José Paulo
A democracia representativa é uma
gramática política fabricada na história europeia da luta do parlamento contra
o poder absolutista. A democracia é
parlamentarista como forma política
completa. Na América, se inventou uma forma política mista. Trata-se do
presidencialismo como democracia cum autocracia, ou ditadura, ou estado de
exceção. Giorgio Agamben fala de um
estado de exceção suplementar à democracia presidencialista.
O presidencialismo americano é a
política como gramática do bando soberano. A gramática em tela é aquela da
forma pura da lei como vigência sem significado; lei reduzida ao grau zero de
seu significado e que, no entanto, vigora como tal; a estrutura do bando
soberano presidencialista é aquela de uma lei que vigora, mas não significa.
(Agamben: 59).
A lei presidencialista não
significar uma democracia representativa completa, eis o segredo de toda a
política americana (das Américas). A lei presidencialista não significar uma
política democrática tout court, eis
o segredo de polichinelo da nossa vida política latino-americana.
A gramática paradigmática da
democracia nas Américas é a república dos EUA. Tocqueville estabeleceu a
gramática da América moderna. No entanto, antes de Tocqueville é necessário
tratar da gramática da política moderna em Edgar Allan Poe.
II
Lacan mostra no “Seminário da
Carta Roubada” que para pensar a política devemos começar pela carta roubada como
SIGNIFICANTE-puro da cadeia de significantes da política. (Lacan:15) Quem possui a carta detém o poder político?
A carta é uma carta do amante da
rainha que o ministro D. subtrai da rainha. Por que a posse da carta pelo
ministro significa poder? A subtração da carta põe em risco a honra da rainha e
sua segurança, pois trata-se de uma traição sexual que equivale a um crime de
lesa-majestade, crime capital, ou o conto perde seu sentido político. (Lacan: 28).
A rainha passa a ser um refém da estratégia fatal (Baudrillard. 1983: 39) do
ministro, pois não há dúvida do quanto é perigoso o poder de influência da
rainha sobre o rei. Porém, esta não é a questão principal.
A alta traição da mulher real
significa a não separação burguesa entre o privado e o público. (Lacan. 28)). O
sexo da mulher remete ao poder real e o sigilo sexual da mulher perante o
soberano cria uma cadeia de significantes da política da clandestinidade.
Separação entre vida sexual da mulher burguesa e a política burguesa pode parecer
algo insignificante. Na psicanálise em gramática econômica, a vida sexual do
burguês não interfere no campo de poder seja na economia capitalista, seja no
campo político. Trata-se da passagem do sério para a comédia burguesa no campo
de poder:
“Ora, esses termos, longe de
tolerar o toque da depreciação que têm na comédia burguesa, assumem o sentido
eminente de designar seu soberano, a quem a liga seu juramento e fidelidade, e
de maneira redobrada, já que sua posição de cônjuge não a exime de seu dever de
súdita, mas antes a eleva à guarda daquilo que a realeza, segundo a lei,
encarna do poder: e que se chama legitimidade”. (Lacan. 1996: 27-28).
Separara a legitimidade da
política da condição de fidelidade da mulher real, eis um passo dado pela
burguesia na separação entre esfera pública e esfera privada, vida pública e
vida privada; assim, a mulher é completamente foracluída ou forclusion (Lacan.1966: 11) da política. Mulher burguesa tem honra e segurança privada
(Lacan.1966; 26), mas não será ameaçada de ser decapitada por alta traição se
mergulhar nos prazeres da carne com um terceiro: amante.
A comédia burguesa na França faz
pendant com a comédia histórica do bonapartismo na história universal. Presidente
da república parlamentar, Napoleão III destrói a democracia francesa:
“Em um momento em que a própria
burguesia representava a amis completa comédia, mas com a maior seriedade do
mundo, sem infringir quaisquer das condições pedantes da etiqueta francesa, e
estava ela própria meio iludida e meio convencida da solenidade de sua própria
maneira de governar, o aventureiro que considerava a comédia como simples
comédia tinha forçosamente que vencer. Só depois de eliminar seu solene
adversário, só quando ele próprio assume a sério o seu papel imperial, e sob a máscara
napoleônica imagina ser o verdadeiro Napoleão, só aí ele se torna vítima de sua
própria concepção do mundo, o bufão sério que não mais toma a história
universal por uma comédia e sim a sua própria comédia pela história universal”.
(Marx. 1974: 372-373).
O império bonapartista é o hiperpresidencialismo
sem parlamento, o presidencialismo mais real do que o próprio presidencialismo.
Na história universal moderna, é o cesarismo de Napoleão IIi. É a forma
política pura do presidencialismo em colapso permanente. É uma forma política regressiva,
forma caranguejo:
“Mas o cesarismo, embora expresse
sempre a solução ‘arbitral’, confiada a uma grande personalidade, de uma
situação histórico-política caracterizada por um equilíbrio de forças de
perspectiva catastrófica, não tem sempre o mesmo significado histórico. Pode haver
uma cesarismo progressista e um cesarismo regressivo; e, em última análise, o
significado exato de cada forma de cesarismo só pode ser reconstruído a partir da
história concreta e não de um esquema sociológico. O cesarismo é progressista
quando sua intervenção ajuda a força progressista a triunfar, ainda que com
certos compromissos e acomodações que limitam a vitória; é regressivo quando
sua intervenção ajuda a força regressiva a triunfar, também neste caso com
certos compromissos e limitações, os quais, no entanto, têm um valor, um alcance
e um significado diversos daqueles do caso anterior. César e Napoleão I são
exemplos de cesarismo progressista. Napoleão III e Bismarck, de cesarismo regressivo”.
(Gramsci. 1977:1619).
Na periferia da civilização política
ocidental, uma paródia de cesarismo regressivo encantou a vontade majoritária
do eleitorado em 2018 no Brasil. O país vive uma crise catastrófica na sua
história econômica capitalista industrial, e aposta, todas as suas fichas, na
resiliência imaginária do velho bloco industrial capitalista (+ Banco) dependente
e associado: cesarismo regressivo. As forças
presidencialistas (elite e massas – sujeito grau zero democrático) criaram um cesarismo
bolsonarista em um equilíbrio de forças entre um Estado de direito liberal 1988
em colapso (fazendo pendant com a crise terminal da história econômica
industrial) e a societas sceleris. Esta
se constitui como um bloco de poder lumpesinal com forças sgrammaticatura legal dos de cima e dos debaixo.
III
A América inventou a democracia
presidencialista ex nihilo. A história americana não tem um passado de lutas
entre o parlamento e o poder absolutista. É verdade que o presidencialismo
americano funciona por uma vontade política que estabelece pesos e contrapesos.
Na atualidade, um presidente republicano faz parte de um equilíbrio de poder
com uma câmara nacional democrata. No entanto, Tocqueville criou a gramática do
presidencialismo dos Estados Unidos a partir do poder americano, que extrapola
o espaço político.
Vejamos:
“Observei, durante, minha
temporada nos Estados Unidos, que uma situação social semelhante à dos americanos
poderia oferecer singulares facilidades à implantação do despotismo e mostrei,
ao regressar à Europa, como a maior parte dos nossos príncipes já se
tinham servido das ideias , dos sentimentos
e das necessidades que a mesma situação social fazia surgir, para estender a
esfera do seu poder. Isso me levou a crer que as nações cristãs talvez
acabassem por sofrer alguma opressão, semelhante à que outrora pesou sobre vários
povos da antiguidade”. (Tocqueville. V. 2: 431)
O poder democrático contém a
gramática da tirania moderna:
“Sabemos que, na época do maior
poder dos Césares, os diferentes povos que viviam no mundo romano tinham ainda
conservado costumes e hábitos diversos. Embora sujeitas ao mesmo monarca, a
maior parte das províncias era administrada separadamente; eram cheias de
municipalidades poderosas e ativas e, embora todo o governo do império
estivesse concentrado apenas nas mãos do imperador, e ele continuasse sempre,
quando necessário, árbitro de todas as coisas, os detalhes da vida social e da
existência individual fugiam ordinariamente ao seu controle.
Os imperadores possuíam um poder
imenso e sem contrapartida, que os permitia entregar-se livremente aos caprichos
dos seus pendores e a empregar para satisfazê-los toda a força do Estado.
Muitas vezes, ocorreu-lhes abusar desse poder para arbitrariamente tirar de um
cidadão os bens ou a vida. A sua tirania pesava prodigiosamente sobre alguns,
mas não se estendia sobre um grande número. Prendia-se a alguns objetivos principais
maiores e esquecia o resto; era violenta e contida. (Tocqueville. V. 2:432).
A gramática do poder cesarista original
é aquela de um mundo regulado pelo princípio aristocrático da desigualdade política.
A gramática do poder americano se desenvolve segundo o princípio da ideologia
do igualitarismo:
“Parece que, se o despotismo viesse
a se estabelecer nas nações democráticas de hoje, ele teria outras
características: ele seria mais amplo e mais brando, e ele degradaria os homens
sem atormentá-los.
Não duvido que, nos séculos da
Ilustração e de igualdade, como os nossos, os soberanos mais facilmente
consigam concentrar todos os poderes públicos nas suas mãos apenas, e penetra
mais habitualmente e mais profundamente no círculo dos interesses privados,
como jamais o pôde fazer qualquer daqueles da Antiguidade. Mas essa própria igualdade,
que facilita o despotismo, torna-o mais suave; já vimos como, à medida que os homens
se tornam mais semelhantes e mais iguais, os costumes públicos passam a ser
mais humanos e mais suaves; quando nenhum cidadão tem um grande poder ou
grandes riquezas, a tirania falta, de uma certa maneira, como ocasião e teatro.
(Tocqueville. V. 2: 432-433).
Como profecia racional tocquevilliana
(Weber: 316), o poder americano agência todas as forças presidencialistas da ilustração
e do igualitarismo americano. Excetuando a monarquia parlamentarista absolutista
brasileira do século XIX, o presidencialismo americano existiu como ersatz de
presidencialismo na América espanhola. No final do século XIX, o Brasil
substituiu a monarquia parlamentar por um ersatz de presidencialismo americano.
A gramática do presidencialismo americano
é aquela de um despotismo da modernidade no território da subjetividade que se
parece um deserto de homens, ideias e afetos nacionais:
“Procuro imaginar sob quais
traços novos o despotismo poderia ser produzido no mundo: vejo uma multidão inumerável
de homens semelhantes e iguais que sem descanso se voltam sobre si mesmos a
procura de pequenos e vulgares prazeres, com os quais preenchem a alma. Cada um
deles, afastados dos demais, é como que
estranho ao destino dos demais; seus filhos e seus amigos particulares para ele
constituem toda a espécie humana; quanto
ao restante dos seus cidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os e não
os sente; existe apenas em si e para si
mesmo; se ainda lhe resta uma família, pode-se ao menos dizer que não mais tem
uma pátria”. (Tocqueville. V. 2: 434).
Seguindo, Tocqueville,
finalmente, fala da forma do poder americano arrebatador:
“Acima destes, eleva-se um poder
imenso e tutelar capaz de garantir o prazer deles e velar por sua sorte. É
absoluto, minucioso, regular, previdente e brando. Lembraria mesmo o pátrio
poder, se, como este, tivesse por objeto preparar os homens para a idade viril;
mas, ao contrário, só procura fixá-los irrevogavelmente
na infância”. (Tocqueville. V. 2: 434). Posso imaginar que a gramática
freudiana faz pendant com o poder americano. Veremos mais adiante!
Prossegue:
“Trabalha de bom grado para a felicidade
deles, mas deseja ser o único agente e árbitro exclusivo; provê a segurança
deles, prevê e assegura as necessidades deles, facilita os seus prazeres,
conduz os principais negócios deles, dirige a indústria deles, regula as suas
sucessões, divide as heranças deles. Falta apenas tira-lhes inteiramente, o
incomodo de pensar e a angústia de viver? (Tocqueville. V. 2: 434).
Tocqueville fala da gramática do
despotismo democrático capitalista como efeito da revolução americana.
Habermas fala de um poder
descoberto por Hannah Arendt:
“Numa perspectiva sistêmica, a
gestação do poder apresenta-se como um problema que pode ser solucionado na medida
em que a liderança política exerce maior influência sobre a vontade da população.
Mas, se isto ocorresse graças a meios de coação psíquica e à manipulação das convicções,
tratar-se-ia, segundo H. Arendt, de um aumento de violência, mas não de um
crescimento do poder do sistema político. Porque, segundo a hipótese, o poder
só pode surgir nas estruturas de comunicação não-coercitiva; não pode ser ‘gerado
de cima’. (Habermas; 114).
A diferença entre o presidencialismo
original e o ersatz de presidencialismo americano na América-Latino consiste,
clara e distintamente, no governo como poder arendtiano (governo como poder
não-coercitivo) e o governo como simples violência. Na terminologia de Gramsci,
o governo presidencialista latino-americano não é política como articulação de
hegemonia; o governo é técnica de dominação jurídica (Foucault: 32), sujeição
da população à ferro e fogo, ou pior: dominação simplesmente fática da tirania tout court.
IV
Rigorosamente, a América Latina
não criou ideologias como a ideologia americana:
“Entretanto, o fato histórico é
que a Declaração da Independência fala da ‘busca da felicidade’, e não da
felicidade pública, e é provável que o próprio Jefferson não soubesse com
certeza a que espécie de felicidade ele se referia quando fez de sua busca um dos direitos inalienáveis do homem. Sua famosa
‘fluência de estilo’ tornou imprecisa a distinção entre ‘direitos individuais e
felicidade pública’ com a consequência de que a importância dessa alteração não
foi sequer notada nos debates da Assembleia. Certamente, nenhum dos delegados teria
imaginado a assombrosa trajetória dessa ‘busca da felicidade’, que haveria de
contribuir, mais do que qualquer outra coisa, para a formação de uma ideologia especificamente
americana, e para a terrível e errônea concepção de que nas palavras de Howard
Mumford Jones, os homens têm direito ao ‘sinistro privilégio de perseguir um
espectro e de se apegar a uma ilusão’ “. (Arendt:102).
A ideologia americana substitui os
espectros ou fantasia pilotados pela metafísica europeia da: essência suprema, essência,
vaidade do mundo, essências boas e más, homem-Deus, o homem, espírito do povo, o
todo ou totalidade (Marx.1968: 178-180) pela ideologia da felicidade dos
debaixo.
A busca da felicidade é a estratégia
ocidental como objeto do livro de Freud (Freud. V. XXI: 95) de 1929-1930, “O mal-estar
na civilização”. Na psicanálise em gramática econômica, a felicidade aparece
como um poder ocidental criado pela história econômica do capitalismo do século
XX. Termino falando da sociedade narcose freudiana (Freud. V. XXI; 100) como
busca da felicidade possibilitada pela história econômica do capitalismo
ocidental. Para não falar de cifras imaginárias, centenas de milhões de pessoa
fazem parte de uma sociedade de consumo narcótica; essa economia capitalista da
narcose alterou a natureza e a gramática do Estado no Ocidente.
Entramos, assim, em uma outra
narrativa, a narrativa da vida das massas como busca da felicidade na societas narcose.
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder
soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002
ARENDT, Hannah. Da revolução. SP/Brasília:
Ática/UNB, 1988
BAUDRILLARD, Jean. Les stratégies
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FOUCAULT, Michel. Em defesa da
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FREUD. Obras Completas. V. XXI. O
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GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere.
V. 3. Torino: Einaudi, 1977
HABERMAS. Habermas. Sociologia.
SP: Ática, 1980
LACAN, Jacques. Écrits. Paris:
Seuil, 1966
MARX & Engels. La ideologia alemana.
Montevideo/Barcelona: Ediciones Pueblos Unidos/Grijalbo, 1968
MARX. Pensadores. O 18 Brumário
de luís Bonaparte. SP: Abril Cultural, 1974
POE, Edgar Allan. Histórias
extraordinárias. A carta roubada. RJ: Círculo do Livro, Sem Data
TOCQUEVILLE. De la démocratie en
Amérique. V. 2. Paris: Gallimard, 1961
WEBER, Max. História geral da
economia. SP: Mestre Jou, 1968
Gostei, mas fico esperando um vínculo final entre o presidencialismo despotico e a traição da rainha e seu (dela) medo de se ver revelada pela carta que lhe foi roubada. Afinal, a carta sempre chega ao seu destino?
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ResponderExcluiro significante "carta roubada" fala de posições de sujeito (olhar). o teu olhar não vê que a mulher do presidente pode trair o marido (não perde a cabeça), mas não ocupa a presidência; isso é claro na política americana; negro (Obama) pode mas mulher (Clinton) não pode ser presidente.
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