domingo, 6 de janeiro de 2019

GRAMÁTICA ECONÔMICA DA FORMA POLÍTICA


José Paulo



O ponto-de-partida é as relações entre o indivíduo, a família e o socius? Trata-se da relação entre o individualismo moderno e a tradição em junção no Texto de Freud e Marx. Será preciso vários ensaios para chegar aqui.

“Existem  , sobretudo, dois tipos de grupos, os grupos-sujeitos e os grupos-sujeitados – Édipo e a castração formam a estrutura imaginária sob a qual os membros do grupo sujeitado são determinados a viver ou fantasmar individualmente sua pertença ao grupo”, (Deleuze/Guattari: 78).  

Para pensar os grupos como unidade básica da interpretação precisamos pensá-los em um domínio específico com suas formas e seus conteúdos. Escolho o domínio político como o espaço do acontecer dos grupos: dominante e dominado.
 A relação original é aquela do phallus  com as formas políticas. De saída lidamos com os enunciados no livro “Da horda ao Estado”:
“a questão crucial é a da violência e da harmonia, da criação de instituições, de tentativas de persuasão ou de imposição que apoiem o tipo de social assim criado, da produção de certos tipos de personalidades indispensáveis ao funcionamento social e da construção de mitos(religiões ou ideologias) cuja textura garanta à sociedade uma coerência mínima”. (Enriquez: 23).

O enunciado geral civilizatório desce do céu para a terra na Grécia da antiguidade da polis e da politeia. Desde logo se põe e repõe o problema da política sob o comando da razão e da política sob o comando da fantasia ou imaginação. A politeia faz a junção da razão com a imaginação no comando da política. A polemos (guerra entre Estados) deve ser excluída da política que pode enfrentar a stásis em suas diversa formas: rusgas, rebelião, insurreição, guerra civil ou guerra subcivil das facções criminosas como societas sceleris.

Na modernidade, a política busca a paz no espaço social; a stásis só é admitida como rusgas; a guerra é a guerra entre Estados ou povos vivendo em territórios distintos. De qualquer maneira, a sociologia aprendeu com Freud, a duras penas, que não se pode estudar a política sem os mitos, as forças irracionais, os processos de decisão no fantasma de grupo.
A sociologia freudiana da política trabalha com conceitos transespecíficos (Canguilhem) ou transliterários (Bakhtin), ou seja, com o significante como o conceito transespecífico por outros meios, meios gramaticais; significante gramatical.
O significante gramatical se estabelece no domínio da civilização da política como: razão e fantasia ou imaginação; racional e irracional; manifesto e latente; representação consciente, sublimação, recalque, foraclusão, denegação, neurose, perversão e psicose; configuração Real/Simbólico/Imaginário (RSI); como produção do socius: relação social e força produtiva; família (Édipo, castração) e instituição da ordem ou da revolução; formas política, pulsão e sujeito individual e/ou grupal.  Ele é impensável sem a história econômica que o articula como sociedade antiga, feudal e capitalista.       
                                                                       II
Falar de política é falar de vida política; a ciência da política é uma gramática de significantes mais real que o mundo percebido; a ciência gramatical não é obra de nossa inteligência, ela é a geradora das coisas da vida política como fato e artefato.

Falar de forma política é falar do universal como abstrato fantasmático? (Canguilhem: 340). A forma política não remete para um plural ontológico de indivíduos. Qual relação se estabelece entre os indivíduos e a forma política viva?

A forma política viva é um poder próprio à imaginação, de infidelidade em relação aos laços da experiência, ela é o poder que faz os indivíduos sonharem de olhos abertos. Na modernidade, o princípio do igualitarismo gera um processo de identificação entre certos indivíduos escolhidos e as massas (todos são iguais ao nome que sonha em ser presidente). Tal fato é a representação de todos os indivíduos particulares da mesma espécie: presidencialistas.

As formas existenciais da psicologia do sujeito podem ser reduzidas ao  abstrato fantasmal. Elas reúnem em conjuntos humanos vivos uma coleção de indivíduos neurótico, perverso psicótico. Estas formas existenciais mantem relação com as formas abstratas fantasmal da política? A patologia existencial pode ser um efeito da patologia do fantasma abstrato ou universal da política?

Um caso de patologia saída do forno é a situação do Brasil atual. Uma história dos sujeitos forma uma opinião majoritária eleitoral que se define por uma vontade política de resolver as questões da realidade dos fatos (crise econômica do futuro, violência real generalizada, falência fiscal de estados e municípios) com pensamento mágico. Eleger aquele que se apresenta como superhomem e, depois, este formar um governo superpresidencialista aparecem como signos do colapso do presidencialismo.

Vive-se a política viva como algo fora da normalidade, com um fenômeno patológico. O colapso do presidencialismo é um fenômeno fantasmal de grupo que põe e repõe o poder da imaginação doentia no lugar de um mínimo de razão na política.

A realidade das condutas e atitudes encontra-se com a realidade fantasiada no processo de identificação do sujeito com a lei paterna do uno, no presidencialismo. O reconhecimento entre indivíduos como semelhantes forma o vínculo social pela identificação com o pai; o pai autoritário, tirânico é a referência do superhomem capaz de encontrar a solução para os problemas vividos existencialmente regulados por amor e ódio, segurança/perseguição. Trata-se de ancorar em um outrem (no lugar da lei tirânica) a satisfação de nossas pulsões, de nossas fantasias, de nossos medos formando um laço social que desce do imaginário ao real.

No estudo da patologia política presidencialista, a formação do grupo fantasmal (opinião eleitoral lugar ficcional da representação, massa política de rua lugar do laço olfativo, cybermassa eleitoral lugar do laço digitalis) significa uma forma de ligação (identificação, amor, solidariedade, hostilidade, amigo/inimigo) viva da política para além do espaço político representativo. A ligação política de alteridade estabelece o vínculo com o outrem (autrui), e o outro só existe enquanto existe para nós.

Nós contra eles, amigos versus inimigos já é um vínculo patológico no espaço da política representativa democrática. Investir no campo de afetos das massas para gerar sujeitos semelhantes pela identificação com a lei tirânica leva a formação de um supereu cultural que dá os comandos para articular as massas em um agir mortífero: organizem-se!

Na política, o sujeito constitui-se como tal pela existência do outro. O outro nos ama, nos odeia, nos fala, e nos olha e sente nosso odor, aí nós existimos como sujeito; só existimos se somos reconhecidos pelo outrem em um campo de afetos e animus.

A Ministra da Família do governo Bolsonaro diz: “menino veste azul, menina azul”. Ela diz que é uma metáfora de: “menino tem pênis, menina vulva”; homem gosta sexualmente de mulher e mulher de homem. Peço perdão ao leitor, mas ela diz que “homem gosta de buceta e mulher de pica”. Temos aí embutido a retomada da estratégia do Édipo (família como triangulo papai, mamãe e filhinho). Menino veste azul, menina rosa, eis a versão evangélica da “anatomia é o destino”.  Já na velhice, Freud subverteu a gramática sexual a anatomia é o destino. No livro “Análise terminável, análise interminável”, o velho Freud chegou a conclusão que a diferença sexual entre o homem/mulher e o animal irracional é a bissexualidade de um poder de imaginação viva (que vale a pena ser vivida) do ser humano: menino/menina veste azul e rosa.  

Azul ou rosa é a instauração de uma linha de força metafórica (e da vida política) entre o normal e o patológico pela estratégia simbólica messiânica (de Jair Messias Bolsonaro). O Édipo político é o estado normal do fantasma de grupo e o outrem fantasmal (e in re ipsa) é o inimigo existencial em junção com o inimigo político: mulher rebelada contra a ordem do phallus, LGBT. A linha de força afeta milhões de pessoas reunidas e repartidas entre o normal e o patológico.

A forma política presidencialismo é aquela que faz pendant com a máquina de produção social de desejo da ordem edipiana da família patriarcal. Ela é a forma gerada e recriada, em conjunturas historiais, como o permanente abstrato fantasmal ou universal. Depois do Brasil colônia, uma monarquia absolutista teve um monarca, de um regime parlamentarista, que se definia como republicano, ou seja, como presidencialista. O fantasma de grupo universal ´presidencialista é a anatomia do destino da Américas.

A forma política pilota o fantasma de grupo através da libido objetal, investimento que se vincula ao outrem, e de algo irredutível à presença “do outro”, qualquer que sejam a influência e a importância dos “outros” específicos. O eu é a fonte do investimento narcísico que se inclina à aliança com a pulsão de morte (que visa o desejo do não-desejo). A forma política opera pelo princípio do prazer temperado pelo princípio de realidade na regulação das pulsões na direção da realização da satisfação do desejo.

A forma presidencialista virtual constitucional realiza-se/atualiza-se, na conjuntura catastrófica, como desejo de “onipotência do pensamento” (em um grupo fantasmal presidencialista a noção de impossibilidade desaparece; a massa desconhece a dúvida e a incerteza; a massa é tão intolerante quanto obediente à lei tirânica; o funcionamento da massa é o avesso do indivíduo racional) transformado em uma vontade tirânica. Ela é a compulsão à repetição das massas em se identificar com o uno. O eu da massa (fruto da sedimentação de imagens e de identificações passadas) é governado por uma resistência á gramaticalização do narcisismo e da pulsão de morte. O indivíduo do presidencialismo tem as experiências acumuladas pela história fortemente inscritas nele que sempre governarão, em parte, o seu agir; o narcisismo e a pulsão de morte podem ser metabolizadas, mas não podem ser eliminados.  
                                                                               III
Chegamos na gramática econômica do abstrato fantasmal. Marx mostra que o fantasmal abstrato ideológico (metafísica secular) pode durar além dos modos de produção econômicos. Isso é fácil de constatar na história do homem, mulher, criança. No entanto, a gramática econômica do fantasma político faz pendant com o modo de produção especificamente econômico. A politeia é uma gramática econômica do modo de produção escravagista; a gramática econômica da forma política dois corpos do rei faz pendant como modo de produção econômico feudal; a gramática econômica da política representativa da modernidade parlamentarista faz pendant com o modo de produção e circulação especificamente capitalista europeu.

A forma presidencialista americana é uma gramática econômica como desvio da gramática econômica parlamentarista europeia. Enquanto a primeira se baseava em máquinas de desejos de uma estratégia de edipianização da vida política, a segunda se abria à outras estratégias de conjunção de princípio de prazer com princípio de realidade. Recentemente, uma Europa dominada pelo Banco põe e repõem o parlamentarismo sobre um salto Luís XV.

A rebelião aberta da mulher só poderia acontecer em um espaço político presidencialista regulado por uma gramática econômica do abstrato fantasmal sob domínio da ordem do phallus. Toda a violência americana contra a mulher é impossível de ser imaginada ou pensada sem a existência da gramática econômica do presidencialismo fálico. O serial killer é uma implosão no tecido da vida americana privada da gramática econômica presidencialista fálica. A interpretação islâmica de aviões suicidas jogados nas torres gêmeas de Nova York (símbolo do capitalismo fálico americano) caiu em cheio no imaginário fálico da gramática econômica do presidencialismo americano dos mass media, da sociedade do espetáculo fálica, da sociedade de consumo da publicidade fálica com modelo feminino blond . (Baudrillard. 1981; 241); do consumo como estratégia publicitária de ersatz de inveja do pênis.    

Retomando a psicanálise. A gramática econômica do presidencialismo favorece o poder mágico das palavras do uno no transformar diretamente a realidade dos fatos. A linguagem presidencialista possui este poder na mente e no coração da massa; trata-se do encantamento da linguagem política, linguagem enfeitiçada, repetitiva (ritualísticas dos mass media ´presidencialistas). A linguagem agencia a neurose narcísica dos indivíduos (e seus desejos de onipotência). Instala uma atmosfera maniqueísta de projeções sobre o adversário de todas as características negativas.  Trata-se de uma linguagem que não pretende demonstrar e argumentar, e sim de sugestionar, seduzir, fascinar, por repetições de fórmulas simples e o uso inapropriado de figuras de estilo na busca do laço emocional. (Freud. V. XVIII:117).

Freud fala da estrutura libidinal de grupo fantasmal como a Igreja e o Exército:
“Numa Igreja (e podemos com proveito tomar a Igreja Católica como exemplo típico), bem como num Exército, por mais diferentes que ambos possam ser em outros aspectos, prevalece a mesma ilusão de que há um cabeça – na Igreja Católica, Cristo; num Exército, o comandante-em-chefe – que ama todos os indivíduos do grupo com um amor igual. Tudo depende dessa ilusão; se ela tivesse de ser abandonada, então tanto a Igreja quanto o Exercito se dissolveriam, até onde a força externa lhes permitisse fazê-lo”. (Freud. V. XVIII: 120).

Em tais grupos artificiais, cada indivíduo está ligado por laços libidinais por um lado com o líder (Cristo, comandante-em-chefe) e por outro aos demais integrantes do grupo. Para além do narcisismo das pequenas diferenças, a dialética amigo/inimigo é parte da gramática econômica do exército e de todas as religiões:
“Desse modo, uma religião, mesmo que se chame a si mesma de religião do amor, tem de ser dura e inclemente para com aqueles que a ela não pertencem. Fundamentalmente, na verdade, toda religião é, dessa mesma maneira, uma religião de amor para todos aqueles a quem abrange, ao passo que a crueldade e a intolerância para com os que não lhes pertencem, são naturais a todas as religiões”. *Freud. V. XVIII: 125).

Em certos aspectos, o presidencialismo constitui grupo fantasmal homólogo á Igreja e ao Exército. Na gramática econômica presidencialista, o presidente é o ersatz de Cristo ou do comandante-em-chefe, pois, ele ocupa no imaginário presidencialista o lugar de substituto do pai, pai substituto. (Freud. v. XVIII: 120).  

A gramática econômica da forma política é completa como gramática capitalista:
“por esse caurim, a mais-valia é a causa do desejo do qual uma economia faz seu princípio: o da produção extensiva, portanto insaciável, da falta-de-gozar [manque-à-jouir]. Esta se acumula, por um lado, para aumentar os meios dessa produção como capital. Por outro lado, amplia o consumo, sem o qual essa produção seria inútil, justamente por sua inépcia para proporcionar um gozo com que se possa tonar-se mais lenta. (Lacan. 2003: 434).     

A insaciável falta-de-gozar das massas presidencialistas se encontra na Igreja e no Exército como suporte do sujeito suposto saber, correlativa do próprio Édipo, definindo a função do Pai Ideal. (Lacan. 2003: 262-263). Ao contrário do parlamentar no parlamentarismo, o presidente ocupa esse lugar do sujeito suposto saber que não é o não sabe que sabe. É um truísmo dizer que a criança é aquele olhar que institui o pai como sujeito suposto saber.

A gramática econômica do abstrato fantasmal pode ser lida:
“No que a gramática já mede a força e a fraqueza das lógicas que dela se isolam, por clivá-las com seu subjuntivo, e se indica como concentrando o poder de para todas abrir caminho”. (Lacan. 2003: 449).

A gramática econômica pode não expressar certeza, e sim uma dúvida ou desejo; ela não postula exatidão ou rigor como nomes da ciência. (Canguilhem: 339). Ela concentra poder para abrir caminho para a política formar laço social sem necessidade de Cristo ou comandante-em-chefe ou presidente da república. Um discurso político capaz de formar laço social sem grupo fantasmal pode existir na atividade do parlamentarismo? (Lacan. 2003: 475).

Na periferia do capitalismo, o presidencialismo em colapso é capaz do remanejamento dos grupos sociais pela ciência introduzindo duros processos de segregação em escala ampliada?

Lacan diz:
“A terceira facticidade, real, sumamente real, tão real que o real é mais hipócrita (bégueule) ao promovê-la do que a língua, é o que torna dizível o termo campo de concentração, sobre o qual nos parece que nossos pensadores, vagando do humanismo ao terror não se concentraram o bastante”. (Lacan. 2003: 263).

Não é propriamente um segredo de polichinelo que o sistema penitenciário brasileiro é o campo de concentração ao acaso no qual facções criminosas governam dentro e fora na rua. O presidencialismo brasileiro deixou de ter uma gramática econômica (teve em algum momento?) e se transformou em um fenômeno meramente fáctico fazendo pendant com a facticidade da societas sceleris?


BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1981
CANGUILHEM, Georges. Études d’histoire et de philosophie des sciences. Paris: J. Vrin, 1975
DELEUZE E GUATTARI. L’ANTI-OEDIPE.   Capitalisme et schizophrénie. V. 1. Paris: Minuit, 1972
ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao Estado. Psicanálise do vínculo social. RJ: Jorge Zahar Editor, 1990
FREUD. Obras Completas. Psicologia de grupo e análise do ego. V. XVIII. RJ; Imago, 1976
LACAN, Jacques. Outros Escritos. RJ: Jorge Zahar Editor,2003       




    




    
           

          
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