José Paulo
POLÍTICA -ANTIGOS E MODERNOS
A psicanálise em gramática
econômica começa no “As leis” de Platão. Começa em uma interrogação de Platão:
“pode-se atingir a perfeição sem
uma luta obstinada contra as hordas de prazeres e desejos que impulsionam para
a impudência e a ação incorreta, e sem subjugá-las mediante o discurso, o ato e
a arte, tanto nos jogos quanto no trabalho – e, realmente, sem se submeter a
quaisquer dessas experiências?”. (Platão. 2010: 98).
O sujeito é o legislador (legifer, νομοθέτης) ou
todo homem digno desse nome. O legislador é um sujeito que tem medo da vergonha
em qualquer tempo da civilização ocidental, e talvez da civilização oriental. O
medo da vergonha faz parelha com a honra no pudor (que sustenta o respeito de
si por si) e a atitude de evitar a impudência (falta de medo da vergonha), pois
a impudência é um mal para todos tanto no espaço público como no espaço privado.
O indivíduo em Platão é partes de
si contra partes de si; ele é um campo de luta do eu (sede da consciência e da
razão) mediante o discurso, o ato, a tekhne, tanto nos jogos de linguagem da
vida pessoal subjetiva como na vida prática na família, no trabalho, instituições
em geral. O νομοθέτης é aquele capaz de legislar sobre sua vida
interior e objetiva; ele é o gramático da vida em situações interiores, institucionais
e na rua.
Freud inventou a psicanálise com
um recurso técnico de um discurso analítico que se alia simbolicamente ao
indivíduo na luta deste contra as forças (internas e externas) capazes de
desestabilizar o sujeito ouνομοθέτη no homem comum. Todo homem vive a partir de
sua própria gramática existencial que permite ao indivíduo atravessar o mundo-da-vida
como sujeito definido como partes de si contra partes de si. É no mínimo uma
visão razoável do viver na polis.
A gramática em tela, comporta a
luta contra `a subjugação do indivíduo à cólera, concupiscência, ignorância, cobiça,
prodigalidade, aura sacra fames, desejo de beleza inalcançável, vigor como a
única condição psicológica aceitável. O sujeito νομοθέτης é o avesso do escravo
das paixões pública e privada. Está claro que o νομοθέτης
precisa se virar para viver sua simples vidinha em qualquer situação.
II
O que é o avesso da psicanálise
lacaniana?
A vergonha é o
avesso da psicanálise. (Lacan: S. XVII: 211)). A vergonha faz pendant com as
formas estéticas do sério (tragédia histórica e épico histórico) em um
contrapondo à comédia histórica (bonapartismo de Napoleão III), em Marx, no
texto o “!8 Brumário de Luís Bonaparte”.
A vergonha nos
remete para a política moderna como lugar onde a bufonaria (Lacan. S. 17: 211)
tomou o lugar do sério, se morrer pela vida política elide o morrer de vergonha
ao não se morrer de vergonha por não acontecer nada.
Morrer de
vergonha é o signo que possui genealogia, pois, ele descende, e degenera do
significante política, em uma genealogia só revelada no campo da ciência da
política da psicanálise em gramática econômica, pois, morrer de vergonha traça
uma fronteira entre a economia do signo da política na vida e na morte.
O cientista
político universitário que escreve sobre a política o faz porque o sistema
universitário espera dele uma produção escrita e oral (aula, palestra, conferência).
O universitário não tem vergonha, ele não põe um pouco de vergonha no tempero
de sua fala. A consciência ignóbil, vil, que provoca aversão sexual é o signo
da falta de vergonha no tratar da coisa política; ela é o discurso do mestre
pervertido, discurso no qual a política é vida de palhaço de circo: fazer rir o
“nobre público”.
O morrer de
vergonha é o fracasso do significante, ou seja, o ser para a morte, na medida
em que ele concerne ao sujeito. O ser para a morte é o cartão de visita pelo
qual um significante representa um sujeito para outro significante. (Lacan. S. XVII:
209).
Esse cartão de
visita nunca chega a bom porto, já que, por levar o endereço da morte, ele
precisa ser rasgado. Se o honesto é aquele que preza a honra, morrer
honestamente de vergonha é o cartão de vista rasgado para o honesto como o
impossível. O honesto não é um homem impulsionado por um sentimento de vergonha
e relutante em exibir-se em público antes de gozar da melhor condição
possível. O sujeito ouνομοθέτη teme pela
reputação não por ser honesto, mas por em incorrer numa má reputação ao fazer
ou dizer algo vi. Este medo do sujeito ouνομοθέτη dá-se o nome de vergonha.
(Platão: 96).
O sujeito
ouνομοθέτη morre de vergonha em não ser superior a si mesmo, ou seja, em ser
inferior a si mesmo. Se ele não domina a si mesmo, ele morre de vergonha.
Então, se a política é inferior a si mesma, ela não morre de vergonha, pois,
ela não se define como a atividade que existe para resolver seriamente os
problemas da polis. Assim, ele faz da bufonaria seu modo de ser; ela se volta
para a abundância das palavras sobre os assuntos insignificantes. A política se
torna a embriaguez das massas e, às vezes, o Estado sob controle de uma única
criança ou de um grupo de criança.
O Estado de
crianças legal (para quem a vergonha inexiste) só pode fazer a política cadmiana. Política que semea dentes de
dragão dos quis nascem os aparti,
que, a despeito de colherem uma vitória acabam matando entre si, ou seja, é uma
política que acarreta mais saldo negativo que positivo.
O
Estado-criança é a administração da vida política como brincadeira, como jogo
de cabra-cega, pois, o tempo sério da política acabou. É verdade que crianças
bem educadas se revelarão bons indivíduos, que sendo bons vencerão seus
inimigos em batalha, além de agirem com nobreza em relação a outras coisas.
Para isso acontecer, a educação tem que ser realizada sob o sigo do sério e o
signo morrer de vergonha senão a política vira uma comédia. Os franceses ensinavam
para suas crianças que Napoleão III era um príncipe sério, e não um príncipe
bufão, um clown grotesco.
Quando a França
entrou em guerra com a Prússia de Bismark, a França finalmente entendeu que
Napoleão III não era um imperador para valer, pois se transformou em motivo de
riso para os alemães. Napoleão experimentou mais que o covarde os transtornos
do medo.
III
Se a política
não é a aquilo que irradia a gramática na compreensão nos indivíduos e nas
massas tanto do desejo de governar como de ser governado, não tem como ser algo
sério. Se ela faz da palhaçada o modo de tratar os problemas, declarando-os
assim insolúveis, então a vida em comum perdeu-se, honestamente, sem vergonha
na cara.
A avaliação das
opiniões acerca do futuro (expectativas) movida pela dor do medo ou pelo prazer
da confiança perde força de realidade para definir o que é boa ou má. E a avaliação
que se torna lei já é apenas uma engenhosa máquina cujo efeito no sujeito é
determiná-lo como marionete dos deuses (campo do simbólico, cadeia de
significantes). Campo inventado para ser um brinquedo deles, mas jamais criado
para ser um propósito sério, pois, o signo morrer de vergonha atravessou o
horizonte irrevogavelmente.
Se a
transferência do saber deixa de ser algo possível, atravessasse-se a fronteira
para o poder dos impossíveis freudianos: governar, educar, (psi) analisar.
(Freud. v.23: 282). A comédia começa com o poder dos impossíveis, pois, não se
pode governar, educar e psicanalisar seriamente. O significante política deixa
de ser gramaticalizavel, ele não advém do real como vergonha. A vergonha é o
buraco no real de onde brota o significante-mestre (Lacan. S. XVII:218) política. A
política é o que é legível no real e faz discurso político. (Lacan. 2003: 535).
A luta de
classes fazia na sociedade capitalista industrial um proletariado como a plebe
romana, constituído por pessoas distintas, honradas, uma consciência de classe
nobre ao lado da burguesia mergulhada em uma comédia histórica que derrota o
socialismo trágico, porém que acaba como o fim do Ocidente.
A comédia
ocidental da antiguidade é associada a canções ou canto que se somavam às
danças executadas durante as jubilosas e bufonescas festas em honra do deus
Dionísio. O tom de gracejo e escárnio na representação artística (teatral ou
musical) não podia faltar. O cômico é o avesso da falta do princípio de
exatidão nas formas culturais (tendo como paradigma a melodia) a serem
acolhidas como forma política e lei. (Platão.2010: 108,109).
Na vida
política da antiguidade, o princípio da exatidão via ritmo e harmonia nas
posturas e expressões vocais faz pendant com a ligação pela canção, dança e
coro dos homens, mulheres e crianças. A educação é o treinamento da criança
como disciplina dos prazeres e dores visando o belo e evitando o feio,
distorcido, grotesco. A cultura pelo princípio da exatidão não é uma forma de
utilitarismo.
IV
O moderno europeu
(no lugar do homem, ou seja, do universal) lida com a dor e o prazer pelo princípio
da utilidade:
“A natureza
colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos; a dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem
como determinar o que na realidade faremos. Ao trono desses dois senhores está
vinculada, por uma parte, a norma que distingue o que é reto do que é errado,
e, por outra, a cadeia de causas e dos efeitos”.
Os dois
senhores de que falamos nos governam em tudo o que fazemos, em tudo o que
dizemos, em tudo o que pensamos, sendo que qualquer tentativa que façamos para
sacudir este senhorio outra coisa não faz senão demonstrá-lo e confirmá-lo.
Através das suas palavras, o homem pode pretender abjurar tal domínio, porém na
realidade permanecerá sujeito a ele em todos os momentos da sua vida.
O princípio da utilidade reconhece esta
sujeição e a coloca como fundamento desse sistema, cujo objetivo consiste em
construir o edifício da felicidade através da razão e da lei. Os sistemas que
tentam questionar este princípio são meras palavras e não uma atitude razoável,
capricho e não razão, obscuridade e não luz”. (Bentham: 9).
Na antiguidade,
o ensinar a lidar com o prazer e a dor é um problema de Estado. (Platão: 108). No
século XVIII, uma política medical submetida à medicina privada <liberal>,
aos mecanismo da iniciativa individual e às leis do mercado se liga a uma estrutura de poder que visa a saúde de uma
coletividade.
Há uma política
de saúde e de uma tomada em consideração da doenças como problema político e
econômico em uma estratégia global privado e público. A nosopolítica (cuidado
político com a população) não é o resultado de uma iniciativa vertical, aparece
no século XVIII como um problema com direções múltiplas; a saúde de todos como
urgência para todos; o estado de saúde de uma população como objetivo geral.
(Foucault. V. 3: 14-15).
Os pobres
doentes são o objeto da ´política de saúde coletiva; lidar com a pobreza objetivamente
é fixá-la no pobre como útil, força de trabalho produtiva. Trata-se da relação
dapobreza com o desenvolvimento da sociedade capitalista. Mas não se trata só
de economia capitalista:
“Il ne s’agit
plus là du soutien à une frange particulièrement fragile – troublée et
pertubatrice - de la population, mais de
la manière dont on peut élever le niveau de santé du corps social dans son
ensemble. Les divers appareils de pouvoir ont à prendre en charge les <corps>,
non pas simplement pour exiger d’eux le servisse du sang ou pour les protéger
contre les ennemis, non pas simplement pour assurer les châtiment ou extorquer
les redevances, mais pour les aider, au besoin les contraindre, `a garantir
leur santé. L’impératif de santé: devoir de chacun et objective general”,
(Foucault. V. 3: 16).
A estratégia da
política da saúde do corpo social do
pobre faz pendant com a ideia de felicidade pelo princípio do utilitarismo? Na
estratégia em tela, a felicidade do corpo social entra no cálculo dos aparelhos
de poder. Trata-se de um recurso evolutivo da civilização europeia que evoca as
ideias gregas do melhor estado e Estado para a população.
Cito Hannah
Arendt sobre a questão da derrota da pobreza como uma questão da política da
modernidade:
“Portanto,
assim como a derrota da pobreza na América teve as mais amplas repercussões na Europa,
a presença muito mais prolongada da miséria nas classes inferiores da Europa
repercutiu profundamente no curso dos acontecimentos na América, após a
revolução. A instituição da liberdade fora precedida pela libertação da
pobreza, pois a prosperidade inicial pré-revolucionária da América – alcançada
centenas de anos antes de a imigração em massa do final do século XIX e início
do século XX ter lançado anualmente em
suas praias centenas de milhares, e mesmo milhões de pessoas das classes mais
pobres da Europa -foi, pelo menos em parte, a consequência de um esforço
deliberado e concentrado para a libertação da pobreza, como jamais tinha sido
feito nos países do Velho Mundo. Esse esforço em si mesmo, essa primordial
determinação de derrotar a miséria aparentemente perpétua da humanidade é
certamente uma das maiores realizações da história ocidental e da história da
humanidade. O problema foi que, sob o impacto de uma contínua e maciça
imigração da Europa, a luta para abolir a pobreza sofreu a influência cada vez
maior dos próprios pobres, e por isso passou a se subordinar a ideais nascidos
da pobreza, distintos daqueles princípios que haviam inspirado a fundação da
liberdade”. (Arendt. 1988110-111).
Os pobres
institucionalizados na sociedade industrial capitalistas criam suas próprias
fantasias de superação da pobreza. O fantasma ou fantasia do comunismo em 1848
é uma delas, e esta se apresenta como fantasia e profecia racional do
socialismo científico. Tal fantasia racional ergue partidos políticos e pilota
revoluções sociais na periferia da Europa no século início do XX. Nos países do
sistema neomercantilista do centro da Europa (dos Estados europeus fortes em
conteúdo econômico graças as suas ricas colônias em recursos naturais e mercado
de consumo para mercadorias industriais), a pobreza é superada, em parte, como
efeito do capitalismo científico da mais-valia relativa.
A política da
sociedade industrial capitalista tem que lidar com a luta de classes, com as
multidões populares que desejam e fantasiam, utopicamente, uma outra forma de
sociedade. Qual é a diferença elementar entre a política da antiguidade grega e
a política da sociedade industrial capitalista?
A política
moderna ocidental tem que enfrentar o problema da erradicação da pobreza?
Hannah diz: “o
anseio oculto dos pobres não é ‘a cada um segundo suas necessidades’, mas sim
‘a cada um segundo seus desejos’”, (Arendt. 1988; 111).
A felicidade não
obedece mais à ética utilitarista, e sim a ética do desejo. A política da
antiguidade obedece a uma disciplina da felicidade (Lacan. S. 7: 351), baseada na moral do mestre, feita
para as virtudes do mestre, e associada a uma ordem dos poderes. (Lacan. S. 7:
377): “A moral do poder, do serviço dos bens é – Quanto aos desejos, vocês podem ficar esperando sentados”. (Lacan.
S. 7: 378).
Ao contrário, a
política moderna é assaltada por uma utopia (em Fourier, por exemplo) que sonha
com a ética do desejo expresso em bufonaria:
“O efeito de
bufonaria que dele se depreende deve instruir-nos. Ele nos mostra
suficientemente a que distancia o que se chama de progresso social se situa em
relação ao que quer que seja na perspectiva, não digo de abrir todas as comportas,
mas simplesmente de pensar uma ordem coletiva qualquer em função da satisfação
dos desejos”. (Lacan. S. 7: 275).
IV
A ordem da
ética do desejo em busca da felicidade abriu as portas para a sociedade
freudiana narcose (Freud. V. 21:97, 100) ocidental. Milhões de pessoas consomem
drogas (artificiais e naturais) levando a um colapso da sociedade edipiana na
América. Tal acontecimento põe em questão a forma da política dominante nas
Américas, pois, a política americana é o paradigma da ordem edipiana presidencialista.
Fluxos de
desejos anedipianos (Deleuze:82) erguem uma nova ordem sexual nos fazendo
retornar ao princípio da civilização edipiana em colapso aberto. Trata-se de um
novo começo da história universal regulada pela ética do desejo fourierniano, a
sério?
ARENDT, Hannah.
Da revolução. SP/Brasília: Ática/UNB,1988
BENTHAM, Jeremy.
Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. SP: Abril Cultural, 1974
DELEUZE &
GUATTARI. Capitalisme et schizophrénie. V. 1. L’anti-oedipe. Paris: Minuit,
1972/1973
FOUCAULT, Michel.
Dits et Écrits. V. III. Paris: Gallimard, 1994
FREUD. OBRAS Completas.
V. XXI. RJ: imago, 1974
FREUD. Obras
Completas. V. XXIII. RJ: Imago,1975
LACAN, Jaques.
O Seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. RJ: Jorge Zahar Editor,1995
LACAN, Jacques.
Le Séminaire. Livre XVII. L’envers de la psychanalise. Paris: Seuil, 1991
LACAN, Jaques.
Outros Escritos. RJ: Jorge Zahar, 2003
PLATÃO. As
leis. Incluindo Epinomis. SP: Edipro, 2010
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