quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

DA DEMOCRACIA NAS AMÉRICAS E NARCOSE


José Paulo



A democracia representativa é uma gramática política fabricada na história europeia da luta do parlamento contra o poder absolutista.  A democracia é parlamentarista como forma  política completa. Na América, se inventou uma forma política mista. Trata-se do presidencialismo como democracia cum autocracia, ou ditadura, ou estado de exceção. Giorgio Agamben fala de um  estado de exceção suplementar à democracia presidencialista.

O presidencialismo americano é a política como gramática do bando soberano. A gramática em tela é aquela da forma pura da lei como vigência sem significado; lei reduzida ao grau zero de seu significado e que, no entanto, vigora como tal; a estrutura do bando soberano presidencialista é aquela de uma lei que vigora, mas não significa. (Agamben: 59).

A lei presidencialista não significar uma democracia representativa completa, eis o segredo de toda a política americana (das Américas). A lei presidencialista não significar uma política democrática tout court, eis o segredo de polichinelo da nossa vida política latino-americana.

A gramática paradigmática da democracia nas Américas é a república dos EUA. Tocqueville estabeleceu a gramática da América moderna. No entanto, antes de Tocqueville é necessário tratar da gramática da política moderna em Edgar Allan Poe.

                                                                                   II
Lacan mostra no “Seminário da Carta Roubada” que para pensar a política devemos começar pela carta roubada como SIGNIFICANTE-puro da cadeia de significantes da política. (Lacan:15)  Quem possui a carta detém o poder político?

A carta é uma carta do amante da rainha que o ministro D. subtrai da rainha. Por que a posse da carta pelo ministro significa poder? A subtração da carta põe em risco a honra da rainha e sua segurança, pois trata-se de uma traição sexual que equivale a um crime de lesa-majestade, crime capital, ou o conto perde seu sentido político. (Lacan: 28). A rainha passa a ser um refém da estratégia fatal (Baudrillard. 1983: 39) do ministro, pois não há dúvida do quanto é perigoso o poder de influência da rainha sobre o rei. Porém, esta não é a questão principal.

A alta traição da mulher real significa a não separação burguesa entre o privado e o público. (Lacan. 28)). O sexo da mulher remete ao poder real e o sigilo sexual da mulher perante o soberano cria uma cadeia de significantes da política da clandestinidade. Separação entre vida sexual da mulher burguesa e a política burguesa pode parecer algo insignificante. Na psicanálise em gramática econômica, a vida sexual do burguês não interfere no campo de poder seja na economia capitalista, seja no campo político. Trata-se da passagem do sério para a comédia burguesa no campo de poder:
“Ora, esses termos, longe de tolerar o toque da depreciação que têm na comédia burguesa, assumem o sentido eminente de designar seu soberano, a quem a liga seu juramento e fidelidade, e de maneira redobrada, já que sua posição de cônjuge não a exime de seu dever de súdita, mas antes a eleva à guarda daquilo que a realeza, segundo a lei, encarna do poder: e que se chama legitimidade”. (Lacan. 1996: 27-28).

Separara a legitimidade da política da condição de fidelidade da mulher real, eis um passo dado pela burguesia na separação entre esfera pública e esfera privada, vida pública e vida privada; assim, a mulher é completamente foracluída ou forclusion  (Lacan.1966: 11) da política.  Mulher burguesa tem honra e segurança privada (Lacan.1966; 26), mas não será ameaçada de ser decapitada por alta traição se mergulhar nos prazeres da carne com um terceiro: amante.

A comédia burguesa na França faz pendant com a comédia histórica do bonapartismo na história universal. Presidente da república parlamentar, Napoleão III destrói a democracia francesa:
“Em um momento em que a própria burguesia representava a amis completa comédia, mas com a maior seriedade do mundo, sem infringir quaisquer das condições pedantes da etiqueta francesa, e estava ela própria meio iludida e meio convencida da solenidade de sua própria maneira de governar, o aventureiro que considerava a comédia como simples comédia tinha forçosamente que vencer. Só depois de eliminar seu solene adversário, só quando ele próprio assume a sério o seu papel imperial, e sob a máscara napoleônica imagina ser o verdadeiro Napoleão, só aí ele se torna vítima de sua própria concepção do mundo, o bufão sério que não mais toma a história universal por uma comédia e sim a sua própria comédia pela história universal”. (Marx. 1974: 372-373).

O império bonapartista é o hiperpresidencialismo sem parlamento, o presidencialismo mais real do que o próprio presidencialismo. Na história universal moderna, é o cesarismo de Napoleão IIi. É a forma política pura do presidencialismo em colapso permanente. É uma forma política regressiva, forma caranguejo:
“Mas o cesarismo, embora expresse sempre a solução ‘arbitral’, confiada a uma grande personalidade, de uma situação histórico-política caracterizada por um equilíbrio de forças de perspectiva catastrófica, não tem sempre o mesmo significado histórico. Pode haver uma cesarismo progressista e um cesarismo regressivo; e, em última análise, o significado exato de cada forma de cesarismo só pode ser reconstruído a partir da história concreta e não de um esquema sociológico. O cesarismo é progressista quando sua intervenção ajuda a força progressista a triunfar, ainda que com certos compromissos e acomodações que limitam a vitória; é regressivo quando sua intervenção ajuda a força regressiva a triunfar, também neste caso com certos compromissos e limitações, os quais, no entanto, têm um valor, um alcance e um significado diversos daqueles do caso anterior. César e Napoleão I são exemplos de cesarismo progressista. Napoleão III e Bismarck, de cesarismo regressivo”. (Gramsci. 1977:1619).
Na periferia da civilização política ocidental, uma paródia de cesarismo regressivo encantou a vontade majoritária do eleitorado em 2018 no Brasil. O país vive uma crise catastrófica na sua história econômica capitalista industrial, e aposta, todas as suas fichas, na resiliência imaginária do velho bloco industrial capitalista (+ Banco) dependente e associado: cesarismo regressivo.  As forças presidencialistas (elite e massas – sujeito grau zero democrático) criaram um cesarismo bolsonarista em um equilíbrio de forças entre um Estado de direito liberal 1988 em colapso (fazendo pendant com a crise terminal da história econômica industrial) e a societas sceleris. Esta se constitui como um bloco de poder lumpesinal com forças sgrammaticatura legal dos de cima e dos debaixo.  

                                                                              III

A América inventou a democracia presidencialista ex nihilo. A história americana não tem um passado de lutas entre o parlamento e o poder absolutista. É verdade que o presidencialismo americano funciona por uma vontade política que estabelece pesos e contrapesos. Na atualidade, um presidente republicano faz parte de um equilíbrio de poder com uma câmara nacional democrata. No entanto, Tocqueville criou a gramática do presidencialismo dos Estados Unidos a partir do poder americano, que extrapola o espaço político.

Vejamos:
“Observei, durante, minha temporada nos Estados Unidos, que uma situação social semelhante à dos americanos poderia oferecer singulares facilidades à implantação do despotismo e mostrei, ao regressar à Europa, como a maior parte dos nossos príncipes já se tinham  servido das ideias , dos sentimentos e das necessidades que a mesma situação social fazia surgir, para estender a esfera do seu poder. Isso me levou a crer que as nações cristãs talvez acabassem por sofrer alguma opressão, semelhante à que outrora pesou sobre vários povos da antiguidade”. (Tocqueville. V. 2: 431)

O poder democrático contém a gramática da tirania moderna:
“Sabemos que, na época do maior poder dos Césares, os diferentes povos que viviam no mundo romano tinham ainda conservado costumes e hábitos diversos. Embora sujeitas ao mesmo monarca, a maior parte das províncias era administrada separadamente; eram cheias de municipalidades poderosas e ativas e, embora todo o governo do império estivesse concentrado apenas nas mãos do imperador, e ele continuasse sempre, quando necessário, árbitro de todas as coisas, os detalhes da vida social e da existência individual fugiam ordinariamente ao seu controle.
Os imperadores possuíam um poder imenso e sem contrapartida, que os permitia entregar-se livremente aos caprichos dos seus pendores e a empregar para satisfazê-los toda a força do Estado. Muitas vezes, ocorreu-lhes abusar desse poder para arbitrariamente tirar de um cidadão os bens ou a vida. A sua tirania pesava prodigiosamente sobre alguns, mas não se estendia sobre um grande número. Prendia-se a alguns objetivos principais maiores e esquecia o resto; era violenta e contida. (Tocqueville. V. 2:432).
A gramática do poder cesarista original é aquela de um mundo regulado pelo princípio aristocrático da desigualdade política. A gramática do poder americano se desenvolve segundo o princípio da ideologia do igualitarismo:
“Parece que, se o despotismo viesse a se estabelecer nas nações democráticas de hoje, ele teria outras características: ele seria mais amplo e mais brando, e ele degradaria os homens sem atormentá-los.
Não duvido que, nos séculos da Ilustração e de igualdade, como os nossos, os soberanos mais facilmente consigam concentrar todos os poderes públicos nas suas mãos apenas, e penetra mais habitualmente e mais profundamente no círculo dos interesses privados, como jamais o pôde fazer qualquer daqueles da Antiguidade. Mas essa própria igualdade, que facilita o despotismo, torna-o mais suave; já vimos como, à medida que os homens se tornam mais semelhantes e mais iguais, os costumes públicos passam a ser mais humanos e mais suaves; quando nenhum cidadão tem um grande poder ou grandes riquezas, a tirania falta, de uma certa maneira, como ocasião e teatro. (Tocqueville. V. 2: 432-433).

Como profecia racional tocquevilliana (Weber: 316), o poder americano agência todas as forças presidencialistas da ilustração e do igualitarismo americano. Excetuando a monarquia parlamentarista absolutista brasileira do século XIX, o presidencialismo americano existiu como ersatz de presidencialismo na América espanhola. No final do século XIX, o Brasil substituiu a monarquia parlamentar por um ersatz de presidencialismo americano.

A gramática do presidencialismo americano é aquela de um despotismo da modernidade no território da subjetividade que se parece um deserto de homens, ideias e afetos nacionais:
“Procuro imaginar sob quais traços novos o despotismo poderia ser produzido no mundo: vejo uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais que sem descanso se voltam sobre si mesmos a procura de pequenos e vulgares prazeres, com os quais preenchem a alma. Cada um deles, afastados  dos demais, é como que estranho ao destino dos demais; seus filhos e seus amigos particulares para ele constituem toda a espécie humana;  quanto ao restante dos seus cidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os e não os sente; existe apenas em si  e para si mesmo; se ainda lhe resta uma família, pode-se ao menos dizer que não mais tem uma pátria”. (Tocqueville. V. 2: 434).      

Seguindo, Tocqueville, finalmente, fala da forma do poder americano arrebatador:
“Acima destes, eleva-se um poder imenso e tutelar capaz de garantir o prazer deles e velar por sua sorte. É absoluto, minucioso, regular, previdente e brando. Lembraria mesmo o pátrio poder, se, como este, tivesse por objeto preparar os homens para a idade viril; mas, ao contrário, só procura  fixá-los irrevogavelmente na infância”. (Tocqueville. V. 2: 434). Posso imaginar que a gramática freudiana faz pendant com o poder americano. Veremos mais adiante!  
Prossegue:
“Trabalha de bom grado para a felicidade deles, mas deseja ser o único agente e árbitro exclusivo; provê a segurança deles, prevê e assegura as necessidades deles, facilita os seus prazeres, conduz os principais negócios deles, dirige a indústria deles, regula as suas sucessões, divide as heranças deles. Falta apenas tira-lhes inteiramente, o incomodo de pensar e a angústia de viver?  (Tocqueville. V. 2: 434).

Tocqueville fala da gramática do despotismo democrático capitalista como efeito da revolução americana.  
Habermas fala de um poder descoberto por Hannah Arendt:
“Numa perspectiva sistêmica, a gestação do poder apresenta-se como um problema que pode ser solucionado na medida em que a liderança política exerce maior influência sobre a vontade da população. Mas, se isto ocorresse graças a meios de coação psíquica e à manipulação das convicções, tratar-se-ia, segundo H. Arendt, de um aumento de violência, mas não de um crescimento do poder do sistema político. Porque, segundo a hipótese, o poder só pode surgir nas estruturas de comunicação não-coercitiva; não pode ser ‘gerado de cima’. (Habermas; 114).

A diferença entre o presidencialismo original e o ersatz de presidencialismo americano na América-Latino consiste, clara e distintamente, no governo como poder arendtiano (governo como poder não-coercitivo) e o governo como simples violência. Na terminologia de Gramsci, o governo presidencialista latino-americano não é política como articulação de hegemonia; o governo é técnica de dominação jurídica (Foucault: 32), sujeição da população à ferro e fogo, ou pior: dominação simplesmente fática da tirania tout court.   

                                                                    IV

Rigorosamente, a América Latina não criou ideologias como a ideologia americana:
“Entretanto, o fato histórico é que a Declaração da Independência fala da ‘busca da felicidade’, e não da felicidade pública, e é provável que o próprio Jefferson não soubesse com certeza a que espécie de felicidade ele se referia quando fez de sua busca  um dos direitos inalienáveis do homem. Sua famosa ‘fluência de estilo’ tornou imprecisa a distinção entre ‘direitos individuais e felicidade pública’ com a consequência de que a importância dessa alteração não foi sequer notada nos debates da Assembleia. Certamente, nenhum dos delegados teria imaginado a assombrosa trajetória dessa ‘busca da felicidade’, que haveria de contribuir, mais do que qualquer outra coisa, para a formação de uma ideologia especificamente americana, e para a terrível e errônea concepção de que nas palavras de Howard Mumford Jones, os homens têm direito ao ‘sinistro privilégio de perseguir um espectro e de se apegar a uma ilusão’ “. (Arendt:102).

A ideologia americana substitui os espectros ou fantasia pilotados pela metafísica europeia da: essência suprema, essência, vaidade do mundo, essências boas e más, homem-Deus, o homem, espírito do povo, o todo ou totalidade (Marx.1968: 178-180) pela ideologia da felicidade dos debaixo.  

A busca da felicidade é a estratégia ocidental como objeto do livro de Freud (Freud. V. XXI: 95) de 1929-1930, “O mal-estar na civilização”. Na psicanálise em gramática econômica, a felicidade aparece como um poder ocidental criado pela história econômica do capitalismo do século XX. Termino falando da sociedade narcose freudiana (Freud. V. XXI; 100) como busca da felicidade possibilitada pela história econômica do capitalismo ocidental. Para não falar de cifras imaginárias, centenas de milhões de pessoa fazem parte de uma sociedade de consumo narcótica; essa economia capitalista da narcose alterou a natureza e a gramática do Estado no Ocidente.  

Entramos, assim, em uma outra narrativa, a narrativa da vida das massas como busca da felicidade na societas narcose.  

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002
ARENDT, Hannah. Da revolução. SP/Brasília: Ática/UNB, 1988  
BAUDRILLARD, Jean. Les stratégies fatales. Paris: Grasset, 1983
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. SP: Martins Fontes,1999
FREUD. Obras Completas. V. XXI. O mal-estar na civilização. RJ: Imago, 1974  
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. V. 3. Torino: Einaudi, 1977
HABERMAS. Habermas. Sociologia. SP: Ática, 1980
LACAN, Jacques. Écrits. Paris: Seuil, 1966
MARX & Engels. La ideologia alemana. Montevideo/Barcelona: Ediciones Pueblos Unidos/Grijalbo, 1968  
MARX. Pensadores. O 18 Brumário de luís Bonaparte. SP: Abril Cultural, 1974
POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. A carta roubada. RJ: Círculo do Livro, Sem Data
TOCQUEVILLE. De la démocratie en Amérique. V. 2. Paris: Gallimard, 1961
WEBER, Max. História geral da economia. SP: Mestre Jou, 1968




  
       
   

       

  

3 comentários:

  1. Gostei, mas fico esperando um vínculo final entre o presidencialismo despotico e a traição da rainha e seu (dela) medo de se ver revelada pela carta que lhe foi roubada. Afinal, a carta sempre chega ao seu destino?

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  2. o significante "carta roubada" fala de posições de sujeito (olhar). o teu olhar não vê que a mulher do presidente pode trair o marido (não perde a cabeça), mas não ocupa a presidência; isso é claro na política americana; negro (Obama) pode mas mulher (Clinton) não pode ser presidente.

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