quinta-feira, 21 de julho de 2016

DITADURA E PHYSIS POLÍTICA



POR UMA NOVA CIÊNCIA DO ESTADO

Em Marx há o problema se o Estado surge na civilização arcaica ou no mundo grego da antiguidade. Parto da ideia de que o Estado é o Urstaat. Trata-se de um fenômeno trans-subjetivo divino que significa o uso da violência (força física) sem limite sobre a população e de força cultural política do Estado hídrico. A violência remete para o instinto de morte de um aparelho associado à physis político-biológica.

Heráclito vê o rio sem princípio nem fim dos fenômenos obedecendo a uma espécie de lei ou razão universal dotada de permanência, o logos:
Fragmento 2. Sexto Empírico. “Por isso é preciso seguir o-que-é-com, (isto é, o comum; pois o comum é-o-que-é-com). Mas, o logos sendo o-que-é-com, vivem os homens como se tivessem uma inteligência particular”. Logos é o nome correspondente ao verbo légein = recolher, dizer. É ‘palavra’, ‘discurso’, ‘linguagem’, ‘razão’ ” (Heráclito: 79).  

Fragmento 50. Hipólito. “ Não de mim, mas do logos tendo ouvido é sábio homologar tudo é um”.
O Urstaat é o significante-um da história universal. A primeira totalidade RSIcp (Real/Simbólico/Imaginário/cultura política) como logos.
O Urstaat é percebido sensivelmente como um fenômeno estranho, não familiar, pois divino.

Fragmento 72. Marco Aurélio. “Do logos com que mais constantemente convivem, deste divergem; e (as coisas) que encontram cada dia, estas lhes parecem estranhas”.

Fragmento 108. Estobeu.Florilégio, I, 174. “De quantos ouvi as lições nenhum chega a esse ponto de conhecer que a (coisa) sábia é separada de todas”.

O logos é a  coisa sábia-Urstaat separada de todas as almas. Mas a alma é articulada como almor pelo Urstaat na produção da trans-subjetividade arcaica.

Fragmento 115. Estobeu. “De alma é (um) logos que a si próprio se aumenta”.

A produção da trans-subjetividade (almor) é ligada ao logos, que abrange o conjunto do Universo, physis e espírito, sendo a regra, a medida, o limite da própria mudança e da própria discórdia (stásis e pólemos). O logos é o princípio da transdialética entre physis política e cultura política na articulação do Urstaat.

Apendi com a velha ciência política que a origem do pensamento político está ligada ao tranquilo e claro racionalismo do espírito grego. A nova ciência política vê a razão greco-romana como pensamento político associado à polis e, portanto, à guerra e paz, à stasis e pólemos.

O pensamento político é, assim, uma máquina de pensar a guerra e a paz, uma máquina de guerra poiética de produção e invenção da política e do político. Trata-se da cidade-Estado como autárkeia, uma sociedade de significantes perfeita que se bastava a si própria em todos os domínios. Weber pensou a autárkeia no sentido econômico:
“Somente queremos falar de “cidade” no sentido econômico, tratando-se de um lugar onde a população local satisfaz no mercado local uma parte economicamente essencial de suas necessidades cotidianas, e isto principalmente com produtos que a população local e dos arredores produziu ou adquiriu para a venda no mercado. Toda cidade no sentido aqui adotado da palavra é “localidade de mercado”, isto é, tem um mercado local como centro econômico do povoado, mercado no qual, em virtude da existente especialização da produção econômica, também a população não-urbana satisfaz suas necessidades de produtos industriais ou artigos mercantis ou de ambos, e, como é natural, também os próprios moradores da cidade trocam entre si os produtos especiais e satisfazem as necessidades de consumo de suas economias. Originalmente, era normal que a cidade, onde se apresentava como complexo distinto do campo, fosse ao mesmo tempo sede de um senhor territorial ou príncipe e localidade de mercado, possuindo centros econômicos de ambos os tipos – oikos e mercado -, e frequentemente nela ocorrem-se, periodicamente, ao lado do mercado local, feiras de comerciantes, viajantes, vindo de longe. Mas a cidade (no sentido aqui adotado da palavra) é um assentamento com mercado permanente”. (Weber: 411).       

A sociologia política econômica de Weber não chega a pensar a cidade como cultura política econômica. Pois, isso significa pensar a cidade como processo de trans-subjetivação econômica fazendo pendant com desejo sexual ou aversão sexual ao estranho (estrangeiro).

Lewis Mumford pensa a cidade como cultura política econômica:
“Se o homem antigo deliberadamente procurou romper os isolamentos e enquistamentos de uma comunidade por demais estabilizada, de costumes fixos e pouco disposta a abandonar suas felizes rotinas, dificilmente poderia ele ter imaginado uma resposta melhor ao problema do que a cidade. O próprio crescimento desta dependia de trazer alimentos, matérias-primas, habilidades e homens de outras comunidades, quer pela conquista, quer pelo comércio. Ao fazer isso, a cidade multiplicou as oportunidades de choque e estímulo psicológico” (Mumford: 111-112).

“Choques e estímulo psicológico” significa o processo de trans-subjetivação como desejo sexual do estrangeiro (estranho). Ao contrário, a aldeia se articula pela aversão sexual ao estranho.

As línguas italiana e portuguesa parecem contentar-se com palavras que descreveríamos como circunlocuções. Em árabe e hebreu ‘estranho’ significa o mesmo que ‘demoníaco’, ‘horrível’ (Freud: 278). Freud associou o significante estranho ao grotesco (Freud: 284-295). Desejar sexualmente ou ter aversão sexual pelo estranho- significa o princípio da trans-subjetivação do  grotesco que define, respectivamente, a cidade e a aldeia. O grotesco faz pendant com a tela gramatical urbana criada em Ur (Urstaat/cidade-Estado), primeira tela cultural política econômica, articulada por Lewis Mumford.

O Estado só ex-siste em uma tela gramatical urbana.

A propósito do estranho, estou sugerindo uma interpretação mais freudiana do que a do próprio Freud, e uma interpretação do estranho grotesco alternativa a de Wolgang Kayser:
“Para o narrador se abrem “frestas” em seu próprio, e para ele inacessível, passado (esteve louco durante anos). Mas também como criatura de hoje vive momentos de alienação. Introduz-se nele algo de estranho, torna-se um Golem, um homem artificial, que um rabino versado em Cabala, aqui no gueto, um dia moldou a partir do elemento e o chamou para uma existência despida de pensamento, automática, enfiando-lhe atrás dos dentes uma certa palavra numeral mágica’. Será a própria alma que se apresenta no duplo Golem? Os velhos motivos do duplo, do autômato, da boneca de cera aparecem em novas roupagens e novas conexões. Outras figuras também vivem o estranhamento do eu”. (Kayser: 123). Penso o estranho grotesco como physis política no desejo sexual ou aversão sexual ao estrangeiro, na cidade ou na aldeia, respectivamente. 

Hegel definiu a coisa como choque estranho à unidade da apercepção. Assim, para Hegel, o essencial é superar a oposição entre o eu subjetivo e o eu objetivo, sendo o Eu = Eu o princípio
Absoluto, tratava-se do sistema idealista mostrar esta unidade. Ao mesmo tempo em que Hegel reconhece e detecta a cisão que permanece no interior do princípio de apercepção, considera que mesmo assim este não consegue fugir ao dualismo. Será antes a partir das influências de Schelling e Hölderlin que Hegel irá montar seu sistema absoluto. O estranho grotesco em Hegel é o choque estranho ou essência empírica na relação com a unidade da apercepção articulada pelo desejo sexual ou aversão sexual.

A Coisa em Freud é o estranho desejo sexual (ou aversão sexual) que faz o laço grotesco criança/Mãe na unidade da apercepção da criança na divisão eu-subjetivo e eu-objetivo;
“Pois a coisa, ao ser chamada também choque estranho ou essência empírica, ou sensibilidade, ou coisa em si, em seu conceito fica sempre a mesma e estranha à unidade da apercepção” (Hegel: 158).       

Como dissemos acima, a tela gramatical urbana grotesca de Ur é uma ideia de Mumford:
“Não foi por acaso que o aparecimento da cidade como uma unidade contida em si mesma, com todos os seus órgãos históricos plenamente diferenciados e ativos, coincidiu com o desenvolvimento do registro permanente, com glifos, ideogramas e escrita, com as primeiras abstrações do número e dos sinais verbais. Pela época em que isso aconteceu, o montante de cultura a ser transmitido oralmente achava-se fora do alcance de um pequeno grupo, mesmo numa longa existência. Já não era suficiente que a experiência fundada da comunidade repousasse nas mentes dos membros mais idosos.

Nas transações diárias, a mesma necessidade de anotações e sinais permanentes era ainda mais evidente: para operar à distância, por meio dos agentes e prepostos, para dar ordens a fazer contratos, eram necessários alguns artifícios extrapessoais. As mais antigas tabuinhas de Ur são meras listas e relações: registram quantidades de farinha, cerveja, pão, gado, nomes de homens, os deuses, de seus templos – simples anotações de fato, que permitam à comunidade manter-se a par das quantidades que poderiam, de outra maneira, ser incertas ou escapar à percepção.                

Felizmente, o controle de tais atividades, a princípio, esteve em grande parte nas mãos de uma classe sacerdotal, livre da constante necessidade de trabalho manual e cada vez mais confiante nas funções mediadoras do espirito. Em graus progressivos de abstração e simbolização, tornou-se essa classe capaz de transformar o documento escrito num instrumento destinado a preservar e transmitir ideias, sentimentos e emoções que jamais haviam tomado qualquer forma visível ou material” (Mumford: 112-113).

Cidade-estado, o Urstaat está associado à classe sacerdotal e ao documento escrito como transmissão trans-subjetiva de ideias, sentimentos e emoções. Trata-se da formação da tela gramatical urbana como condição necessária para a ex-sistência do Urstaat. Outra citação longa de Mumford ajuda a esclarecer tal fenômeno:
“Por meios de tais documentos, os governantes da cidade viviam uma múltipla vida: primeiro na ação, depois em monumentos e inscrições, e ainda outra vez no efeito dos acontecimentos documentados sobre o espírito dos povos posteriores, fornecendo-lhes modelos para imitação, advertências de perigo, incentivos de realização. Viver pelo documento e para o documento tornou-se um dos grandes estigmas da existência urbana: na verdade, a vida tal como era registrada – com todas as suas tentações a ultradramatização, a inflação ilusória e a falsificação deliberada -, muitas vezes tendia a se tornar mais importante que a vida tal como era vivida. Daí as perversões do monumentalismo, que ironicamente chegaram a seu ponto culminante pela jactância de Ozimandias. Essa tendência tem sido engrandecida em nossos próprios dias, no cinema, no qual desempenhos fictícios são encenados, antes ou depois do acontecimento real, a fim de deixar um documento ‘preciso’ para a posteridade.
O desenvolvimento dos métodos simbólicos de armazenagem aumentou imensamente a capacidade da cidade como recipiente: a cidade passou a não simplesmente manter junto um grande corpo de pessoas e instituições, maior que qualquer outra espécie de comunidade, mas manteve e transmitiu uma porção de suas vidas maior do que as lembranças humanas poderiam transmitir pela palavra oral. Essa condensação e armazenagem, tendo em vista ampliar fronteiras da comunidade no tempo e no espaço, representam uma das funções singulares desempenhadas pela cidade; isto porque outras funções municipais, por mais essenciais que sejam, são principalmente acessórias e preparatórias. A cidade, como bem observou Emerson, ‘vive pela recordação’.
Por meio dos seus edifícios e estruturas institucionais duráveis e das formas simbólicas ainda mais duráveis da literatura e da arte, a cidade une épocas passadas, épocas presentes e épocas futuras por vir” (Mumford: 113).

A memória cultural política econômica é urbana e está associada à tela gramatical urbana. Sem memória cultura política o Estado entra em um processo de autodissolução.

É comum a ciência política da antiguidade associar pensamento político e polis. A cidade era pequena, ás vezes de diminuta dimensão dividida em uma única urbe, polis no sentido geográfico, e o seu campo formando no conjunto a cidade-Estado, ou melhor, polis em um sentido político. A polis era a habitação dos polítai (homens livres e normais) cuja antítese era o súdito do império despótico oriental de dimensões imensas. No essencial, a polis (o político) é a prática do pensamento grego que caracterizava por uma dupla preocupação: a ética fazendo pendant com a política de massas de homens livres e normais.

Aristóteles diz que só merece o nome de cidade a associação que inventou a política. Atenas é o paradigma do significante cidade ocidental como politeia ou Constituição de uma forma de governo. A politeia dá origem ao modelo de poder no qual as massas se constituem como o autor/ator da política. Se a política é também ética, o Bem da política é viver bem e se conduzir bem: felicidade grega. Cito a passagem clara de Aristóteles sobre a articulação cidade e política:
“Toda ciudad es, como podemos ver, una especie de comunidad, y toda comunidad se ha formado teniendo como fin un determinado bien – ya que todas las acciones de la especie humana en su totalidad se hacen con la vista puesta en algo que los hombres creen ser un bien -. Es, por tanto, evidente que, mientras que todas las comunidades tienden a algún bien, la comunidad superior a todas y que incluye en sí todas las demás debe hacer esto en un grado supremo por encima de todas, y aspira al más alto de todos los bienes; y esa es la comunidad llamada Ciudad, la asociación política”. (Aristoteles: 675).         

Ao contrário da polis romana, a polis grega não era uma máquina de guerra:
Com os romanos se destinavam à guerra e a consideravam a única arte, empenharam todo o seu espírito e todos os seus pensamentos na tarefa de aperfeiçoá-la. Foi sem dúvida um deus, exclama Vegécio, quem lhes inspirou a legião”. (Montesquieu: 32). Os romanos almavam a guerra: “Os romanos eram ambiciosos por orgulho, os cartagineses por avareza; uns queriam mandar, os outros adquirir; os cartagineses calculando sem cessar a receita e a despesa, sempre fizeram a guerra sem amá-la. (Idem: 43).       

A trans-subjetivação almorosa (alma + amor) da guerra leva à Roma máquina de guerra militar poiética. A guerra era cultura do sério e a máquina de guerra soldado o herói da antiguidade romana:
“Sucede mesmo, entre nós, que a destreza excessiva no manejo das armas de que nos servimos na guerra se tornou ridícula, porquanto, desde a introdução do costume dos combates singulares, a esgrima tem sido considerada uma ciência de mata-mouros ou poltrões. Os que criticam Homero por exaltar normalmente em seus heróis a força, a habilidade ou a agilidade do corpo deveriam achar Salústio bastante risível ao louvar Pompeu por ele correr, saltar e carregar peso como qualquer outro”. (Montesquieu: 34).

Na polis grega, o herói é o Legislador, figura quase divina, artista plástico e prático político de qualidade superior. Licurgo em Esparta, Sólon em Atenas, um dos 12 sábios; e depois dele Clístenes que trabalhou a polis como se fosse um geômetra com régua e compasso, ou um físico-médico. Para este, trata-se de fundar ou refundar uma cidade como superfície cultural política econômica, de se debruçar sobre uma polis doente para diagnosticar e atenuar, eventualmente curar como médico do corpo político estudioso da physis política das formas de governo e do almor das massas á polis.

A cidade-Estado é uma máquina de criatividade como força produtiva na cultura política econômica universal. Celso Furtado foi buscar sua ideia de criatividade no sentido amplo de invenção da cultura política econômica no marxismo bem temperado de Lewis Mumford ao associá-lo com a emergência do excedente adicional. (Furtado: 116, 111; Mumford: 115). Porém a criatividade de Celso não tem o poder intelectual do marxismo criativo de Mumford.

Mumford parte da fundação e refundação da cidade e do Estado como monopólio da criatividade nas mãos e cérebros da classe governante (rei e classe simbólica sacerdotal):
“Esse pequeno grupo (classe governante) apoderou-se, sozinho de fartos recursos, pois se considerava isento da obrigação de erguer ao seu próprio nível a vida da maioria dos camponeses e artífices. Assumindo inicialmente o controle dos poderes sagrados, na construção de santuários e na elaboração do ritual, depois tornando secreto o registro permanente, ou melhor, as encantações mágicas, as notações matemáticas, as observações científicas preservadas pelos documentos, o clero deu força à autoridade real, que afora este, tinha apenas o apoio da organização burocrática e militar” (Mumford: 114-115).

A tela gramatical religiosa faz pendant com o uso do excedente adicional na fabricação do sagrado.
A tela gramatical urbana é parte do monopólio da criatividade pela classe simbólica como máquina de guerra religiosa de armazenamento e transmissão das mensagens e, portanto, da memória cultural política urbana reservada à elite urbana:
“Existe um amargo lamento, a partir do primeiro grande levante popular egípcio, que revela a indignação das classes superiores, porque as ordens inferiores haviam invadido seus recintos e não simplesmente transformado suas esposas em prostitutas, mas, o que parecia igualmente mau, capturaram os conhecimentos que lhes haviam sido negados. ‘Os escritos do augusto recinto [o templo] são lidos. (...) O lugar dos segredos ...está [agora] desnudado. (...) A magia está revelada’. (Advertências de Ipuver [2300-2050 aC.?])” (Mumford: 115).

A classe governante detém o monopólio dos segredos da tela gramatical da comunicação: “Esses segredos criavam uma lacuna entre os governantes e os governados, quase os transformando em espécies biológicas diferentes; e foi somente depois que os próprios feitos da civilização foram chamados à baila, pela revolta popular, que uma parte desses segredos foi compartilhada” (Mumford: 115). Estabelece-se aí uma superioridade biológica da classe governante associando governo e physis política. Trata-se do princípio do arianismo da tela gramatical urbana.       

Ao contrário da associação ingênua, encantatória e autoilusória (própria dos economistas) entre excedente adicional, criatividade e desenvolvimento econômico, presente em Celso Furtado, Mumford pensa o problema seriamente, sem glorifica-lo como nobilitante, aristocrático:
“Todavia, as classes dominantes, no seu próprio monopólio dos processos criadores, haviam descoberto um princípio de importância geral para o desenvolvimento humano. Esse princípio continua sendo apenas parcialmente compreendido e intermitentemente aplicado ainda hoje. Refiro-me ao emprego da deliberada sonegação e retiro, para penetrar no ciclo puramente repetitivo do nascimento, nutrição e reprodução ou da produção, troca e consumo. Embora grande parte dos excedentes produzidos na sociedade urbana fosse desperdiçada com um extravagante consumo e atos ainda mais extravagantes de destruição militar, uma parte considerável destinou-se ao lazer, ao tempo sem finalidade, libertado da rotina diária, dedicado à contemplação da natureza e à disciplina do espírito humano” (Mumford: 115).        

Paz e Guerra disputam o excedente adicional na lógica que Georges Battaile conceituou filosoficamente com parte maldita. Mas me interessa a ligação do excedente com a cultura política econômica, ou da guerra, ou da paz.

O bloco-no-poder mundial atual é constituído por duas espécies de capital determinantes da cultura política econômica mundial: o capital civil e o capital militar. O capital militar detém a hegemonia no bloco, pois, a narrativa hegemônica mundial é a da guerra, não é a da paz. A narrativa militar mundial é criada pela Okhrana mundial tendo como objeto o simples Estado Islâmico.

O capital da tela eletrônica irradia a ideologia cultural política da narrativa militar contra o terrorismo islâmico. O capital eletrônico jamais diz que a Okhrana (complexo industrial militar + serviço de segurança militar/civil) é o fornecedor das armas/mercadorias do terrorismo, tecnologia terrorista, em geral. Para a Okhrana quanto mais terrorismo maior o seu lucro econômico e seu lucro político, ou seja, seu poder militar sobre o planeta.

O capital eletrônico é o braço civil militarizado em imagens sonoras e visuais a serviço da Ordem do Capital militar Mundial.

A cultura política econômica urbana é a trans-subjetivação das energias instinto de morte e narcisismo, respectivamente, como artes da destruição e artes sublimatórias e de simbolização: “Ainda hoje, apenas uma parte das energias totais da comunidade volta-se para a educação e expressão: sacrificamos muito mais às artes da destruição e extermínio que às artes da criação” (Mumford: 116).

A cultura política econômica faz pendant com a trans-subjetivação do desejo sexual:
“Enquanto o revestimento exterior da cidade crescia, por assim dizer, no seu interior igualmente se expandia: não somente seus espaços interiores, dentro do recinto sagrado, mas sua vida interior. Os sonhos transbordavam daquele interior e tomavam forma; as fantasias se transformavam em drama e o desejo sexual florescia em forma de poesia, dança e música. Dessa forma, a própria vida tornou-se uma expressão coletiva do amor, desligada das urgências da reprodução social” (Mumford: 116).

A cultura política econômica urbana abandonava a lógica da aldeia de aversão sexual ao estrangeiro sublimando-a em poesia, dança e música. 
II
A lei da exsudação cultural política econômica diz respeito a relação do monopólio da tela gramatical urbana pelo governante na cidadela e as massas plebeias organizadas na municipalidade. Trata-se da posse do poder político e do poder simbólico:
“Até agora, tenho-me demorado na fase do monopólio do conhecimento e do poder, originariamente exercido pelos governantes da cidadela. Na verdade, porém, esse monopólio abrangia a maior parte das funções, que só vieram a ser tomadas e coletivamente distribuídas pela municipalidade depois de muitos milhares de anos. A isso pode-se chamar a lei da exsudação cultural” (Mumford: 116).

A cidadela-Estado é o significante original ditadura arcaica. Mumford pensa a história da exsudação cultural como transdialética ditadura e democracia - cidadela e municipalidade:
“No corpo da guarda da cidade encontramos o primeiro exército e os primeiros oficiais de polícia; e, embora não possamos identificar os edifícios separados, até uma data posterior, ali também encontramos o primeiro alojamento para aqueles funcionários militares, a caserna. Ademais, ali encontramos o primeiro ministério do exterior, a primeira burocracia, o primeiro tribunal de justiça (no portão do palácio), e igualmente, no lugar onde se ergue o templo, o primeiro observatório astronômico, a primeira biblioteca, a primeira escola e universidade e, não menos, o primeiro “teatro”. Tudo isso floresce na cidadela, antes que houvesse quaisquer equivalentes municipais independente, dispondo de um domínio maior no qual trabalhar, ou que ao menos se pensasse em participação democrática” (Mumford: 116).

A cidadela-ditadura detém o monopólio da técnica da criação simbólica da tela gramatical urbana:
“Esse monopólio real aplicava-se a muitas inovações técnicas que apareceram na cidadela, muito antes de se propagarem pelo resto da cidade. Foi na cidadela que, pela primeira vez, apareceram edifícios à prova de fogo, construídos materiais permanentes; assim, também, o calçamento. Foi ali, numa ou outra região, que, antes de 2000 a.C., construíram-se esgotos, condutos de água corrente, banheiras, latrinas, aposentos privados para dormir; e era no recinto do palácio, numa época em que o resto da cidade se tinha tornado uma compacta massa de casas, densamente ocupadas, que os reis e sua corte gozavam do que ainda é o maior e mais aristocrático dos luxos urbanos – uma amplitude de espaços abertos a se estender além da própria moradia, em jardins, e lugares de prazer, algumas vezes constituindo todo um quarteirão de vilas destinadas aos nobres e ao alto funcionários” (Mumford: 116-117).

A cidadela-ditadura é um significante da physis política. Ela é a lógica gramatical (cultural política econômica) da trans-subjetivação do espaço da cidade como conforto, viver bem e felicidade para os arianos, ou seja, para a classe governante (classe política mais classe simbólica). A ditadura da civilização arcaica é o princípio do arianismo de uma classe governante que se define por um viver civilizatório em contraste com a barbárie do mundo da vida das massas.

A democracia fazendo pendant com a physis política significa o bem viver para as massas, as massas no mundo-da-vida protegidas, contempladas e guardadas pela técnica civilizacional. Neste sentido, a diferença entre os EUA, a Europa Ocidental, Japão e Brasil é clara e distinta. Pelo princípio da physis política, os EUA, a Europa Ocidental e o Japão se constituem como democracia (na physis política). Já o Brasil é uma ditadura.                                                   

A physis política arcaica cidadela-Estado articula a cidade à aldeia. No Rio de Janeiro, a aldeia é a favela abandonada pelo Estado jamais moderno que se define por inscrever na tela gramatical urbana a diferença radical entre cidade e aldeia:
“Esses fatos a respeito das origens da cidade propriamente dita, dentro da cidadela ou “pequena cidade”, parecem essenciais para um retrato completo das suas funções e finalidades. Em jargão econômico comum, a cidadela serviu como o plano piloto inicial da cidade; e isso explica o fato de que tantas características tanto da cidade quanto do Estado, hoje em dia, guardem a marca de antigos mitos e mágicas aberrações, de obsoletos privilégios e prerrogativas, originariamente baseados nas pretensões reais; é testemunha disso o mito da soberania absoluta. Felizmente, ao unir a aldeia e a cidadela, o templo e o mercado, a cidade apoiava-se ainda nos fundamentos morais da aldeia: os hábitos de trabalho regular e a colaboração diária numa tarefa comum, a alimentação, reprodução e consagração da vida. O próprio santuário da aldeia jamais foi completamente absorvido pelo centro cerimonial principal, pois cultos e santuários subordinados formaram o núcleo das paróquias dos templos, na Mesopotâmia. Em Khafaje, encontram os arqueólogos um desses distritos de vizinhança, com seus caminhos a convergir na direção do templo” (Mumford: 117).

A aldeia condensa a physis política das massas como moral. Assim, as massas-aldeia escapam da maldição lacaniana da imbecilidade natural discursiva moral das massas? As massas podem metabolizar um discurso que não fosse semblante? Tal discurso é o único caminho para as massas não desejarem mais sexualmente a ditadura da physis ariana aristocrática. O discurso que não fosse semblância articula as massas mestiças como aversão sexual à ditadura.

A cidade fazendo pendant com a physis é uma ideia clara em Mumford:
Assim, a cidade, numa data remota, recapturou o polimorfismo da colmeia dos insetos: usando de meios sociais, alcançou um equivalente das diferenciações fisiológicas que acompanham a integração das sociedades de insetos. Em verdade, essa divisão do trabalho admitia uma mobilidade interna maior do que a conheciam as comunidades de insetos” (Mumford: 122).

Na cidade, a physis política se altera com a introdução da propriedade privada e a divisão entre ricos e pobres: “Coube à civilização criar penúrias artificiais, que mantivessem o trabalhador acorrentado à sua tarefa, para que os excedentes pudessem garantir a fartura do homem rico” (Idem: 123). Na passagem da aldeia (mito) para a cidade (história), a propriedade define uma ruptura entre a interseção da subjetividade fazendo pendant com a trans-subjetividade (urbana) e a própria trans-subjetividade aldeã (comunal campesina). Pois, a subjetividade é um fenômeno cuja origem se deve a propriedade privada. Vejamos por partes. Primeiro a relação entre aldeia-cidade e Estado:
“Na passagem da aldeia para a cidade, existe ainda alguma confirmação dessa interpretação dos costumes comunais pois a terra e tudo o que ela produzia passou a ser propriedade do templo e dos deuses; até mesmo os camponeses que a trabalhavam pertenciam também à terra e eram obrigados a dar parte do seu trabalho às tarefas comuns de escavar, levantar diques e construir. Essas posses, com a ampliação dos poderes seculares da realeza, iriam se tornar propriedades reais; e a identificação do domínio comum com o poder soberano lançou raízes tão profundas que, mesmo nos Estados modernos, mais nitidamente conscientes dos direitos da propriedade privada, o próprio Estado é possuidor último e herdeiro residual, com aquele poder de comandar e tributar que é, em última análise, o poder de possuir ou destruir” (Idem: 123).

A transdialética materialista Estado e propriedade privada é algo que faz da physis política o motor de uma periodização da cultura política econômica universal, pois, o poder de possuir ou destruir do Estado só pode ser um direito natural do rei, direito da physis política. Prossigo:
“A propriedade privada começa, não como pensava Proudhon, com o roubo, mas com o tratamento de toda propriedade como posse privada do rei, cuja vida e cujo bem-estar eram identificados com os da comunidade. A propriedade era uma ampliação e um alargamento de sua personalidade, como único representante do todo coletivo. Mas, tão logo essa pretensão foi aceita, pode a propriedade pela primeira vez ser alienada, isto é, removida da comunidade pelo dote individual do rei” (Idem: 123).

A propriedade do rei é o princípio que funda (e fundamenta) a subjetividade:
“Finalmente, se o homem urbano subdividido, ou Teilmensch, prejudicou a integridade inconsciente do tipo mais simples da aldeia, pelo menos indiretamente conseguiu um novo senso de personalidade individual, a emergir da crisálida da tribo, do clã, da família e da aldeia. Isso porque, no polo oposto ao especialista vocacional, levanta-se agora uma pessoa individual, no papel do próprio monarca: o Faraó do Egito, ou o Lugal da Suméria. Na base, poderia haver escravidão e compulsão; mas, no topo – por muito tempo, apenas no topo – havia liberdade autonomia, escolha, tudo isso a emergir dos atributos da personalidade, coisa dificilmente possível num regime baseado na coesão da família e na unanimidade tribal” (Idem: 125-126).

A sociedade moderna dos significantes individualista quer transformar todos em rei? Princípio da primazia da subjetividade da biografia individual sobre os processos de trans-subjetivação das massas sujeito zero aldeão. A sociedade americana moderna não consegui evitar que a luta de classes fosse o motor de sua cultura política econômica através do individualismo moderno? Todo americano que ser rei. Ele quer que a cidadela seja comum a todos. Isso é a cidade americana. Isso não é o American Dream?
“Não foi a Revolução Americana e sua preocupação com o estabelecimento de um novo organismo político, de uma nova forma de governo, mas sim a América, o “novo continente”, o americano, o “novo homem”, a “adorável igualdade”, no dizer de Jefferson, “que os pobres usufruem juntamente com os ricos, que revolucionou o espírito dos homens, primeiro na Europa, e, em seguida, em todo o mundo  - e isso em tal medida que, a partir das últimas fases da Revolução Francesa, até as revoluções de nossa própria época, pareceu aos revolucionários ser mais importante mudar a tessitura da sociedade, tal como fora mudado na América antes de sua revolução, do que mudar a estrutura do domínio político. Se fosse verdade que nada mais estava em jogo nas revoluções da idade Moderna do que a mudança radical das condições sociais (da phyis política), poder-se-ia então dizer que a descoberta da América e a colonização de um novo continente constituíram suas origens – como se a “adorável igualdade” que surgira naturalmente, e como organicamente (physis política), no Novo Mundo, só pudesse ser conseguida, no Velho Mundo, através da violência e da  sangrenta revolução, quando lá se espalhou a notícia de uma nova esperança para a humanidade” (Arendt: 20).

A revolução moderna mudou a percepção trans-subjetiva das massas sobre a realidade dos fatos através do princípio esperança. O princípio esperança é o pensar como o transpor da physis política, como o estabelecimento da autodissolução da physis como ditadura dos ricos sobre as massas (os pobres). Trata-se de trocar o desejo sexual imorredouro à ditadura pela pulsão aversão sexual à ditadura real. Isso põe e repõe o problema da possibilidade conforme a estrutura do objeto real ditadura.

A crença na esperança, a esperança da crença das massas da autodissolução da ditadura da phyisis é um problema do século XXI? Há aqueles que veem no possível somente a expressão de uma incerteza incontornável subjetiva ou bem a expressão de nosso saber limitado (Bloch: 292). Nisso consiste a luta da lógica estática subjetivista contra a possibilidade da trans-subjetividade revolucionária das massas instalarem a lógica da ruína da ditadura, como observou Hannah Arendt. A revolução moderna se faz contra a ditadura da physis política e seu direito natural real nas mãos dos ricos em antagonismos (cultural político econômico) sem equilíbrio com as massas.                          

De teoria do capital moderno como prática, a ciência moderna alterou a physis cidadela- versus cidade das massas-aldeia. O Estado moderno se caracteriza por aplicar técnica moderna e ciência ao mundo-da-vida das cidades. As lutas das massas no século XIX em Paris, a Comuna de Paris em 1871, os partidos socialistas e, finalmente, a Revolução Russa se constituíram no motor da transformação no Ocidente da transdialética da physis cidadela-ditadura versus cidade das massas e, portanto, da democratização do Estado moderno.

Pela physis política é tranquilo afirmar que o Estado moderno democrático jamais existiu no Brasil e na América Latina. No continente americano, ele só ex-siste nos EUA e no Canadá.         

 A ciência do Estado é a ciência do real, da physis política.

Nem mesmo a América é capaz de ver botas negras chegando na escuridão!

ARISTOTELES. Obras. Madrid: Aguilar, 1982
BLOCH, Ernst. Le príncipe esperance. v. 1. Paris: Gallimard, 1976
FURTADO, Celso. Criatividade e dependência na civilização industrial. SP: Companhia das Letras, 2008
HEGEL. Fenomenologia do espírito. Parte I. Petrópolis: Vozes, 1992
HERÁCLITO. Os pré-socráticos. Fragmentos, doxografia, comentários. Os Pensadores. SP: Abril Cultural, 1978
KAYSER, Wolfgang. O grotesco. SP: Perspectiva, 1986
MONTESQUIEU. Grandeur et décadence des romains. Paris: Flammarion, 1968
MUMFORD, Lewis. A cidade na história. Suas origens, transformações e perspectivas. SP: Martins Fontes, 1991
WEBER, Max. Economia e sociedade. v. 2. Brasília: Editora UNB, 1999       
       
                                                                                      
  
                         



            

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