segunda-feira, 21 de outubro de 2024

SHAKESPEARE - "COMO GOSTAIS

 

JOSE PAULO 

 

Harold Bloom estabeleceu a gramática de sentido freudiano da peça “Como gostais”. A universidade americana leu a peça pela interpretação de gênero (feminismo) ou de poder político (marxismo).. Hoje, pode-se estudar a gramática de sentido lacaniana de Shakespeare?

Rosalinda é a protagonista da peça. Há o gozo dela? O gozo dela é o gozo do Outro, na medida em que a voz de Shakespeare é a voz de Rosalinda? (Bloom: 287). Há uma gramática de sentido do palco fazendo laço social entre o imaginário e o simbólico? A gramática de sentido de Rosalinda é feminista? Ou gramática de sentido do Estado barroco?

O gozo do grande Outro ou Deus mortal aparece como gozo do Estado barroco, ou Deus territorial? O gozo do real do Texto é “o mundo é um palco”, real na boca de Jacques sobre a versão dramática das Sete idades do Homem? (Bloom: 274). Assim, a concepção política de mundo de Jacques o inscreve na comunidade psíquica de significante-do perverso?

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O texto começa com Orlando, não com Rosalinda. O significante desse início é a educação de cavalheiro de Orlando. Essa educação é aquela da sociedade de corte do classicismo do Estado monárquico francês renascentista. A gramática de sentido do Estado representa a Lei do Grande Outro como Deus mortal.  Em um contraste dito pelo narrador, Orlando tem sua própria gramática espontânea. Assim, o mundo de Orlando aparece como da comunidade psíquica de significante (CPS) de perverso:

“L’acte transgressive ne saurait être alors que de <fair ela loi> à son tour”. (Juranville: 261).

Bem! Gramsci tem uma definição do mundo feito por norma culta da gramática e por gramáticas espontâneas:

“Si potrebbe schizzare un quadro della <grammatica normativa> che opere spontaneamente in ogni società data, in quanto questa tende a unificarsi sia como território, sai come território, sia come cultura, cioè in quanto vi esiste un ceto dirigente la cui funzione sia riconosciuta e seguita”.

“Il numero delle <grammatiche spontanee o immanenti> è incalcolabile e teoricamente si può dire che ognuno ha una sua grammatica”. (Gramsci. 1997: 2343).

Todo homem tem sua gramática de sentido, todo homem tem sua essência gramatical perversa. (Lacan. S. 23: 149, 133). A educação é uma afecção. (Aristoteles: 109). Ela faz a passagem do mundo da perversão gramsciano para o mundo do nó RSI (Real. Simbólico, imaginário), mundo da história da civilização política em um contraponto à barbárie, que é o mundo da CPSp no comando da vida em geral: dominação da CPSp sobre as outras CPSs:

Ato Primeiro. Cena primeira: Jardim da casa de Olivério. Entram Orlando e Adão.

“Orlando. – Segundo me recordo, Adão, passou-se deste modo: deixou-me em testamento só umas mil coroas e, como dissestes, encarregou meu irmão, sob pena de maldição, de educar-me bem. Foi aí que começaram minhas desditas. Mantém na escola meu irmão Jaques e a opinião pública doura o aproveitamento que ele demonstra. Quanto ao que me toca, conserva-me em casa como se fora um rústico, ou para falar exatamente, sou mantido em casa sem receber educação. Poderia ser chamada educação para um cavalheiro de minha estirpe, aquela que não difere do tratamento que recebe um boi?”. (Shakespeare: 503).

O texto começa pondo em antagonismo recíproco o mundo da CPSp (Orlando) e o mundo da Comunidade psíquica de significante Estado monárquico, ou grande Outro mortal, o Estado territorial como Deus mortal. (Hobbes:109-110).

Harold Bloom destaca a fala de Jacques (gramático da norma culta do Estado) como sendo o centro gravitacional da tela verbal narrativa “Como gostais”:

“O mundo é um palco, os homens e mulheres, meros artistas, que entram e saem. Muitos papéis cada um tem no seu tempo; seus atos, sete idade. (Bloom; 274).

O mundo tem a gramática de sentido do palco, do teatro. Qual mundo? a realidade do campo político, aí sim, já barroco. O Grande Outro é simulacros de dissimulação. (Gracián: 29). Bem! o Estado barroco luso é exportado para o Brasil colonial:

“O barroco em Portugal, escreve Jaime Cortesão, foi ‘mais do que alhures, um estilo de império. [...] E é no Brasil que o barroco de origem e importação portuguesa, se tornou por definição o estilo dum Estado colonizador e absolutista, e, por consequência, o mais apropriado a exprimir em arte, por todos os ilusionismos duma força e grandeza sem limites, o domínio da Coroa sobre os seus vassalos’”. (Martins: 409).

O ser do Brasil é barroco; temos o grande Outro da CPSp determinando, articulando, organizando a sociedade civil e o Estado brasileiros. Daí a investigação sobre o Barroco brasileiro ter se tornado um ponto estratégico da nossa cultura. No Brasil, o Estado colonial nasce barroco. (Faoro: 84). A CPs-perverso barroco tem no padre António Vieira o seu hegemonikón ou eu político estoico do campo político colonial. Os “Sermões do Rosário” põe a Mãe de Deus como o significante perverso [em relação ao sujeito/criança brasileiro] do discurso do maître colonial (Vieira; 2015).    

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A essência é o ser real (Lefebvre: 216) no campo dialético da civilização política:

“A <expressão>, não devemos esquecê-lo, ao mesmo tempo, implica e dissimula, oculta e revela, traduz e trai o que ela expressa!”

‘A aparência e o fenômeno são, simultaneamente, um momento da essência (a essência em uma de suas determinações, em uma de suas relações) e um momento da reflexão. A essência aparece na <aparência>; e é aí que nossa reflexão busca e a encontra. É em e pela pesquisa da essência que nossa reflexão se torna interior à coisa”. (Lefebvre: 217).

A civilização política faz da coisa um momento da reflexão na comunidade psíquica de significante- do filósofo dialético (CPSfd). A percepção da civilização é idêntica à da CPS-fd:

“A coisa difere da aparência; e, com relação à aparência, a coisa, é em sim mesma diferença, negação contradição. Ela não é a aparência, mas sua negação”. (Lefebvre; 2190.

Há a coisa (o grande Outro real), isto é, o capital como relação técnica e relação social da profundidade da superfície do Outro real. Este é a negação do grande Outro simbólico que é o Estado, a priori. Na filosofia lacaniana, a relação entre o capital e o Estado é de reciprocidade antagonista, do Estado como negação da negação do capital. Assim, se estabelece a relação entre a mais-valia econômica da sociedade do capital e a mais-valia pública fiscal do Estado.

Como afecção na prática política, a educação é o Outro simbólico da tradição como Outro real, como essência da superfície tela verbal da CPS-Estado:

Olivério. – Sabeis onde estais, senhor?

Orlando. – Oh! Perfeitamente, meu senhor! Estou em vosso jardim.

Olivério. – Sabeis diante de quem, senhor?

Orlando. – Sim, melhor do que aquele diante de cuja presença eu estou. Sei que sois meu irmão mais velho e se escutássemos o que há de honrado em vosso sangue, saberíeis quem seja eu. O costume das nações admite que sejais superior a mim, pelo fato de serdes o primogênito; mas a mesma tradição, não pode tirar os direitos vinculados ao meu sangue, mesmo que existissem vinte irmãos entre nós dois. Tenho em mim tanto do meu pai quanto de vós, se bem que, deva confessar, tendo vindo ao mundo antes de mim, deveríeis respeitar mais ainda sua nobreza”. (Shakespeare: 504).

Ora, a tradição monárquica do direito natural é o significante que emerge do real como tradição na civilização política das nações. A reflexão sobre a essência e superfície superficial cabe bem no campo político barroco brasileiro, onde a tradição real e a manifestação desse real fazem das aparências de semblância (Arendt: 31) um campo em superfície de identidade absoluto como ser e expressão da CPS-perversão. O que é essa gramática de sentido da família real? 

É conhecido o fato de que o rei criou uma nobreza artificial, por doação de títulos de nobreza. (Carvalho: 238). Gilberto Freyre diz:

“ E todos esses novos valores foram tornando-se as insígnias de mando de uma nova aristocracia: a dos sobrados. De uma nova nobreza: a dos doutores e bacharéis talvez mais do que a dos negociantes ou industriais. de uma nova casta: a de senhores de escravos e mesmo de terras, excessivamente sofisticados para tolerarem a vida rural na sua pureza”. (Freyre: 574).

O  grande Outro real brasileiro é a relação técnica e social de produção escravista do discurso político do senhor aristocrático de uma CPS- nobre artificial. Não emerge do real da tradição do sangue a aristocracia brasileira barroca. Daí, a discussão do barroco tropical ser tão necessária para nós. Afrânio Coutinho é o mais autorizado estudioso do barroco luso tropical. Infelizmente, ele ignorava o laço social entre o padre António Vieira e o barroco como o ser perverso ou essência da civilização política. (Coutinho:182-189). Assim, o caminho para a essência ou real da CPS-p encontra-se ainda por ser aberto no campo político da tela verbal narrativa do barroco brasileiro.  O ser barroco perverso revela a história da política e da sociedade do rico do regime de 1988.       

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Olivério tem uma gramática de sentido da corte que combina o agir estratégico com retórica de afeto do homem nobre. O discurso político estratégico [mentir, enganar, iludir, falsear a verdade etc.] faz pendant com a retórica estoica de um aristocrata de sentimentos e lógica de altos valores de moralidade pública - aristocrática. Ele conspira pela morte de Orlando – no combate deste com Carlos- e, ao mesmo tempo, faz declarações de um amor fraternal falso perverso inapagavelmente cínico/verdadeiro, real:

“Olivério. – Carlos, agradeço-te o afeto que me mostras e ainda verás que não sou ingrato. Eu mesmo já tivera notícia do propósito de meu irmão e furtivamente fiz o impossível para dissuadi-lo. Tudo inútil, pois está mais do que decidido. Posso dizer-te, Carlos... É o mais cabeçudo dos jovens de França: cheio de ambição, rival invejoso das boas qualidades dos outros, conspirador secreto e pérfido contra mim, seu próprio irmão. De sorte que age como quiseres. Tanto me faz que lhes quebres o pescoço quanto um dedo. E seria bom que estivesses prevenido, pois, se somente lhe infligires uma pequena afronta, ou se não se cobrir de glórias a tuas custas, ensaiará contra ti o veneno, fará com que caias em alguma traiçoeira cilada e não te abandonará até que haja tirado a vida de uma ou outra maneira; pois posso garantir-te, e quase com lágrimas estou falando, não existe no mundo, no momento presente, alguém tão jovem e tão vil. Falo dele fraternalmente, mas se tivera que fazer-lhe a anatomia para ti, tal como é, seria obrigado a ruborizar-me e a chorar. Tu empalidecerias e ficarias assombrado”. (Shakespeare: 506).              

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A família real luso-brasileira é uma pequena comunidade psíquica de significante perverso, real, verdadeiro. Os barões brasileiros constituem uma CPS- de falso perverso, prática política cínica, virtual em relação ao território familial real. Os barões são falso perverso de Lacan, o Joyce falso perverso do Seminário 23. O campo político de 1988 criou e recriou um falso perverso baronato territorial. Esse baronato controla a Cãmara de deputados de Brasília. Ele é falso perverso, pois, o normal desse baronato é não teatralizar sobre o controle da mais-valia pública do Orçamento nacional. A classe política falsa perversa tem como afecção auri sacra fames, afecção que orienta a prática política cínica/parlamentar. O parlamento é uma falsa CPS- do perverso. D Pedro II era conhecido como um rei res publicano, por sua gramática de sentido teatral barroca res publicano. A classe política- 1988 é um ersatz de D. Pedro II, mas como falso perverso.

O grande Outro real do capital escravista da monarquia é a comunidade psíquica de significante perverso, assim como a mercadoria é fetiche. A relação da profundidade escravista com a superfície da política consiste em ter uma família real não simpática ao escravismo. O baronato escravista era o reflexo do grande Outro real do capital escravista. O grande outro real do campo político-1988 é o capital subdesenvolvido feudal. Ele tem uma vontade de poder de gozo de deter o monopólio da mais-valia pública, fiscal. Tal ser perverso é o fundamento de uma ditadura feudal cínica do dominante subdesenvolvido, ou “sistema” subdesenvolvido.

O grande Outro real do Ocidente foi observado por Luciano Canfora:

“Voltemos ao Ocidente. A constatação realista que geralmente se faz – o fato de ser quase idêntica a política dos governos que se alternam e das facções parlamentares que se contrapõem nos países ocidentais – é a mais eficaz demonstração de predominância dos fatores ‘extra’ parlamentares (oligarquias econômicas) sobre os argumentos e sobre os protagonistas político-parlamentares. Podemos pensar na desestruturação do <Estado social>, considerada atualmente como um problema prioritário na Itália, tanto pela centro-direita quanto pela centro-esquerda – agora que, com o término da rivalidade ‘de sistema’ em relação ao Leste ‘socialista real’, o <Estado social> aparece como um peso obstrutivo e insustentável”. (Canfora: 61).

A Itália caminha para ter um ser perverso no campo político europeu com o grande Outro do capital subdesenvolvido? Ela não aparece mais na disputa por se tornar uma grande potência mundial na segunda metade do século 21. Os fascistas no poder são o reflexo do ser perverso do capital subdesenvolvido. Como a Alemanha parece caminhar para o campo político do ser perverso do capital subdesenvolvido, os nazistas se apresentam como alternativa ao poder político alemão,

O campo político europeu passa por uma transformação do moderno para o pós-moderno:

“No passado, as elites dominantes dedicavam-se a exercer seu domínio por meio de instituições representativas: em primeiro lugar, pelo parlamento. contemporaneamente à difusão do sufrágio universal, porém, verificaram-se dos fenômenos: de um lado, o nascimento dos partidos moderados de massa (importantes para a manutenção dos equilíbrios sociais mesmo na presença do tão longamente negado sufrágio universal); de outro, o deslocamento progressivo dos locais de decisão para fora dos parlamentos. Este segundo processo tem uma longa história, e, decerto, nas décadas mais próximas de nós, tem celebrado os seus triunfos. As decisões cruciais sobre a política econômica provêm dos organismos técnicos e do poder financeiro, enquanto os parlamentares debatem a ‘fecundação assistida...”

 “Naturalmente, a competência dos grandes banqueiros é indiscutível. É possível até que eles se imaginem como a moderna encarnação dos reis-filósofos platônicos. Permanece o fato de que a progressiva e irreversível translatio imperii rumo a sedes não eletivas, mas técnicas, é um fenômeno tão central que não pode ser ocultado por detrás da retórica da clara universalidade do mecanismo eletivo-representativo”. (Canfora: 71-72).                                              

Na Itália, no Brasil, nos EUA. A comunidade psíquica de significante do rico detém o poder político fático e jurídico, virtual e territorial no campo político dessa época pós-modernista. É possível governar sem a verdade da representação moderna, com uma soberania popular que é a expressão do ser perverso do grande Outro real do capital do rico? Governar apenas com o aparelho de Estado:

“O aparelho de Estado é coerção violenta, mas coerção regida por uma tela gramatical/legislação penal. Essa pode existir como poder – ou cesarista/tirânico, ou oligárquico, ou democrático”. (Bandeira da Silveira. 2024: 415).

O aparelho de Estado funciona também na distribuição da mais-valia publica para a comunidade psíquica de significante dominante ou dominado. O ser perverso do grande Outro real do capital subdesenvolvido parece se movimentar para criar um campo político de retórica democrática e realidade realmente existente entre um poder cesarista, em alguns países, e em outros um poder oligárquico, ou seja do capital do rico, unilateralmente. 

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Um pouco mais de cânfora:

“Por outro lado, continua o autor, defender que na atualidade as máfias representam, para todos os efeitos, um componente funcional do capitalismo, implica que as mesmas têm a capacidade de desempenhar um papel ‘de estruturas de intermediação ideal com o capitalismo em nome do Estado, de um modo não totalmente novo, embora certamente em grande parte reinventado’. Armao estuda longamente aquilo que ele denomina ‘as fases da integração mafiosa no sistema estatal’. Poderíamos acrescentar que sua investigação implica também uma certa reflexão no âmbito da ciência política , considerando-se que, sobretudo na última década, tem sido insistentemente repetido, e por várias fontes, que o capitalismo é o ingrediente básico e o próprio pressuposto da ‘democracia parlamentar’ moderna. Esse é um estudo pioneiro que nos ajuda a compreender por que o aparato estatal (não apenas na Itália) pode até conseguir derrotar o terrorismo, enquanto conduz, principalmente no plano do verbiage retórico-jornalístico, aquele que á comumente definida como ‘a luta contra a máfia’”. (Canfora: 83-84).

Canfora faz a interpretação da política mafiosa ainda pelos olhos das formas ideológicas do século XX. Como gramática de sentido, a máfia:

“Na democracia pós-moderna, um partido mafioso da meia-noite da superfície profunda do Ocidente se constitui como vontade política de poder desintegrar a democracia, se aproveitando do ocaso dessa forma de tela gramatical pós-moderna. A nova moderna democracia se choca com o poder pós-moderno mafioso. Daí surge a crise catastrófica entre pós-modernidade cesarista/tirânica e a nova modernidade democrática.”

[...]

“A crise catastrófica é aquela da foraclusão da estrutura de dominação do hegemonikon do campo político a curto prazo e da cultura política nacional/popular democrática a longo prazo; a crise se atualiza com a classe dominante mafiosa em aliança com classes médias mafiosas pós-modernas querendo governar somente pela tela gramatical do aparelho de Estado/legislação penal: dominação puro sangue”.

“Os fenômenos monstruosos abriram as comportas sujas do mundo para a existência de uma realidade heteróclita, que fascina os mass media e políticos”. (Bandeira da Silveira. 2024:  418).   

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Quem é o Pai? Quem é o Soberano? Quem é o Homem?

                                             Cena II: Relvado diante do palácio do duque.

                                                                 Entram Rosalinda e Célia

Célia. – Por favor, minha encantadora prima Rosalinda, mostra-te alegre.

Rosalinda. – Queria Célia, manifesto mais alegria do que sou possuidora. Queres que seja ainda mais alegre? A não ser que me ensines a esquecer um pai exilado, não deves ensinar-me como recordar qualquer prazer ordinário.

Célia. – De onde concluo que não me amas com toda a força com que te amo. Se meu tio, teu desterrado pai, tivesse banido teu tio, o duque meu pai, contanto que permanecesses sempre a meu lado, teria habituado meu coração a contemplar teu pai como meu. Tu farias o mesmo, se teu amor por mim fosse tão sincero e tão lealmente temperado quanto o meu por ti.

Rosalinda. – Está bem; esquecerei a condição de meu estado para regozijar-me no teu.

Célia. – Bem sabes que eu sou o único filho de meu pai, nem há possibilidade que ele venha a ter jamais outro; e assim, quando ele morrer, a herdeira serás tu, pois, o que ele tirou à força de teu pai, eu devolverei por afeição. Por minha honra, cumprirei minha palavra e, se algum dia quebrar este juramento, quero ser transformada em monstro. Portanto, minha doce Rosa, minha querida Rosa, mostra-te alegre”. (Shakespeare: 507).

O Eros platônico é uma afecção da comunidade psíquica de significante do perverso. Rosa e Célia são dessa CPSp aristocrática? Quem é o pai dessa CPLSp? O pai real ou o pai soberano; o pai que é o homem, já sabemos, que o Homem pertence a CPS do perverso, por sua essência. O campo político barroco do homem tem essência como o ser real perverso. O duplo corpo do Pai é o duplo corpo do rei, duplo corpo do soberano? A gramática de sentido do pai soberano existe na superfície clássica do campo político em uma relação de autonomia relativa com a superfície reprofundo do Grande Pai [grande Outro real} ou essência do barroco?

”Le concepte juridique des Deux Corps du Roi ne peut, pour d’autres raisons, être séparé de Shakespeare. Car si cette curieuse image, qui a disparu pour ainsi dire complètement de la pensé politique moderne, a encore un sens tré humane et réel aujourd’hui, c’est en grande partie dû à Shakespeare. C’est lui qui a rendu éternelle cette métaphore. Il en a fait non seulement le symbole, mais la substance et l’essence mêmes d’une de ses plus grandes pièces: La Tragédie du roi Ricardo II est la tragédie des Deux Corps du Roi”. (Kantorowicz:36-37).

A gramática de sentido do duplo corpo do rei é cópula do campo de produção de imagens com o Grande Outro, campo simbólico. (Lacan. S. 23: 117). O grande Outro real barroco emerge no campo político como soberano e pai simbólico. Assim, Célia expressa a gramática de sentido barroca do campo político real europeu.  

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Rosalinda é banida pelo tio, o rei:

“Duque Frederico. – Sim minha sobrinha, e se dentro de dez dias fordes encontrada a uma distância de vinte milhas de nossa corte, sereis condenada à morte”.

A filha do Duque, Célia, prima de Rosalinda, resolve fugir com a banida:

“Rosalinda. – Mas, para onde iremos?

Célia. – Vamos procurar meu tio na Floresta das Ardenas.

Rosalinda. – Aí! Que perigo para nós que somos donzelas, viajar para distância tão longe” A beleza provoca mais depressa os ladrões do que o ouro”. (Shakespeare: 514-515).

Rosalinda teme ser violada sexualmente por homens da estrada. A relação entre a jovem bela aristocrata e o homem do povo assaltante de estrada remete para a comunidade psíquica de significante-gênero. Portanto, as feministas tinham razões para fazer de “Como gostais” um teatro sobre o gênero:

“Célia. – Vestirei roupas humildes e pobres e escurecerei meu rosto com uma espécie de pintura escura; faze tu o outro tanto e poderemos andar ao abrigo de quaisquer assaltantes.

 Rosalinda. – Não seria melhor, sendo eu de altura maior do que a comum, que me vestisse exatamente como um homem? Com um flamante cutelo preso em minha coxa, uma partazana na mão, sejam quais forem os temores femininos que se escondam em meu coração, adotaremos um aspecto fanfarrão e marcial, como muitos outros covardes com ar viril que se impõem pela aparência”.

Essência e aparência são as duas superfícies do campo político monárquico clássico/barroco da filosofia barroca shakespeareana. A essência perversa e a aparência de homem normal, de um fanfarrão marcial. Um bufão patife?

Célia. – E como te chamarei quando fores homem?

Rosalinda. – Não tenho pior nome do que o do próprio pajem de Júpiter e, portanto, procura chamar-me de Ganimedes. Mas, que nome usarás?

Célia. – Um nome relacionado com minha situação. Já não me chamo Célia, porém, Aliena. {Aliena de alien-nada, de estrangeiro, alheia, exilada].

Rosalinda. – Mas vejamos, prima: se procurássemos levar conosco disfarçadamente o bufão da corte e teu pai? Não seria uma distração para nossa viagem?

Célia. – Ele me seguiria por todo o mundo. deixa-me o cuidado de seduzi-lo sozinha, partamos, apanhando nossas joias e nosso dinheiro. Determinaremos o momento mais propício e o caminho mais seguro, para que possamos escapar das  buscas que serão feitas depois de minha evasão. E, agora, vamos embora contentes para a liberdade e não para o exílio! (Saem). (Shakespeare: 515-516).         

O teatro de sedução de  Rosalinda se apresentando como homem na estrada e na Floresta é a dramaturgia do perverso, pois, Célia seduz o bobo da corte. Célia põe o desejo dela da ética da liberdade de seu verdadeiro desejo perverso com Ganimedes contra o desejo do rei de gozar com o corpo de todos os súditos. Desejo perverso que define o homem soberano. Sem a CPS-p não haveria teatro na Europa.

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Há razões para refletir sobre a relação entre poder real e sedução no campo político das gramáticas. Há a tela gramatical narrativa moderna do poder real e a tela de gosto pós-moderna da sedução:

“O feminino não é justamente nem ordem da equivalência, nem ordem do valor: é, portanto, insolúvel no poder. Não é nem mesmo subversivo, é reversível. O poder, ao contrário, é solúvel na reversibilidade do feminino. Se então não é possível decidir com <fatos> quem, masculino ou feminino, dominou o outro ao longo dos séculos (ainda uma vez, a tese da opressão do feminino repousa sobre um mito falocrático caricatural), é claro que também em matéria de sexualidade a forma reversível prevalece sobre a forma linear. A forma excluída prevalece em segredo sobre a forma dominante. A forma <sedutiva> prevalece sobre a forma produtiva”. (Baudrillard. 1991: 23).

Observem que o feminino e o masculino atualizam gramáticas de sentido da essência e aparências de semblância das formas lógicas de governo: a primeira territorial e a segunda virtual:

“àquilo que faz com que o mundo seja mundo, a uma gramática imperiosa do ser, a núcleos de sentido indecomponíveis, redes de propriedades inseparáveis. As essências são este sentido intrínseco, estas necessidades de princípio, seja qual for a realidade em que se misturem e se confundem (sem que, aliás, suas implicações deixem de fazer-se valer), único ser legítimo ou autêntico que tem a pretensão e direito a ser, e que é afirmativo por si próprio, já que é o sistema de tudo o que é possível para o olhar de um espectador puro, traçado ou desenho daquilo que, em todos os níveis, é alguma coisa – alguma coisa em geral, ou alguma coisa material, ou alguma coisa espiritual , ou alguma coisa viva”. (Merleau-Ponty: 107-108).

Há gramáticas de sentido ou do poder real ou da sedução como dos aspectos da lógica das formas dialéticas do campo político de telas moderna e pós-moderna:

“A lei da sedução é primeiro a de uma troca ritual ininterrupta, de um lance maior onde os jogos nunca são feitos, de quem seduz e de quem é seduzido e, em virtude disso, a linha divisória que definiria a vitória de um e a derrota de outro é ilegível – e não há outro limite para esse desafio ao outro de ser ainda mais seduzido ou a amar mais do que eu amo senão a morte. Ao passo que o sexual tem um fim próximo e banal: o gozo, forma imediata da finalização do desejo”. (Baudrillard. 1991: 29).

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O problema consiste em definir o perverso verdadeiro e o falso perverso?

Baudrillard:

“Que tudo seja produzido, que tudo se leia, que tudo advenha ao real, ao visível e ao algarismo da eficácia, que tudo seja transcrito em relações de força, em sistemas de conceitos ou em energia computável, que tudo seja dito, acumulado, arrolado, recenseado; assim é o sexo no pornô, mas esse é geralmente o empreendimento de toda a nossa cultura, cuja obscenidade é a condição natural; cultura do mostrador, da demonstração, da monstruosidade”. (Baudrillard. 1991: 43-44).

Na filosofia lacaniana, o discurso perverso da produção é o discurso da burocracia de Marx, forma lógica de governo ditadura marxista:

“É singular ver uma doutrina tal como a de Marx, que instaurou sua articulação sobre a função da luta, da luta de classes, não impediu que dela nascesse aquilo que agora é justamente o problema que se apresenta a todos, a saber, a manutenção de um discurso do senhor”.

“O que ocupa ali o lugar que provisoriamente chamaremos de dominante é isto, S2, que especifica por ser, não saber-de-tudo, não chegamos aí, mas tudo saber. Entendam o que se afirma por não ser nada mais do que saber, e que se chama, na linguagem corrente, burocracia” (Lacan. S.17: 33-34).

Lacan fala da gramática de sentido do discurso político da produção de Marx, gramática que acaba por ser aquela da tirania do século XX: URSS (Strauss:38). A ditadura da URSS é um ser verdadeiramente perverso como seria o pornô de Baudrillard?

Sloterdjik:

“O meio ambiente em que se desenvolveu o cinismo da nova época se encontra tanto na cultura urbana como na esfera da corte. Ambas são a matriz de um realismo malvado do qual os homens aprendem o mordaz sorriso de uma imoralidade aberta. Tanto em um caso como em outro, em cabeças cosmopolitas e inteligentes se vai acumulando um saber mundano que se move elegantemente entre fatos nus e fachadas convencionais. Desde o mais baixo, isto é, desde a inteligência urbana e desclassificada, e desde o mais alto, desde os cumes da consciência política, chegam sinais ao pensamento formal, sinais que dão testemunho de uma radical ironização da ética e das conveniências sociais; algo assim como se as leis gerais só existissem para os tontos, enquanto que os lábios da serpente se esboça esse sorriso         fatalmente inteligente. Dito de uma maneira mais exata, são os poderosos os que riem, enquanto que os plebeus quínicos deixam ouvir uma gargalhada satírica. No amplo espaço de saber cínico os extremos se tocam:Eulenspiegel se encontra com Richelieu, Maquiavel com o sobrinho de Rameau, os ruidosos condottieri do Renascimento com os elegantes cínicos do rococó; empresários sem escrúpulos com pasotas desiludionados, escaldados estrategas do sistema com objetores sem ideiais”. (Sloterdijk: 32-33).

O filosofo alemão fala da CPS-do cínico como falso perverso em um contraponto ao perverso verdadeiro do mundo como teatro da gramática de sentido - dos fenômenos políticos como aparências de semblância? Ora!  De seu texto é possível deduzir que a lógica é aquela do campo político clássico/barroco do saber das CPSs? A lógica pode ser da CPS: neurótico, perverso, psicótico?        

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O Segundo Ato fala da relação entre paisagem e corte:

“Duque. – Então, meus camaradas e irmãos de exílio, o hábito antigo não torna esta vida mais agradável do que a pompa inútil? Estes bosques não se encontram mais livres de perigo do que a invejosa corte? [...]. E assim, nossa vida atual isenta da perseguição das multidões, acha oradores nas arvores, livros nos arroios murmurejantes, sermões nas pedras e o bem em todas as coisas. Não quereis trocá-la? (Shakespeare: 516).

É como se a paisagem possuísse uma gramática de sentido distante da gramática de sentido teatral, da biblioteca real, da sociedade de corte:

 “É Dante que nos dá as primeiras provas da impressão profunda que pode causar a vista de uma bela paisagem, de uma paisagem grandiosa. Não pinta apenas, de maneira viva e nalguns traços, o despertar da natureza na manhã com a luz trémula que cintila ao longe sobre o mar docemente agitado, a tempestade na floresta etc., mas trepa também às altas montanhas com o único objetivo de disputar uma bela vista e abarcar um horizonte vasto”. (Burckhardt: 229).

A Floresta introduz Jacques:

“Duque. – E se fôssemos caçar? Entretanto, fico penalizado vendo esses inocentes mosqueados, burgueses nativos desta cidade selvagem, ficarem ensanguentados na terra que lhes pertence, vítimas de nossas flexas que lhes penetram nas ancas arredondadas.

Primeiro nobre. – Em verdade, meu senhor, isso também aflige o melancólico Jacques e jura que, por esta circunstância, sois mais usurpador do que vosso irmão, que vos desterrou”.

O duque tirano exilado é o representante da CPS-da corte do perverso na paisagem, Jacques é o melancólico, possui essa afecção da ira contra a tirania perversa. Ele que tem uma concepção política de que o mundo é um teatro, um mundo criado pelo homem perverso verdadeiro:

“Primeiro nobre. [...]. Alguns instantes depois, um rebanho descuidado e farto de pastagem, soltou perto dele, sem mesmo parar para saudá-lo. ‘Sim’, disse Jacques, ‘afastai-vos cidadãos gordos e bem nutridos; é assim que faz o mundo. Por que havíeis de perder tempo em olhar para este pobre arruinado sem forças’? Desse modo, prosseguiu perfurando com suas invectivas os costumes do campo, da vila, da corte e ainda da própria vida que levamos, jurando que somos vulgares usurpadores, tiranos e o que é pior, que nós trouxemos o terror e a morte para o seio dos animais no próprio lugar que a Natureza lhes designou para moradia”. (Shakespeare: 517).

Um tambor ecológico do bobo melancólico Jacques ecoa na filosofia shakespeareana?  

 

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