terça-feira, 5 de março de 2024

NEGRO - Suriname, Bahia, paulistas

 

José Paulo 

 

 

Na década de 1970, Carlos Guilherme Moto entregou ao leitor seu livro “Ideologia da cultura brasileira”. Um trabalho que iniciava, entre nós, uma história das ideologias brasileiras. (Mota:18). Entre os ideólogos da cultura brasileira, o principal é Gilberto Freyre. A ideologia de Freyre falava em <democracia racial>. (Mota: 55). O essencial consiste em que a estratégia intelectual de Freyre [que fazia da racialização e de sua desintegração pela mestiçagem] põe e repõe a raça como o fenômeno hegemônico no campo político da cultura brasileira.    

Mota diz:

“Um dos méritos do estudo reside no fato de que, não entrando nos velhos debates sobre distinções entre “cultura” e “civilização” – no interminável e vão esforço que vem de Gilberto Freyre a Corbisier e novamente a Luiz Cãmara Cascudo nos anos 60, esforço que serve para camuflar a verdadeira questão, que é a das classes sociais, padrões culturais correspondentes e relações de dominação – Faoro procura indicar que a “principal consequência cultural do prolongado domínio do patronato do estamento burocrático é a frustração do aparecimento da genuína cultura brasileira”. (Mota: 179).

História das Ideologias da cultura brasileira como ocultação da realidade da sociedade de classes sociais como fenômeno dominante na interpretação do Brasil.  A democracia racial aparece como uma ocultação da realidade realmente existente no campo político/estético. Mota usa a ideia mais pobre de ideologia de Marx: ocultação. Porém, seu discurso é útil para pensar a forma ideológica como produção de ilusão. Assim, a cultura brasileira é um a forma ideológica de produção de ilusão [p. ex. democracia racial] no campo político do século XX.

Na ditadura militar-1964, ergue-se um bloco político/estético da oligarquia coo classe dirigente. Gilberto Freyre e Câmara Cascudo, Luiz Viana Filho são seu mestre-pensador. José Sarney é o artista do bloco estético da ditadura militar. Todos operaram no fornecimento estratégico da estrutura de dominação cultural. Assim, a cultura brasileira se torna uma estrutura de dominação como produção de ilusão e, sobretudo, sonho barroco, como revela Calderón de La Barca. (La Barca; 2009).       

  A propósito. Na conjuntura 1964-68, ergue-se um contrabloco estético/político da sociedade civil carioca; um bloco formado por artistas, literatos, sociólogos, filósofos, cinema novo, crítico de cinema etc. dirigiu a classe média carioca barroca contra a ditadura como forma de governo com gramática; em 1968, a reação dos militares foi a desintegração da gramática da ditadura militar ilustrada; no lugar dessa, uma ditadura fascista tupiniquim aparece como grau zero de tela gramatical estético/política-1964.

                                                                    2

Essa parte é baseada no capítulo IX, “As culturas negras nas Guinas”, de Arthur Ramos.

A Guina Holandesa [Suriname} foi um palco político no qual a cultura política do negro se tornou mais negra do que o próprio negro da África; o negro do Suriname tem uma característica estratégica para a resistência à estrutura de dominação branca; Através de rebeliões, fugas, revoltas e uma insurreição permanente, ele estabeleceu uma guerra civil como pressuposto de ser deixado em paz, pelo branco, na Floresta. Assim, o branco foi levado a conciliar com o negro em liberdade anticolonial, emancipado da escravidão.

O negro do Suriname é o antípoda do negro dos EUA. O primeiro manteve sua gramática da cultura política negra; o negro dos EUA existiu como grau zero de gramática negra (Ramos:152). A chamada <aculturação> foi uma estratégia de dominação branca sobre o negro, que nos EUA, repito, alcança o grau zero da gramática negra.           

                                                                    3

Não sei se há consenso sobre Arthur Ramos ser o pai da antropologia brasileira. Porém, ele e Gilberto Freyre criaram um campo de3 conhecimento que é a ciência política barroca.

O prof. Barros Laráia fala de um conceito de cultura que se encontra na análise concreta de Ramos:

 “O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura”. (Laráia: 70).

No entanto, há a gramática d cultura política negra ao lado da produção de ideologias como ilusão como a democracia racial. Ramos teria inventado o termo que Freyre consagrou. Sobre a gramática negra, Ramos faz analogia com práticas brasileiras e de outros países da América do Sul:

 “Na Banda Oriental do Prata, os candombes celebravam-se nas grandes festas anuais do Ano Novo, Natal, Páscoa, São Benedito, e especialmente no dia-de-reis. Da mesma sorte que nos reisados, congadas e congos brasileiros, o candombe consistia num desfile em que as figuras indispensáveis eram o rey e a reina”. (Ramos: 163).

Congadas já são festas barrocosa da conciliação da cultura política negra com a cultura política barroca jesuítica?

A gramática da cultura política negra tem uma irrevogável exposição em Ramos:

N Bahia, os negros Haussá exerceram decisiva ascendência sobre os outros negros sudaneses, principalmente os Tapa e os Nagô e com estes, foram os principais responsáveis pelas sublevações de escravos, no século XIX, na Bahia. A história dessas insurreições foi escrita largamente por NIna Rodrigues, que lhes assinalou o seu caráter religioso. Não creio que tenham razão os que pensam no aspecto puramente econômico destas revoltas dos negros malês. As insurreições dos Haussá e dos Nagôs, na Bahia, em 1807, 1809, 1813, 1816, 1826, 1827, 1828, 1830, e a grande revolução de 1935 têm uma fisionomia totalmente diversa das fugas e revoltas dos escravos em outras províncias, para a formação de quilombos e mocambos. Estes, sim, foram movimentos de rebeldia contra os maus-tratos do senhor, na longa odisseia da escravidão”.

Na Bahia, essas insurreições foram nada mais, nada menos, do que a continuação das longas e repetidas lutas religiosas e de conquista levadas a efeito pelos negros islamizados no Sudão”. (Ramos: 214).

As lutas religiosas da gramática da cultura política do negro islâmico abriram uma região radical na superfície profunda do campo politico monárquico: 

“’no intuito de reunir-se ao maioral Arrumá ou Alumá...junto aos negros da cidade, tomariam conta da terra, matando os brancos, cabras e negros crioulos, bem como os negros africanos que se recusassem a aderir ao movimento, e só poupando os mulatos, destinados a servir de lacaios e escravos”. (Ramos: 215).

A cultura política Bantu tinha sua gramática barroca em um sincretismo bem temperado:

“As organizações políticas das monarquias africanas sobreviveram em certas festas populares, já citadas, como os Congos,: sobrevivência do patriarcado e do matriarcado aí estão nos festejos dos reis Congos e das rainhas Gingas... A organização clânica vai encontrar-se disfarçada nos ranchos, clubes e confrarias ...Estas últimas foram organizações fechadas, a molde de <sociedade secretas>, onde os negros escravos se quotizavam para a obtenção da sua liberdade. Há episódios comoventes, no particular, como o de Chico Rei, em Minas. O assunto requer um estudo especial, que faremos num próximo volume dedicado à sociologia da escravidão”. (Ramos: 233).

Ramos diz que Gilberto Freyre fez a sociologia da estrutura de dominação arquitetural:

Mocambo, neste sentido sociológico, reflete um sistema de opressão de classe, na cidade, como, anteriormente, a senzala era o resultado do patriarcado rural”. (Ramos: 234-35).

A cultura política patriarcal possuía uma gramática de estrutura de dominação arquitetural que se choca com a gramática da cultura política negra:

“A cultura bantu, em suma, entrou largamente, grandemente, no Brasil. Religiões, folclore, línguas, cultura material ...aqui se amalgamaram com outras culturas, porém até hoje conservam certas características de origem, ainda reconhecíveis”. (Ramos: 235).

O livro é da década de 1930.

                                                                       4            

John Rawls descobriu a pólvora ao revelar que o pensamento kantiano é a conciliação do barroco de Leibniz com o iluminismo do próprio Kant. (Rawls: 121-122). Esse ponto-de-partida se faz necessário para o entendimento da <escola de sociologia paulista>, da USP.

Da USP saiu o presidente da república que deu uma estrutura fática e constitucional para o campo político/estético-1988: FHC. Na cultura brasileira, a história de FHC começa com a publicação de sua Tese de doutorado, publicada no início da década de 1960.  

A sociologia da USP foi hegemônica no sistema de universidade federal a partir da década de 1970. Tratou-se de um esforço a mais no campo político da cultura brasileira. Ela se apresentou como parte da construção de um bloco estético/político em contraposição ao populismo getulista e ao PCB.

A crítica do populismo encontra-se em Octávio Ianni e Francisco Weffort. (ver a bibliografia). No domínio da epistemologia, a sociologia paulista se definia como um ecletismo bem temperado entre o clássico e o moderno. (Ianni. 1989: 94). A sociologia paulista é nacionalização de pensamento científico europeu e estadunidense. Florestan Fernandes é seu paradigma.

Ianni cita Florestan:

“As coisas que tiveram maior importância na minha obra como investigador se relacionam com pesquisas feitas na década de 40 (como a investigação sobre o folclore paulista, a pesquisa de reconstrução histórica sobre os tupinambás e várias outras, de menor envergadura) ou com a pesquisa sobre relações raciais em São Paulo, feita em 1951-53, em colaboração com Roger Bastide (e suplementada por mim em 1954). Esse trabalho puramente intelectual conformou o meu modo de praticar o ofício do sociólogo”. (Ianni. 1989:99).

Ianni põe o negro como o fato e artefato de uma fratura entre a sociologia paulista e o discurso político dominante:

“Quinto, por último, é fundamental a presença dos grupos e classes sociais que compreendem a maioria do povo, descortinado um panorama social e histórico mais largo do que aquele que aparece no pensamento produzido segundo as perspectivas dos grupos e classes dominantes. É o negro, escravo e livre, isto é, trabalhador braçal, na lavoura e indústria, que descortina um horizonte inesperado, amplo”. (Ianni. 1989: 99). Infelizmente não tenho como falar da relação entre barroco e iluminismo nos paulistas, exaustivamente. Creio que uma nova geração pode tratar adequadamente desse problema importante considerando que a sociologia da USP está umbilicalmente ligada ao campo político/estético de 1988, através de FHC. Minha formação profissional universitária foi com Octavio Ianni, que se tornou o representante do marxismo sociológico ao lado de Florestan Fernandes, depois que Ianni voltou do exílio - em Londres.   

O Livro de FH “Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional” é uma obra do iluminismo da modernidade brasileira? A ideia de ideologia de Marx ocupa o proscênio da cena intelectual. Para Fernado Henrique, o Abolicionismo é um fenômeno de conciliação barroca no campo das ideologias sociológica:

“O abolicionismo correspondeu, no Rio Grande do Sul, enquanto ideologia, a uma forma de compromisso entre interesses e ideias divergentes e, até certo ponto, contraditórios. Nele encontraram denominador comum, por motivos diversos e visando atender a interesses diferentes, tanto as pessoas e grupos empenhados em resolver o ‘problema da mão-de-obra’ de suas propriedades rurais, como indivíduos e círculos sociais que, sem estar imediatamente interessados na substituição de braços para a lavoura, desejavam instaurar <nova ordem>, à base do trabalho livre”. (Cardoso. 1977: 212).

A sociologia política barroco/iluminista de FH é clara e distinta. Querendo ou não, FH se liga à ciência política barroca de um Gilberto Freyre e, sobretudo, de Arthur Ramos. O estudo do campo das ideologias políticas do abolicionismo ainda pode ser explorado pelas novas gerações. Todavia, FH pode ser o ponto de partida dessa investigação que joga uma luz lateral sobre o século XIX:

“Por isso, como ideologia, o abolicionismo exprimiu no Rio Grande uma forma de consciência que englobou tanto um conhecimento adequado como uma distorção da realidade, capa de levar em conta e justificar posições e interesses sociais. Entretanto, no abolicionismo o processo aparecia de outra forma: só os que negavam o presente de forma consequente e apegavam-se a princípios eram capazes de ver claro socialmente, isto é, eram<objetivos>; os que mistificavam, em nome dos compromissos que a prática impunha, acabavam por nada entender, presas das próprias contradições. Vê-se, pois, que as funções e os efeitos do bon côté e da mera racionalização que existia em toda ideologia são completamente diferentes, conforme a polarização ideológica se volte para o passado ou para o futuro”. (Cardoso: 216-217).

A sociologia ´paulista ergueu uma tela gramatical estético/política que articulou, repito, o campo político de 1988. FHC disse: “esqueçam o que eu escrevi”. Tal ordem é impossível de ser gramaticalizada por nós pobres mortais.        

 

CARDOSO, Fernado Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. O negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. RJ: Paz e Terra, 1977

IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. RJ: Civilização Brasileira, 1975

IANNI, Octávio. Sociologia da sociologia. SWP: Ática, 1989

LARÁIA, Roque de Barros. Cultura. Um conceito antropológico. RJ: Zahar, 1989

LA BARCA, Calderón. A vida é um sonho. SP: Hedra, 2009

MOTA, Carlos Guilherme. A ideologia da cultura brasileira. SP: Ática, 1977

RAMOS, Arthur. As culturas negras no novo mundo. SP: Ed. Nacional, 1979

RAWLS, John. História da filosofia moral. SP: Martins Fontes, 2005

WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. RJ: Paz e Terra, 1980

       

   

      

     

Nenhum comentário:

Postar um comentário