segunda-feira, 11 de março de 2024

Gramática da tirania ou cesarismo

 

José Paulo

 

 

Em Sua bíblia sobre o capítulo do Maquiavel de Leo Strauss, Claude Lefort não parte da distinção cancelada no “O Principe” entre tirano e rei. Leo Strauss vê nesse cancelamento a fundação da ciência política moderna em antagonismo com a ciência política da antiguidade.

Para a ciência política moderna da linhagem de Maquiavel, falar de tirania é um juízo de valor {não é ciência moderna]; é uma mitologia política, uma realidade virtual que nada tem a ver com a realidade factual e artefactual da história. (Strauss: 39). A ciência política socrática funda o domínio de conhecimento virtual no campo político/estético da antiguidade grega. (Strauss: 43).

A sociedade tende a tiranizar o pensar; a ciência política socrática se dedica a frustrar a transformação do pensar a política em cesarismo. A verdade na tela gramatical do campo político cesarista não tem o hábito de ser inofensiva. (Strauss: 43). A estrutura de dominação da verdade despreza qualquer uso responsável socialmente do funcionamento da ideologia. A ideologia é a forma da ciência política moderna que gera uma estrutura de dominação cesarista. [Strauss: 38) Em outros textos já mostrei quer de Marx a Althusser, o campo das ideologias funciona como estrutura de dominação cesarista. Para Marx e Althusser, todas as formas do espírito [religião, direito, política, arte etc.] são formas ideológicas. (Marx. 1974: 136).

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Marx e Althusser sustentam a fronteira entre ciência e ideologia. A crítica das ideologias é a ciência de Marx. Althusser fala de um marxismo com corte epistemológico em relação ao campo ads ideologias.

Fundador do marxismo ocidental, Gramsci desaparece com fronteira ente ciência e ideologia. Assim a própria ciência é um fenômeno do campo das ideologias. Portanto, a ideologia é transformada em uma estrutura de dominação totalitária irrevogável:

“A questão mais importante a ser resolvida com relação ao conceito de ciência é a seguinte: se a ciência pode dar, e de maneira, a ‘certeza’ da existência objetiva da chamada realidade exterior. Para o senos comum , esta questão nem se quer existe, mas de onde se originou a certeza do senso comum? Essencialmente da religião (...) a religião é uma ideologia, a ideologia mais enraizada e difundida, não um aprova ou demonstração. É possível demonstrar que é um erro exigir da ciência como tal a prova da objetividade do real, já que essa objetividade é uma concepção de mundo, uma filosofia, não podendo ser um dado científico (...). (Gramsci. V. 1: 173).

Gramsci completa:

“’Objetivo’ significa precisamente e apenas o seguinte: que se afirma ser objetivo, realidade objetiva, aquela realidade que é verificada por todos os homens, e que é independente de todo ponto de vista que seja puramente particular ou de grupo. Mas, no fundo, também esta é uma concepção particular do mundo, uma ideologia”. (Gramsci. V. 1: 173).

O campo das ideologias abarca todas as práticas incluindo a ciência, insisto. Tal ruptura epistemológica com Marx e Althusser faz do marxismo não uma ciência da história, mas uma ideologia sobre a história. Temos assim, uma concepção política de mundo tirânica, da sociedade produzindo um efeito cesarista sobre o campo de conhecimento científico em geral. A ideologia é o pressuposto saber do homem, mulher, criança. A psicanálise é uma estrutura ideológica assim como a ciência do homem e a física. Gramsci acaba com a ciência como ilusão de um conhecimento objetivo da realidade realmente existente. A ciência se diferencia das outras ideologias por seu método, ela é uma ideologia científica:

“O trabalho científico tem dois aspectos principais: um que retifica incessantemente o modo de conhecimento, retifica e reforça os órgãos sensoriais, elabora princípios novos e complexos de indução e dedução, isto é, aperfeiçoa os próprios instrumentos de experiência e de sua verificação; outro que aplica este complexo instrumental  [de instrumentos materiais e mentais] para determinar, nas sensações, o que é necessário e o que é arbitrário, individual transitório”. (Gramsci. V. 1: 173).

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A política como tirania foi excluída da ciência política moderna: “é substituída pela política como atividade constitutiva da existência coletiva”. (Châtelet: 38). Para a modernidade: É preciso observar que o detentor (individual ou coletivo) do poder de Estado, que pode e deve fazer tudo para assegurar tal poder, não pode ser assimilado a um tirano”. (Châtelet: 39).

Walter Benjamim faz uma ciência política moderna na qual o Príncipe tem por obrigação evitar ao cesarismo. Na época barroca, o estado de exceção, a ditadura real, requer para emergir situações catastróficas como guerra entre Estados etc. (Benjamin: 65-66).             

 Quentin Skinner faz uma enciclopédia para a o ensino da ciência políticas na universidade anglo-americana. Assim, ele mostra que Maquiavel supera o contexto humanista e a cultura política católica. Porém, a concepção política de mundo do livro “O Príncipe” não se define por um antagonismo com a cultura política cristã. Skinner ignora que a cultura política maquiavélica se define pela identidade absoluta entre rei e tirano. O cesarismo não é um fenômeno da ciência política universitária. Ora, Gramsci tratou desse fenômeno. Mas também ignorou o problema da relação entre rei e tirano da antiguidade. Esta relação definia duas formas de governos antagônicas: a forma monárquica constitucional e a forma cesarista inconstitucional. (Gramsci. V. 3: 77). A monarquia constitucional e o cesarismo são dois campos políticos/estéticos com plurivocidade de tela gramatical.

Ao investigar a democracia nos EUA, Tocqueville rompe com a ciência política moderna europeia e volta à ciência política socrática. A tirania ou cesarismo ou despotismo é um fenômeno da realidade virtual na América:

“Observei, durante minha temporada nos Estados Unidos, que uma situação social semelhante à dos americanos poderia oferecer singulares facilidades à implantação do despotismo, e mostrei, ao regressar à Europa, como a maior parte dos nossos príncipes já se tinham servido das ideias, dos sentimentos e das necessidades que essa mesma situação social fazia surgir, para estender a esfera do seu poder”. (Tocqueville: 431).

Como Kant (Rawls;121-122), Montesquieu faz uma ciência política como conciliação de iluminismo e barroco. Ele não opera com o corte republicano de Maquiavel em relação à antiguidade:

“Há três espécies de governo; a República, a Monarquia, e o Despótico [..]. Eu suponho três definições, ou em vez de três fatos: Um, que o governo republicano é aquele onde o povo en corps, ou somente uma parte do povo, tem a soberania puissance; a monarquia, aquela onde um só governa, mais pelas leis fixas e determinadas; au lie que, dans despotique, um só, sem lei e sem regra, leva tudo por sua vontade e por seus caprichos. (Montesquieu: 131).

O campo de ideias políticas de Montesquieu fala da tirania ou despotismo como um domínio do uno, sem gramática, sem Constituição. Vimos acima, que a tirania moderna aparece como uma forma ideológica amparada na ciência que controla a natureza humana no campo político/estético. Seria a ciência do homem um conhecimento voltado para o controle da natureza humana?

 

BENJAMIN, Walter. Origine du drame baroque allemand. Paris: Flammarion, 1974

CHATELET E PISIER-KOUCHNER. História das ideias políticas. RJ: Zahar, 1985

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 1. RJ: Civilização Brasileira, 2015

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 3. RJ: Civilização Brasileira, 2014

MARX. Os pensadores. SP: Abril Cultural, 1974

MONTESQUIEU. De l’esprit des lois. Volumo 1. Paris: Flammarion, 1979

RAWLS, John. História da filosofia moral. SP: Martins Fontes, 2005

SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. SP: Companhia das Letras, 1996

STRAUSS, Leo. De la tyrannie. Paris: Gallimard, 1997  

TOCQUEVILLE, Alex. De la démocratie en Amérique. V. 2. Paris: Gallimard, 1961         

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