoísmo e seus conceitos
inócuos, como se esta carne que serve de proteção à nossa vida fosse um bronze
impenetrável! E após assim divertir-se, chega ao fim e, com um pequeno
alfinete, atravessa as paredes de seu castelo e adeus rei! Cobri vossas cabeças
e não insulteis a carne e o sangue com solenes reverencias. Deixai para o lado
o respeito, a tradição, as formas, a cortesia, de etiqueta, pois nada mais
fizestes do que enganar-me durante todo este tempo. Vivo de pão como vós; como
vós, sinto a necessidade, saboreio a dor, necessito de amigos, Sendo, pois,
escravo de tudo isto, como podeis dizer-me que sou rei? (Shakespeare:
110).
Ricardo II fala da subjetividade
moderna? Fala do sujeito gramatical da modernidade?
O sujeito gramatical é consequência
da história econômica de uma época. Ricardo nada tem a ver com a história
econômica capitalista. Trata-se de um sujeito gramatical como produto da
política medieval. Ele não tem a paixão pelo ouro ou pelo dinheiro:
“Si no toda la Historia europea,
al menos la del espíritu capitalista tuvo su principio en la lucha de dioses y
hombres por la posesión del oro nefasto”. (Sombart. 1977:33).
Na era capitalista, três tipos de
eu predominam na elite burguesa: técnico, comerciante, financeiro. Eles estão tão
distantes do eu do homem comum como do eu-real. No entanto, são eus da razão
capitalista, da racionalidade instrumental como efeito da história econômica capitalista
industrial da modernidade, mesmo que retroativamente:
“3. El financeiro parte de la necesidad de capital; su principa actividad
es el suministro de capital y la acumulación de capital, principalmente por medio
de medidas técnicas de bolsa. Domina, por lo tanto, de los três mercados,
especialmente el del capital; trabaja, sobre tudo, en fundaciones, fusiones,
formación de consorcios. Impulsiona con especial predilección la creación de
empresas, sua actividad es constructiva; tiene tres dimensiones. Prefiere la
competência de poder. En los países anglosajones, sobre todo ahora en los
Estados Unidos, se le llama Corporation
financier [financeiro de empresas]”. (Sombart.1984: 33).
Na produção da contemporaneidade,
há a junção do eu técnico (Sombart. 1984:32) com o eu financeiro em um cybereu
capitalista industrial na Ásia. O equilíbrio do poder mundial entre
Ocidente/Oriente vai se alterando com o desenvolvimento do sistema
neomercantlista de Estados fortes, em conteúdo econômico, fazendo pendant com a
globalização econômica.
SHAKESPEARE. Obra Completa.
Ricardo II. RJ: Aguillar, 1988
ANDERSON, Perry. El Estado
absolutista. Espanha: Siglo XXI, 1983
ARENDT, Hannah. A vida do
espírito. O pensar, o querer, o julgar. RJ; UFRJ/Relume Dumará, 1992
ARISTOTELES. Obras. Politica.
Madrid: Aguilar, 1982
Aristote. La métaphysique. Tome
II. Paris: J. Vrin, 1986
BLOOM, Harold. Shakespeare: a
invenção do humano. RJ: Objetiva, 2001
DERRIDA, Jacques. Politiques de l’amitié.
Paris: Galilée, 1994
ELIAS, Norbert. O processo
civilizador. V. 2. Formação do Estado e civilização. RJ: Jorge Zahar editor, 1993
ELIAS, Norbert. A sociedade de
corte. Lisboa; Estampa, 1987
ELORDUY, S. J., Eleuterio. El
estoicismo. V. 1. Madrid; Editorial Gredos, 1972
HEGEL. Fenomenologia del
espíritu. México: Fondo de Cultura Económica, 1987
KANTOROWICZ. Ernest H. Os dois
corpos do rei. Um estudo sobre teologia política medieval. SP: Companhia das Letras,
1998
KOJÈVE, Alexandre. Introduction à
la lecture de Hegel. Paris: Gallimard, 1947
SOMBART, Werner. El burguês.
Madrid: Alianza Editorial, 1977
SOMBART, Werner. El apogeo del
capitalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1984
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