sexta-feira, 12 de abril de 2024

Dante Alighieri- cesarismo, tirania, Petrarca

 José Paulo 

 

A ciência política literária de Dante contempla o campo político do indivíduo e da sociedade e vai além. Ele tem como referente virtual o campo político dos anjos, do Arcanjo Gabriel, campo angelical que tem no Papa sei símbolo carnal:

“Árdua e excessiva para mim é a obra em que me aventuro. Não é, porém, tanto em minhas forças que confio, mas na luz desse Benfeitor: ‘que dá a todos com abundância e sem restrição’”. (Dante: 194).

O leitor da atualidade pode considerar que isso é papo de doidão, de drogado em LSD. No entanto, Dante está falando de seu fantasma/fantasia institucional que rege o campo político do indivíduo na tela gramatical medieval cristã.  O arcano Gabriel pode muito bem ser o fantasma institucional da realidade virtual da alma/carne.  

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Na Europa, Petrarca é a revolução intelectual molecular no campo simbólico italiano. Ele produz ideias e poesia do lado de fora da escolástica e da cultura política gótica. A universidade é a estrutura de dominação cultural ao lado da Igreja no campo político medieval. Qual a relação de Petrarca com o discurso do universitário? Pode-se ver este discurso do ponto de vista de Lacan, para quem o discurso universitário é a tela gramatical do tudo saber?  (Lacan: 34):

“De 1200 a 1500, é com a Universidade, no seio da Universidade, em redor da Universidade ou contra a Universidade que se joga o essencial do encontro entre intelectuais e política. A Universidade é um elemento, um ator e um lugar de vida política da Idade Média ocidental, um fenômeno próprio ao Ocidente Latino, que não é estranho ao desenvolvimento que o mundo ocidental conhece durante a Idade Média tardia e a transição política que ele vai progressivamente exercer sobre o resto do mundo. A Universidade é o terceiro poder da sociedade medieval”. (Libera: 451).

A Idade das trevas descobriu e inventou a universidade medieval e o intelectual universitário ao lado do intelectual clerical e do poder do soberano:

“Como sublinha J. Le Goff, a <formação do poder universitário>,, em outras palavras o estabelecimento de uma nova figura do sistema trifonctionnel de Dumézil, esse formado pelo poder clerical, o poder monárquico e o poder universitário – sacerdotium, regnum, Studium -, tal é o fenômeno o qual o historiador tem que descrever”. (Libera: 452).

O problema que se impõe é se na história intelectual italiana, Petrarca é o intelectual hegemônico (Libera: 452) da modernidade latina ou o hegemonikón estoico ou eu político no campo simbólico da cultura política estética da Itália. Ele é certamente, o nascimento de uma cultura política estética antinômica à cultura do direito e à cultura cosmopolita do clero.

Petrarca é a revolução molecular europeia latina que vai à antiguidade grega através dos textos da antiguidade europeia conservados e interpretados pela cultura árabe (Libera: 452). Um discurso universitário se encontra na origem da existência de uma sociedade laica fazendo pendant com a sociedade religiosa católica,

O discurso universitário laico já é uma desterritorialização do campo simbólico da cultura política, estética da Igreja. Esta era a protagonista da tela gramatical escolástica/gótica. No campo político, o hegemonikon (Elorduy: 26) universitário faz pendant com a revolução molecular da cultura nacional italiana latina de Petrarca?

Dante é um efeito do discurso universitário fazendo pendant com o campo simbólico nacional de Petrarca? (Gilson. 1995:903):

“o pensamento político ocidental é penetrado por influências arabo-mulçumanas, as quais, sob a capa de aristotelismo, é renovado, de fato, com uma inspiração profundamente platônica. A monarquia de Dante, é a polis ideal d’al-Fârâbî, essa versão mulçumana da República de Platão: o monarca, o imperador é para a cristandade o que é l’imâm- filosofo na sociedade mulçumana. Há uma diferença muito próxima – mas ela é um detalhe: o imperador – lugar do macrocosmo e do microcosmo, reina na ordem da natureza e existe, ao lado dele, independente dele, um outro monarca, esse espiritual, o papa”. (Libera: 454).

Dante é um pensador do cosmopolitismo da cultura europeia, ele não é a revolução nacional no campo simbólico italiano. Ele faz laço social com a cultura política, jurídica, econômica, estética do cesarismo de Roma. A forma de governo que ele elogia é o império romano.   

O campo simbólico da tela gramatical da cultura política/estética é um domínio que se sobrepõem ao campo político molecular do indivíduo, ao campo político da polis secular e campo político celestial católico do papa, dos intelectuais clericais e da realidade virtual dos anjos e arcanjos. Estes existem como fantasma (objeto virtual) do campo político do individuo e fantasia (objeto real/esterno) do campo político da multidão cristã. A cultura universitária laica vai fornecer outras fantasias para o indivíduo. Não existe um só fantasma [que pilota a gramática e a vida], mas uma plurivocidade de fantasia no campo político do indivíduo e da multidão.          

 A “Divina Comédia”, fala dos fantasmas que pilotam a alma sem carne na viagem de um campo político virtual, que era bem entendido, familiar ao homem medieval. Ora:

“Prefiro sublinhar aqui que o imperador de Dante é um intelectual ao sentido preciso onde al Fârâbî define a natureza daquele que é digno de ser chefe: ser inteligência divina, isto é, por sua vez <sábio filosófico perfeitamente inteligente> [pois de intermediário em intermediário, qualquer coisa de Deus emana sobre seu intelecto possível] e <profeta> [pois o que é do alto emana sobre sua potência imaginativa. Lhe <anuncia o que advirá ou lhe informa dos acontecimentos atuais>], mais o que o intelectual tem em face dele mesmo é um outro poder: o poder do papa”. (Libera: 455).

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Dante faz uma descoberta e invenção, em um debate sobre a natureza da prática política universal. Ele distingue o cérebro humano do cérebro animal, não pela inteligência simplesmente, mas pela inteligência política, que o animal não possui. (Dante: 194).

A inteligência política não é aquela de um agente no campo político: do indivíduo, família, aldeia, cidade, reino em particular. (Dante: 194). A inteligência do crebro humano é aquela de uma tela de razão linguística em língua latina [tela gramatical narrativa da política]:

A virtude intelectiva de que falo se estende às formas universais ou espécies; e ainda, de certa maneira, às formas particulares. Eis porque se costuma dizer que o intelecto especulativo se transforma em intelecto prático, cujo fim é o agir e o fazer. Digo agir, por causa das ações que coordena a prudência política; digo fazer, por causa das ações manuais que as artes dirigem. Todas essas ações são servas da especulação, bem supremo, para o qual a Bondade Suma criou o gênero humano. De onde recebe toda a luz a máxima política: <Impõem-se naturalmente aos outros os dotados de vigorosa inteligência>. (Dante: 195). 

A especulação é a tela gramatical da ciência política literária dos jogos de gramática, jogos jogados por agentes políticos em um campo político universal. 

A estrutura de dominação cesarista é o domínio do direito do mais forte?

“Espantava-me, outrora, de que o povo romano houvesse chegado ao domínio do universo sem qualquer resistência; a minha visão era superficial, e pensava que Roma tivesse triunfado não pelo direito, mas, apenas, pela força das armas”. (Dante: 205).

A estrutura de dominação pelo direito doa mais forte é do campo simbólico do injusto, da injustiça mundial:

“Com efeito, só do fato de que o Império Romano apareça conforme o direito decorrem duas consequências necessárias: primeiro, que os reis e os príncipes que se apoderam de cargos públicos pela força, e que imaginam erradamente que o povo romano agiu como eles, terão a vista desanuviada; depois, que todos os, povos se reconhecerão livres do jugo imposto a eles pelos tiranos” (Dante: 205).

O problema de Dante é falar de uma estrutura de dominação mundial que não seja uma <tirania/cesarista, e sim um <monarquia cesarista>.

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Pensar o cesarismo moderno, levou Marx a falar de uma tela metafísica na política francesa na segunda metade do século XIX:

“A Assembleia Nacional eleita está em relação metafísica com a nação ao passo que o presidente eleito está em relação pessoal com ela. A Assembleia Nacional exibe realmente, em seus representantes individuais, os múltiplos aspectos do espírito nacional, enquanto no presidente esse espírito nacional encontra a sua encarnação. Em comparação com a Assembleia, ele possui uma espécie de direito divino; é presidente pela graça do povo”. (Marx: 346).

A forma de governo presidencialista permite que o presidente seja o símbolo, em carne e osso, divino [o Um como símbolo da realidade virtual do campo da nação]. Tal visão de Marx pode ser aplicada às relações políticas da tirania em geral?

La Boétie diz:

“No momento, gostaria apenas que me fizessem compreender como é possível que tantos homens, tantas cidades, tantas nações às vezes suportem tudo de um Tirano só, que tem apenas o poderio que lhes dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto aceitam suportá-lo, e que não poderia fazer-lhes mal algum se não preferissem, a contradizê-lo, suportar tudo dele. Coisa realmente surpreendente [ e, todavia, tão comum que se deve mais gemer por ela do que surpreender-se] é ver milhões e milhões de homens miseravelmente assujeitados e, de cabeça baixa, submissos a um jugo deplorável; não que a ele sejam obrigados por força maior, mas porque são fascinados e, por assim dizer, enfeitiçados apenas pelo nome de Um, que não deveriam temer, pois ele ´s só , nem amar, pois é desumano e cruel para com todos eles”. (La |Boétie: 74).

Qual é a tela gramatical do Um e da estrutura de dominação do eu só no campo político? Platão fala da Tela gramatical do filósofo/rei.

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Um fenômeno da atualidade mundial é a estrutura de dominação da tela gramatical pós-moderna da globalização. Ela é um agente político que procurou desintegrar o Estado-nação. O efeito mais visível é a desintegração das relações internacionais como velha estrutura de dominação/hegemonikón moderna. Hoje, as fronteiras nacionais aparecem e desaparecem como aparências de semblância. Povos fazem guerra entre si, e o aparelho militar de Estado não é mais aquele do Estado moderno funcionando pela gramática do direito fazendo pendant com a legitimidade. (Dante:210-211). O Estado pós-moderno da globalização funciona sem direito e sem gramática da legitimidade no espaço das “relações internacionais”. Um domínio anárquico e niilista vai se impondo na vida das relações entre os povos.

A estrutura de dominação/hegemonikon mais notável na historia do mundo é o império romano da antiguidade. A tela gramatical da dominação existe a partir do Um e do múltiplo. Roma combinou o um e o múltiplo em uma estrutura de dominação mundial:

“Como, então o fim do gênero humano está subordinado, e subordinado como meio necessário, ao fim universal da natureza, é necessário que a natureza a ele atenda. E por isso diz o Filósofo no segundo livro sobre o som natural que a natureza age sempre para um fim. Como natureza não pode atingir esse fim mercê dum homem só, desde que numerosas são as operações requeridas e se impõe uma multidão de agentes, tem a natureza de produzir uma multidão de homens ordenados a operações múltiplas. Para realizar tal multidão de indivíduos são de grande utilidade, com a influenciados atros, diversas propriedades dos lugares inferiores. Eis por que vemos que certos indivíduos, melhor, certos povos, nasceram para o comando, ao passo que outros para obedecer e servir, como pensa o Filósofo na sua Política. ‘Serem governados’ diz, é para alguns não apenas natural como justo, mesmo a que a isso sejam constrangidos”. (Dante: 211-212).           

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A forma de governo autômato (Edmond: 55) é parte da mitologia política de Platão. Ela seria fabricada pelo filósofo-rei. Por sua natureza, este filósofo possui o direito celestial que o põe e repõe acima do homem político comum. Sua prática política angelical faz dele um ser acima das leis (Edmond: 54), dos costumes e hábitos políticos, um ser não determinado por gramáticas da política. Ele não tem amigos ou inimigos, ele é de um campo simbólico de produção de ideais políticas celestiais. Essa leitura virtual de Platão é a herança da antiguidade do filósofo-rei na cultura política, jurídica, estética, ocidental.

Popper se levantou contra ela e acusou Platão de estar na origem d forma de governo totalitária do século XX. Popper diz que a forma de governo autômato totalitária funciona pela mentira política em benefício do bem comum, da polis. (Popper: 155):

O filósofo é o agente de fabricação da gramática da Constituição:

“Como ‘pintor de Constituições’, o filósofo deve ser auxiliado pela luz da bondade e da sabedoria”. (Popper: 163).

O filósofo tece gramáticas constitucionais usando a ciência política literária dos jogos de gramática de Sócrates. Ora, o mal da tirania consiste em retirar da maioria do povo o poder de controlar suas próprias leis (Nieschike:64) e o funcionamento da tela gramatical narrativa do campo político/estético. A prática política da multidão soberana da politeia faz a junção da política com a ciência política literária dos jogos de gramática dos sofistas. Tal fato permitiu que a democracia constitucional existisse por cerca de duzentos anos.

A tela gramatical metafísica do Um tem um pressuposto saber, ou melhor, uma concepção política de mundo que é a base de seu funcionamento no campo político. Ela funciona pelo princípio da identidade absoluta entre sujeito/soberano e a prática política:

“Compreender e explicar racionalmente qualquer coisa, é assimilar o ainda desconhecido ao já conhecido. Em outros termos, é o conceber como idêntico em natureza a qualquer coisa que nós já conhecemos. Conhecer a natureza do real em geral é logo saber que cada um dos seres do qual se compõe o universo é, ao fundo e quaisquer que sejam as diferenças aparentes que os distingue, idêntica em natureza à n’importe quel autre être réel ou possible”. (Gilson. 1994: 24).  

Na plurivocidade de tela gramatical, a tela metafísica rege a realidade virtual do campo político/estético:

“La métaphysique est l’étude des causes últimes dub réel. Pour l’homme moderne, il n’est pas si facile de s’engager dans une discipline qui demande le plus haut degré d’expérience authentique, une grande capacité d’abstration, ‘analyse et de déduction, tout en étant, en même temps, dépourvue d’utilité pratique immédiate. La valeur suprême dela métaphysique reside justement dans le fait qu’elle nous procure l’ultime e la plus profonde vérité quanta u réel. Elle nous donne la nourriture dont nous avons le plus besoin. Elle peut, en effet, nous rapprocher le plus possible de notre <demeure réelle>, et nous préparer à une connaissance nouvelle et supérieure de l’Etre Premier”. (Elders: 43-44).

A maior ilusão do homem pós-moderno é não ver que a tela gramatical metafísica é uma região do cérebro humano, que o distingue do cérebro animal. Marx não é possuído por esse fantasma pós-moderno. É necessário falar da ilusão do monarca que não é um tirano da tela gramatical barroca/iluminista. Hoje, uma estrutura de dominação /hegemonikon mundial tem como referente o mercantilismo do capital asiático amarelo:

“Em Leibniz, o barroco é uma tela gramatical estética do século XVII, na Alemanha. Kant segue Leibniz e, ao promover a fratura com o barroco [e criar a ilustração], continuou a se barroco. Não há antagonismo entre iluminismo e barroco, portanto, há conciliação barroca”. (Bandeira da Silveira. 2024: cap. 3).   

 

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Além da época pós-moderna. EUA: amazon, 2024-

DANTE ALIGHIERI. Seleção de Textos. Monarquia. SP: Abril Cultural, 1973

ELDERS, Leo J. La métaphysique de Saint Thomas d’Aquin. Paris: J. Vrin, 1994

EDMOND, Michel-Pierre. Le philosophe-rei. Platon et la politique. Paris: Payot, 1991

ELORDUY, Eleuterio. El estoicismo. V. 2. Madrid: Gredos, 1972

GILSON, Étienne. L’être et l’essence. Paris: J. Vrin, 1994

GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. SP: Martins Fontes, 1995

LA BOÉTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária. SP: Brasiliense, 1982

LACAN, Jacques. Le Seminaire. Livre 17. L’envers de la psychanalyse. Paris: SEUIL, 1991

LIBERA, Alain de. La philosophie médiévale. Paris: PUF, 1993

MARX. Os Pensadores. O 18 do Brumário de Luís Bonaparte. SP: Abril Cultural, 1974

NESCHKE-HENTSCHKE, Ada. Platonisme politique et théorie du droit naturel. Paris: Édition Peeters, 1995

POPPER, Karl R. A sociedade democrática e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1959                   

                

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