sábado, 29 de dezembro de 2018

SHAKESPEARE – psicanálise em gramática econômica


José Paulo


O trabalho científico é demorado e se faz em redes de iminentes colaboradores, instituições universitárias, estudantes de pós-graduação e a cooperação entre cientistas dos EUA e Europa. Estou falando da fabricação quase industrial do livro “Os dois corpos do rei”. O livro em tela necessitou de um volume considerável de capital-dinheiro público. Com a decadência da razão europeia (e anglo-americana), a cultura científica perdeu o vigor da década de 1950.
Trata-se de um livro sobre teologia política medieval, de uma teologia que alcançou o século XX. Nesse meu ensaio uso a interpretação do Ricardo II do livro do maravilhoso de Kantorowicz  para imaginar a relação da spaltung  do  eu real com a política medieval a partir do Ricardo II de Shakespeare. No fim, falo do eu burguês!

                                                            II

2 corpos do rei é um significante medieval transliterário que habita os domínios da literatura, da teologia e do direito. Ele é o significante-mestre da política medieval e do absolutismo.  

O Rei tem o corpo natural e o corpo real (de realeza), divino, angelical; corpo real não sujeito à imbecilidade, velhice ou morte; o rei que nunca morre (corpo político imortal) faz pendant , no Renascimento, com a propriedade pessoal do patrimonialismo real no absolutismo; o corpo real é produzido pela consagração em ritual que erige a dignidade sacramental com os símbolos da coroa, cetro, diadema, óleo e nome ou título real.

Os 2 corpos do rei fala de uma separação entre o eu real e o eu do homem comum no drama histórico Ricardo II. Kantorowicz pensa os 2 corpos do rei a partir da teologia política. A teologia política tem pontos fortes em Aristóteles e no estoicismo.

A teologia política fala do orador perfeito como hegemonikón. (Elorduy. S. J.: 110). Este corresponde ao sujeito gramatical existencial rector percipio. Hegemonikón é a parte mais elevada da alma (rector percipio) que governa as fantasias, o campo dos afetos, tendências, representações e os instintos ou pulsões. O hegemonikón é o avesso da besta dominada por apetites das coisas.

A teologia política pensa a autoridade como posse do rector percipio, ou seja, aquele que tem as melhores qualidades (ethos) para governar. A teologia pensa o princípio do movimento político como perfeição; ela fala da existência de Deus (Eloduy, S. J.: 112-113). como ser perfeito. Deus é a primazia do domínio da bondade e da inteligência como coisas inseparáveis.
Na teologia política de Aristóteles, a atualização do poder (potência) se deve a certos seres que podem mover racionalmente os homens, mulheres e crianças (e coisas) e que seus poderes são racionais. Tributária de ordem teológica, a razão teológica (Eloduy, S. J.:112) faz pendant com o poder de mover racionalmente a política.

Aristóteles diz que o hegemonikón na forma humana do rector percipio é um homem que deve ser excluído da polis/politeia. Porque não seria digno que ele obedecesse aos mais indignos que ele, nem que todos os demais se vissem privados do direito natural do homem de mandar alternativamente, só porque surgira entre eles um ser de uma magnitude superior à humana; o domínio da bondade e inteligência, inseparáveis,  superiores em perfeição ao homem comum só Deus possuiu. (Eloduy, S. J.: 112-113).

Hegemonikón fala de um poder de movimentar a política como grau zero de coerção: heimarméne. Esta condensa em si toda a força e capacidade de produzir movimento. ( Eloduy, S. J.: 141). Hegemonikón é o princípio diretor da persona estabelecida como unidade do eu cum logos que articula as partes da alma, sem o qual irremediavelmente conduziria a uma conformação anômala, monstruosa. (Eloduy, S. J.: 111).

Na psicanálise em gramática econômica, a persona não encontra-se dissociada da política; ela não é um eu caixa-forte como em certas teorias psicológicas; uma terapia pela gramaticalização da persona não pode ser dissociada da política tout court. O significante teológico 2 corpos do rei fala da spaltung de qualquer sujeito gramatical: da divisão do sujeito à quebra do mundo do sujeito gramatical como linguagem política. (Bloom: 318, 325).

O drama histórico Ricardo II tem como objeto a spaltung do sujeito gramatical em ethos e pathos. (Bloom: 320-321). O 2 corpos do rei é a divisão do sujeito em sublime (ethos) e grotesco (pathos). A força das religiões na atualidade se deve ao sujeito realmente existente dividido entre a busca do sublime (identificação com Deus = Campo simbólico lacaniano) e a queda nos prazeres grotescos da carne da era feudiana.

                                                                         III

Pode-se abordar o sujeito pelo governo de si; pode-se abordar o sujeito como governante de homens, mulheres e crianças. Neste domínio encontra-se o significante 2 corpos do rei.
Ricardo II  é um homem da sociedade de corte do final do século XIV e rei de uma nobreza militar usada para fazer a Guerra dos Cem Anos. Ele convocou (sobre a base de possessão da terra) a última ordem de batalha propriamente feudal, em 1385, em um ataque contra a Escócia. (Anderson: 113). O eu de Ricardo é determinado pela polémios (Derrida:110) e pela vida da sociedade de corte.

Ao contrário do eu real territorial, o eu burguês mais completo é associado ao desenvolvimento da desterritorialização da esfera econômica capitalista industrial:
“Além do mais, as funções políticas e militares ainda não se haviam se diferenciado das econômicas, coo ocorreu gradualmente na sociedade moderna. A ação militar e as ambições políticas e econômicas eram, na maior parte, idênticas; o desejo ardente de aumentar a riqueza sob a forma de terras equivalia à mesma coisa que ampliar a soberania territorial e aumentar o poder militar. O homem mais ricos numa determinada área, isto é o que possuía mais terra, era portanto o militarmente mais poderoso, com maior número de servidores e, a um só tempo, comandante do exército e governante”. (Elias.1993: 46).

O eu medieval territorial da sociedade ocidental não se constitui como um imaginário  (eu↔ eu)? É mais correto falar de um supereu medieval formado só na sociedade de corte?
Elias diz:
“o tempo deles - e o tempo, como a moeda, é função da interdependência social – era sujeito apenas superficialmente à continua divisão e regulação impostas pela dependência em relação a outras pessoas. O mesmo se aplicava a suas paixões. Eram selvagens, cruéis, inclinados a explosões de violência e, de igual modo, abandonavam-se à alegria do momento. Podiam fazer isso. Pouco havia na situação em que viviam que os compelisse a adotar moderação em seus atos. Pouco em seu condicionamento os forçava a desenvolver o que poderíamos chamar de um supereu rigoroso e estável, como função da dependência e das compulsões originarias de outras pessoas e que neles se transformassem em autodisciplina”.  (Elias. 1993: 70).

O eu real fazendo parelha com a etiqueta se estabelece como relação de dominação eu (rei autodisciplinado) eu (súdito:
“Para Luís XIV, a função da etiqueta não consiste apenas em marcar a distância que o separa dos seus súditos. A etiqueta é para ele um instrumento de dominação. Luís XIV exprimiu muito claramente este pensamento nas suas Memórias: ‘Enganam-se grosseiramente aqueles que pensam que não passam de questões de cerimônia. Os povos sobre os quais reinamos, não podendo penetrar no amago das coisas, fazem os seus juízos pelo que veem de fora e é quase sempre a partir das precedências e das posições hierárquicas que medem o seu respeito e obediência. Como é importante para o público ser governado por uma só pessoa, também é importante para ele que aquele que desempenha essa função esteja de tal modo acima dos outros que ninguém se possa confundir ou comparar com ele e não se pode, sem lesar todo o corpo do Estado, retirar à sua cabeça os sinais de superioridade, e mesmo os mais ínfimos, que a distinguem dos seus membros’.
Esta é a opinião de Luís XIV sobre a etiqueta. Para ele, não se trata de um simples cerimonial, mas de um meio de dominar os seus súbditos. O povo não crê no poder, mesmo real, se ele não se manifesta na aparência exterior do monarca. Precisa de ver para crer. Quanto mais distante se mostra o príncipe, maior será o respeito que o povo lhe testemunha”. (Elias. 1987)  

Respeito e obediência são dois fenômenos da relação eueu generalizada. Eles dependem das aparências de semblância autenticas criadas e recriadas também pela etiqueta. Assim, o rei é o Sol que nasce e se põe todo dia, não como metáfora e sim como realidade natural:
“De acordo com a distinção que Portmann faz entre aparências autênticas e inautênticas, poder-se-ia falar de semblâncias autênticas e inautênticas. Estas últimas, miragens como  de alguma fada Morgana, dissolvem-se espontaneamente ou desaparecem com uma inspeção mais cuidadosa; as primeira, como o movimento do Sol levantando-se pela manhã para pôr-se ao entardecer, ao contrário, não cederão a qualquer volume de informação científica, porque esta é a maneira pela qual a aparência do Sol e da Terra aparece inevitável a qualquer criatura presa à Terra e que não pode mudar de moradia. Aqui estamos lidando com aquelas ‘ilusões naturais e inevitáveis’ de nosso aparelho sensorial, a que Kant se referiu na introdução à dialética transcendental da razão”. (Arendt: 31).

Respeito, obediência e hierarquia definem a relação entre o eu comandante (governante, rei, senhor) e o eu comandado (governado, vassalo) como súbdito; o eu-governado não é dito é um ersatz de dito, súbdito como reconhecimento da sociedade criada pelo trabalho do escravo. O eu governante, senhor e chefe é capaz de prever as coisas (estrategista) e o eu súbdito é capaz de fazer as coisas com seu corpo, ou seja, é o trabalho manual que cria a riqueza material. (Aristoteles. 1982:677).
 A relação eu eu é parte da história universal como relação mente e corpo; o eu-rei governa com a mente (e etiquetas) o corpo político da nação. O 2 corpos do rei é um significante da paz (sociedade como produção de riqueza pelo trabalho do súbdito ou escravo) como dialética senhor e escravo; e um significante da guerra como estratégia.

A dialética de reconhecimento senhor-escravo é dita assim:
“Pour que la réalité humaine puisse se constituer en tant que réalité <reconnue>, il faut que les deux adversaires restent en vie aprés la lutte. Or ceci n’est possible qu’à condition qu’ils se comportent différemment dans cette lutte. Par des actes de liberté irréductibles, voire imprévisibles ou <indéductibles>, ils doivent se constituer en tant qu’inégaux dans et par cette lutte même. L’un, sans y être aucunement <prédestiné>, doit avoir peur de l’autre, doit céder à l’autre, doit refuser le risque de sa vie en vue de la satisfaction de son désir de <reconnaissance>. Il doit abandonner son désir et satisfaire le désir de l’autre; il doit le <reconnaître> sans être <reconnue> par lui. Or, le <reconnaître> ainsi, c’est le <reconnaître> comme son Maître, et se reconnaître et se faire reconnaître comme Esclave du Maître”. (Kojève:15).  

A propósito, a dialética supracitada não estabelece a relação home (senhor) /mulher (súbdita) na era moderna?  A rebelião do eu-mulher contra o homem na atualidade é o desejo de destruir a dialética senhor versus escravo?
A dialética senhor/escravo se apossa do corpo celestial do rei Ricardo:
“En efecto, esta conciencia se ha sentido angustiada no por esto o por aquello, no por este  o por aquel instante, sino por su esencia entera, pues há sentido el miedo de la muerte, del señor absoluto”. (Hegel. 1987; 119).
O rei Ricardo fala do Rei Ricardo mergulhado na incerteza:
Rei Ricardo – Havia-me esquecido...Não sou rei? Acorda, indolente majestade! Estás dormindo. Não vale o nome do rei vinte mil nomes? Arma-te, arma-te, meu nome! Um súdito insignificante ataca a tua glória suprema...Não olheis para a terra, favoritos de um rei...Não estamos nas alturas? (Shakespeare: 108).

 A dialética senhor/súbdito é aquela entre Ricardo e Bolingbroque que deporia Ricardo e o assassinaria para se transformar no novo senhor-rei Henrique IV.
“Rei Ricardo – Nem toda a água do mar irritado e rugidor pode apagar o óleo santo da fronte de um rei ungido. O sopro dos simples mortais não pode depor o deputado eleito pelo senhor. Para cada homem que Bollingbroke obrigue a levantar o aço pérfido contra a nossa áurea coroa, Deus opõe, a favor de Ricardo, um anjo glorioso de seu sólio celestial. Se os anjos combatem, os fracos mortais devem sucumbir, pois o céu sempre foi guardião do direito”. (Shakespeare: 108).
A dialética corpo mortal do rei versus corpo angelical (imortal) tem a morte como senhor-absoluto no despojamento do narcisismo freudiano do eu gramatical como sede do hegemonikón = logos (Elorduy, S. J.; 113).
“Escolhamos os executores de nossas vontades e falemos de testamentos. E, contudo, não...nada disto; pois que podemos legar à terra, exceto os corpos que nela depositamos? Nossa terra, nossas vidas e tudo pertencem a Bolingbroke e nada, somente a morte, podemos chamar de nossa esta miúda estatueta de frágil argila que serve de massa e cobertura para nossos ossos. Em nome de Deus, sentemo-nos em terra e narremos tristes histórias de reis desaparecidos; como foram destronados uns, mortos outros na guerra; perseguidos estes pelos espectros dos que depuseram; envenenados aqueles pelas esposas; alguns, mortos durante o sono; todos assassinados. Porque no circulo oco que cinge as têmporas mortais de um rei a morte mantém sua corte e ali domina a farsante, ridicularizando a pompa dele, concedendo-lhe um sopro, uma pequena cena para representar de rei, tornar-se temível e matar com o olhar, iludindo-se com seu egoísmo e seus conceitos inócuos, como se esta carne que serve de proteção à nossa vida fosse um bronze impenetrável! E após assim divertir-se, chega ao fim e, com um pequeno alfinete, atravessa as paredes de seu castelo e adeus rei! Cobri vossas cabeças e não insulteis a carne e o sangue com solenes reverencias. Deixai para o lado o respeito, a tradição, as formas, a cortesia, de etiqueta, pois nada mais fizestes do que enganar-me durante todo este tempo. Vivo de pão como vós; como vós, sinto a necessidade, saboreio a dor, necessito de amigos, Sendo, pois, escravo de tudo isto, como podeis dizer-me que sou rei? (Shakespeare: 110). 

Ricardo II fala da subjetividade moderna? Fala do sujeito gramatical da modernidade?
O sujeito gramatical é consequência da história econômica de uma época. Ricardo nada tem a ver com a história econômica capitalista. Trata-se de um sujeito gramatical como produto da política medieval. Ele não tem a paixão pelo ouro ou pelo dinheiro:
“Si no toda la Historia europea, al menos la del espíritu capitalista tuvo su principio en la lucha de dioses y hombres por la posesión del oro nefasto”. (Sombart. 1977:33).
Na era capitalista, três tipos de eu predominam na elite burguesa: técnico, comerciante, financeiro. Eles estão tão distantes do eu do homem comum como do eu-real. No entanto, são eus da razão capitalista, da racionalidade instrumental como efeito da história econômica capitalista industrial da modernidade, mesmo que retroativamente:
“3. El financeiro parte de la necesidad de capital; su principa actividad es el suministro de capital y la acumulación de capital, principalmente por medio de medidas técnicas de bolsa. Domina, por lo tanto, de los três mercados, especialmente el del capital; trabaja, sobre tudo, en fundaciones, fusiones, formación de consorcios. Impulsiona con especial predilección la creación de empresas, sua actividad es constructiva; tiene tres dimensiones. Prefiere la competência de poder. En los países anglosajones, sobre todo ahora en los Estados Unidos, se le llama Corporation financier [financeiro de empresas]”. (Sombart.1984: 33). 
Na produção da contemporaneidade, há a junção do eu técnico (Sombart. 1984:32) com o eu financeiro em um cybereu capitalista industrial na Ásia. O equilíbrio do poder mundial entre Ocidente/Oriente vai se alterando com o desenvolvimento do sistema neomercantlista de Estados fortes, em conteúdo econômico, fazendo pendant com a globalização econômica.


SHAKESPEARE. Obra Completa. Ricardo II. RJ: Aguillar, 1988
ANDERSON, Perry. El Estado absolutista. Espanha: Siglo XXI, 1983
ARENDT, Hannah. A vida do espírito. O pensar, o querer, o julgar. RJ; UFRJ/Relume Dumará, 1992
ARISTOTELES. Obras. Politica. Madrid: Aguilar, 1982
Aristote. La métaphysique. Tome II. Paris: J. Vrin, 1986
BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. RJ: Objetiva, 2001
DERRIDA, Jacques. Politiques de l’amitié. Paris: Galilée, 1994
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. V. 2. Formação do Estado e civilização. RJ:  Jorge Zahar editor, 1993
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Lisboa; Estampa, 1987
ELORDUY, S. J., Eleuterio. El estoicismo. V. 1. Madrid; Editorial Gredos, 1972
HEGEL. Fenomenologia del espíritu. México: Fondo de Cultura Económica, 1987
KANTOROWICZ. Ernest H. Os dois corpos do rei. Um estudo sobre teologia política medieval. SP: Companhia das Letras, 1998
KOJÈVE, Alexandre. Introduction à la lecture de Hegel. Paris: Gallimard, 1947
SOMBART, Werner. El burguês. Madrid: Alianza Editorial, 1977
SOMBART, Werner. El apogeo del capitalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1984     

 

 
    
  



       

    



 



     

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