quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

GRAMÁTICA E IDEOLOGIA - EUCLIDES DA CUNHA


José Paulo



Falar de Euclides da Cunha quase na terceira década do século XXI pode parecer um prazer de lidar com o passado da literatura brasileira. Hoje, há uma distância em relação a década de 1990 época na qual vários livros sobre Euclides foram publicados nas boas editoras do país.

O livro de Luís Costa Lima “Terra ignota” se apresenta como uma leitura original de “Os sertões”. O livro fala dos significantes europeus que produziram efeitos na narrativa euclidiana como raça, evolucionismo, romantismo, caráter, história natural dos povos, inferioridade do mestiço, superioridade do ariano, civilização tropical, nacionalismo e poder que se traduz pela afirmação do sertanejo como essência do Brasil. (Lima: 23).

Euclides pega às avessas a linguagem europeia usada pelos dominantes n Brasil?

O Brasil é mestiço no litoral, sertão e na Amazônia. O Brasil mestiço se tornou a ideologia da mestiçagem em Gilberto Freyre. Em Euclides, temos a teologia da mestiçagem, pois a mestiçagem do sertão é um mal menor que a mestiçagem degrada e degradante do litoral. A teologia de Euclides é o falar da mestiçagem.

Em Lima Barreto, o negrismo não chega a se constituir em ideologia. Mas este é o desejo de Lima, um mestiço enganado do litoral.

Em Euclides, o poder nacional tem ancoragem no real da biologia das raças e sub-raças. Porém, o poder  é quase percebido como um campo de estratégia e táticas.  O poder racial ariano é quase visto como uma estratégia dos dominantes no território da linguagem visando estabelecer a carga valorativa superior (branco) e inferior (mestiço) e negro. Na obra de Oliveira Vianna, o poder racial ariano como estratégia de dominação é um momento alto da nossa literatura sociológica e da ciência política conservadora.

Oliveira Vianna se autofabrica, no terreno da ideologia, como um escritor no avesso da gramática euclidiana. Gramática (Euclides) e ideologia (Vianna) são os pares da cultura brasileira no inconsciente do século XX. O problema da metabolização artificial da linguagem política e das instituições políticas (formas políticas) europeias pelo Brasil é um campo de interpretação desenvolvido por Oliveira Vianna copiado da gramática euclidiana. A distinção entre Brasil real   Brasil legal é euclidiana, como assinala Luiz Costa Lima, na página 44. Euclidianamente, Vianna mostra que existe, entre nós, uma linguagem política brasileiríssima ignorada pelos dominantes que tem o domínio do uso da língua portuguesa falada no Brasil. O atual ministro da Educação parodia a ideologia vianniana ao falar de uma filosofia brasileira nacionalista. O ministro colombiano da Educação no Brasil é mais brasileiro que o próprio brasileiro. 

Uma acusação a Euclides é aquela que diz estar o discurso euclidiano preso em um <cipoal de teorias>. Um brilhante especialista em literatura brasileira, Luiz Costa Lima não pensa o discurso euclidiano como uma gramática fazendo pendant com uma teologia. (Lima: 45-46). O marxista carioca universitário Lima pensa Euclides a partir da crítica das ideologias literárias. (Aliás, a crítica da ideologia da cultura brasileira de Gilberto Freyre encontra-se no notável livro do marxista universitário paulista Carlos Guilherme Mota. [Mota: 54]). A ideologia é uma estratégia de ocultação da realidade que não encontra guarida em Euclides.  

A visão substancialista da essência mitológica da raça sertaneja é um ponto fraco no discurso euclidiano (Lima:54-56), sem sobressalto. Contudo, a gramática das máquinas de guerra (entradas e bandeiras, exército republicano, Arraial de Canudo jagunço, índio) aparece em um clarão, gerando um acréscimo de força irrevogável, inesperado, ao evangelho euclidiano:
“Ostentando como outros dominadores do solo um feudalismo achamboado – que o levava a transmudar em vassalos os foreiros humildes e em servos os tapuias mansos – o bandeirante atingindo aquelas paragens, e havendo conseguido o seu ideal de riqueza e poderio, aliviava-se na mesma função integradora ao seu tenaz e humilde adversário, o padre. É que a metrópole, no norte, secundava, sem vacilar, os esforços deste último. Firmar-se desde muito o princípio de combater o índio com o próprio índio, de sorte que cada aldeamento de catecúmenos era um reduto ante as incursões dos silvícolas soltos e indomáveis” [grifo meu]. (Euclides da Cunha. 2002: 71).   

Com a era do lulismo, a gramática da mestiçagem foi substituída pelo negrismo do multiculturalismo. Em 2019, uma paródia do dominante ariano se estabelece como uma estratégia de dominação:
“o sistema do direito e o campo judiciário são o veículo permanente de relações de dominação, de técnicas de sujeição polimorfas. O direito, é preciso examiná-lo, creio eu, não sob o aspecto de uma legitimidade a ser fixada, mas sob o aspecto dos procedimentos de sujeição que ele põe em prática. Logo a questão, para mim, é o curto-circuitar ou evitar esse problema, central para o direito, da soberania e da obediência, e fazer que apareça, no lugar da soberania e da obediência, o problema da dominação e da sujeição”. (Foucault. 1999: 32).

A gramática domina através de estratégia e táticas. O livro “Os sertões” é parte de uma estratégia para criar o poder nacional como sertanejo: poder nacional essencialmente mestiço. A captura da gramática mestiça euclidiana pela ABL ariana é uma notável página de nossa vida cultural nacional. Hoje, a ABL se deixou levar pelo tempo multiculturalista.    

                                                                                    II
Na gênese do tempo multiculturalista, temos o intelectual petista uspiano Roberto Ventura com seu <negrismo> confessado no livro do gramático da mestiçagem Euclides da Cunha. O abolicionismo é descrito pela ótica do negrismo:
“Os festejos no Rio de Janeiro tiveram, como ponto alto, o grande desfile organizado pela imprensa no domingo, 20 de maio. Todos os grupos das elites ou das camadas urbanas estiveram representados: jornais, e revistas, repartições públicas, clubes, sociedades e associações profissionais, escolas e colégios. Os únicos ausentes da festa eram o ex-escravos, cuja libertação era comemorada”. (Ventura: 62).

Roberto Ventura deu início a criação da imagem de Euclides da Cunha como uma máquina psicopática cabocla. Como membro da subraça mestiça, Euclides não metaboliza bem a instituição europeia:
“Mas a disciplina da escola, com horários rígidos para as aulas e os estudos, atormentava Euclides, que não se adaptava aos rigores da vida na caserna. Em agosto, três meses antes de seu protesto ao ministro da guerra, revela, em algumas notas escritas em um caderno, seu embate para conter o gênio explosivo”. (Ventura: 65,71).

Estudei no Colégio Militar do Rio de Janeiro. Pela visão de Roberto Ventura., havia no CM uma multidão de máquina de guerra explosiva. A revolta dos estudantes do CM levou o Primeiro Exército a trocar o diretor do CM por um general linha-dura da ditadura militar em 1971.

Ventura explica a Proclamação da República pelas máquinas de guerras juvenis da espécie euclidiana, mestiças:
“Não seria questão de dias, mas de alguns meses, cerca de onze, até a proclamação da República tão sonhada por Euclides e seus colegas da Escola Militar. E os cadetes e os jovens oficiais iriam participar dos acontecimentos que levaram ao golpe do Exército em 15 de novembro do ano seguinte, 1889”. (Ventura: 76).

A natureza violenta de Euclides foi redirecionada para a atividade de propaganda republicana:
“Euclides estreou na imprensa diária com artigos de propaganda, em que atacava o imperador e a família real e pregava a necessidade de revolução política”. (Ventura: 78).

O marxista universitário Ventura cria esse retrato de um Euclides como máquina de guerra de propaganda leninista. O imaginário russo da revolução bolchevique povoa a escrita de Roberto. A máquina psicopática Euclides da Cunha foi atraída, como jornalista, pela imaginação olfativa de odor de sangue, para a Guerra de Canudos. (Ventura: 105).

Euclides foi escolhido para ser o objeto de debate de uma Flipe recente. A televisão anunciou o acontecimento levando especialistas que se referiam basicamente ao conflito de Euclides com Ana de Assis, sua esposa. Em Ventura, a imagem de um Euclides violento no lar é irrevogavelmente mestiça:
“É provável que sua situação desconfortável no Exército, agravada com a prisão do sogro e as cartas à Gazeta de Notícias, trouxesse a Euclides, de temperamento nervoso, uma enorme irritação que explodia em disputas domésticas”. (Ventura: 129).

  Roberto diz que Euclides era um poço racial, sem fundo, de preconceitos urbanos do Sudeste:
“Euclides teve, sem dúvida, uma visão negativa de Canudos, que tomou como ‘urbs monstruosa’, comunidade primitiva e até promíscua. Tal viés, se deveu, em parte, ao contato com uma cidade semidestruída pelos bombardeios e pelas privações da guerra. Foi tributário ainda de sua formação científica, que combinava evolucionismo e positivismo, e dos preconceitos raciais próprios à sua época, que traziam a crença na inferioridade dos grupos não-branco”. (Ventura: 172-173).

O livro de Roberto Ventura é um banho de água fria jogada na imaginação do leitor desejoso de enfrentar a árdua leitura do “Os sertões”:
“Traçou, em Os sertões, paralelos entre os dois lados do conflito, mergulhados no mesmo fanatismo e misticismo: entre o soldado e o jagunço, entre o litoral e o sertão, entre a República e Canudos. Para ele, o coronel Moreira César, comandante da 3°expedição, líder epiléptico dos jacobinos, é tão ‘desequilibrado’ quanto Conselheiro, o messias delirante: ambos refletiriam a ‘instabilidade’ dos primórdios da República. Mostrou como os soldados traziam, no peito, o retrato do marechal Floriano Peixoto, cuja memória saudavam com o mesmo entusiasmo doentio com que os jagunços bradavam pelo Bom Jesus”. (Ventura: 199).   

                                                                                  III    

A sagaz e culta romancista Nélida Piñon faz a apresentação do livro do historiador americano Robert M. Levine O sertão prometido. O massacre de Canudos., especialista em história cultural e política brasileira, falecido em 2003.

Com sua imaginação incandescente, Nélida atrai o leitor para a leitura de Euclides:
“Um expressivo contingente de deserdados que, desprezados pelas novas elites formadas no litoral sob impulso de uma economia emergente, aderiram aos acampamentos de inspiração sebastianista e milenarista, estranha aliança de religião e lenda cujos líderes, em nome de um ideal quase teológico, pretendiam restaurar o espírito das peregrinações que outrora   partiam ao encontro da Terra Santa. Desta forma poderiam viver façanhas cujos resíduos emocionantes guardavam no poço da memória genética e no substrato das narrativas orais, enquanto lhes prometiam um estatuto cívico que o cotidiano político brasileiro sempre lhes negara”. (Levine: 12).                            

O livro de Levine é um texto universitário de um brasilianista. Texto de um época na qual a América patrocinava com vultosos capitais (da Fundação Ford) a investigação universitária tendo como objeto o Brasil (e a América- Latina). 

A Fundação Ford fez um investimento para introduzir no Brasil o multiculturalismo como negrismo. Mudar a grafia imagética de um Brasil mestiço para um país onde predomina o negro foi uma estratégia do Departamento de Estado dos EUA. O livro de Levine ajudou a fazer um mapa de um Brasil que não era negro:
“Aterrado pelo fantasma de uma revolta rural, Euclides narrava os sucessos do conflito de Canudos como se estivesse em jogo uma batalha das forças da civilização contra as das trevas. Canudos o atormentava. Embora considerasse os habitantes – mestiços da comunidade do Conselheiro - como atávicos e hostis ao progresso, admirava-lhes a tenacidade e a força corporal. Essa referência à força física dos sertanejos tocava num ponto nevrálgico, já que em 1890 a população brasileira se compunha de 15 por cento de negros e 40 porcento de mestiços ou mulatos”. (Levine: 25).

O mestiço é visto por Levine como a força prática intelectual que afeta o campo do simbólico e do imaginário:
“Porém, como lembra E. Bradford Burns, o próprio Euclides era um mestiço. A exemplo de Raimundo Nina Rodrigues, Machado de Assis, Lima Barreto e outros escritores e intelectuais mestiços que moldaram a auto-imagem brasileira durante e após a virada do século, ele se recusava a admitir que suas próprias descobertas contradissessem o argumento central de  sua visão depreciativa do legado da miscigenação”. (Levine: 24-25).

O pensador conservador Oliveira Vianna diz em um de seus livros que a contradição simbólica principal, entre nós, é aquela entre mestiço versus ariano.

O historiador americano procura tecer uma linguagem objetiva que se torne hegemônica e invada a vida cultural e política brasileira. Assim, o problema da instalação de uma ordem autoritária brasileira no lugar da ordem democrática tem sua gênese historial na relação da República militarista (ariana na gramática dos dominantes) com Canudos (mestiço):
“O choque provocado pelo conflito de Canudos e o medo de que a rebelião se espalhasse pelas cidades brasileiras levou os políticos a reforçar os sistemas de controle social e a rejeitar as reformas que pudessem levar o país a uma democracia expressiva”. (Levine: 26).

Aliás, é instigante comparar a linguagem europeia do mestiço Euclides com a linguagem carismática popular do Bom Jesus fazendo parelha com o antagonismo da linguagem dos dominantes com a linguagem dos dominados. Nélida Piñon diz:
“Na avaliação do historiador, o conflito de Canudos tem como origem imediata a República recém-inaugurada sem a participação popular. O novo sistema político, além de privar o povo da presença do Imperador, impunha-lhe um vocabulário permeado de uma modernidade que ameaçava desestabilizar a realidade conhecida e agravar ainda mais a situação de penúria há muito estabelecido no país”. (Levine: 12).

O domínio do uso do português falado no Brasil como estratégia de conquista e invasão da cultura e da vida prática popular põe e repõe o problema mais geral da relação entre povos. Euclides aborda tal problema abertamente:
“As últimas páginas de H. Spencer são um diluente do esplêndido rigorismo das suas mais sólidas teorias. O filósofo que se abalançou a traduzir o desdobramento evolutivo das sociedades numa fórmula tão concisa e fulgurante quanto à fórmula analítica em que Lagrange fundiu toda a mecânica racional – acabou num lastimável desalento. A seu parecer, a civilização desfecha na barbaria.  
Depois de presidir ao triunfo das ciências e de caracterizar os seus reflexos criadores nas maiores maravilhas das indústrias – assombrou-se à última hora, salteando-o de espantos, o sombrio alvorecer crepuscular do novo século. E contemplando em toda parte, de par com a desorientação científica, um extravagante renascimento da atividade militar e um imperialismo que denuncia a tendência das nacionalidades robustas a firmarem a hegemonia política – rematou uma vida que toda ela foi um hino ao progresso, confessando que assistia à decadência universal.
Exagerou.
Mas há um fato incontestável: o pendor atual e irresistível das raças fortes para o domínio, não pela espada, efêmeras vitórias ou conquistas territoriais – mas pela infiltração poderosa do seu gênio e da sua atividade”. (Euclides da Cunha.1995: 213).   

Roberto Levine (e a Fundação Ford) é esta infiltração a qual Euclides se refere. O texto universitário do americanismo não é um acontecimento diletante. Ele é parte de uma estratégia de articulação da hegemonia envolvendo povos ou raças (forte e fraca) na terminologia de Euclides.

Henry Kissinger organizou a instalação das ditaduras militares na América Latina dando continuidade (em especial no Brasil) ao trabalho político de seu general-espião Wernon Walters.  Seu cinismo criou um texto abjeto, mas de grande atualidade:
“Durante a guerra fria a maior parte das nações da América latina eram dirigidas por governos autoritários, largamente militarizados, comprometidos com o controle estatal de suas economias. Nos meados dos anos 80 a América Latina viu-se livre da sua paralisia econômica e começou a avançar com uma unanimidade notável em direção à democracia e à economia de mercado. O Brasil, a Argentina e o Chile abandonaram os governos militares a favor de um regime democrático. A América Central terminou as suas guerras civis. Falida devido a empréstimos pouco inteligentes, a América Latina submeteu-se à disciplina financeira. Em quase toda a parte as economias dominadas pelo Estado foram progressivamente abertas às forças de mercado”. (Kissinger: 726).

Kissinger é aquele representante da raça forte nas Américas que domina as raças fracas desse continente em conluio com os dominantes nativos.

Para Euclides, os dominantes nativos se constituem em uma estrambótica força de ocupação em seu próprio país:
“Fora absurdo atribuí-los à República, numa época em que a preexcelência das formas de governo é assunto relegado aos donaires da palavra e à brilhante frivolidade dos torneios acadêmicos. Atribuímo-lo ao artificialismo de um aparelho governamental feito de afogadilho e sem a medida preliminar dos elementos próprios da nossa vida. Um código orgânico, como qualquer outra construção intelectual, surge naturalmente da observação consciente dos materiais objetivos do meio que ele procura definir – e para o caso especial do Brasil exige ainda medidas que contrapesem ou equilibrem a nossa evidente fragilidade de raça ainda incompleta., com a integridade absorvente das raças já constituídas”. (Euclides da Cunha. 1995: 213).

Euclides pensava um República mestiça brasileira que gramaticalizasse (antropofagicamente) as instituições política, e da sociedade civil (burguesa) europeias. Como negar nossa fraqueza na história econômica capitalista industrial moderna da época de Euclides da Cunha. Hoje, a Ásia capitalista industrial tomou o lugar da Europa?     

EUCLIDES DA CUNHA. Obra Completa. V. 1. RJ: Nova Aguilar, 1995
EUCLIDES DA Cunha. Os sertões. SP: Nova Cultural, 2002
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. SP: Martins Fontes, 1999
KISSINGER, Henry. Diplomacia. Lisboa: Gradiva, 1994
LEVINE, Robert M. O sertão prometido. O massacre de Canudos. SP: EDUSP, 1995
LIMA, Luiz Costa. Terra ignota. A construção de Os Sertões. RJ: Civilização Brasileira, 1996
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. SP: Ática, 1977
VENTURA, Roberto. Euclides da Cunha. SP: Companhia das Letras, 2003

  


  


        

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