sábado, 26 de outubro de 2024

história, propriedade, campo, real, perversão

José Paulo 

 

Marx e Engels partiram da crítica do pressuposto saber europeu. Este tinha no Espírito hegeliano [como razão que governa o mundo] o fenômeno dominante da gramática de sentido da civilização universal racional.  A filosofia da história de Hegel era hegemônica na cultura europeia? Para Marx e Engels, ela era o aparelho de hegemonia do Estado moderno, e, portanto, o ponto de partida do campo de conhecimento da história:

“O único pensamento que a filosofia aporta é a contemplação da história; é a simples ideia de que a razão governa o mundo, e que, portanto, a história universal é também um processo racional”. (Hegel.1995: 17).

A foraclusão do aparelho de hegemonia de Estado hegeliano é uma realidade do livro “A ideologia alemã”, que só foi publicado no século XX. Aí Marx e Engels criam e recriam um outro conceito de História moderna:

“A sociedade civil abarca todo o intercâmbio material dos indivíduos em uma determinada fase de desenvolvimento das relações técnicas de produção (forças produtivas). Abarca toda a vida comercial e industrial de uma fase e, neste sentido, transcende os limites do Estado e da nação, se bem, por outro lado, tem necessariamente que fazer-se valer ao exterior como nacionalidade e, vista face ao interior, como Estado. O termo sociedade civil apareceu no século XVIII, quando já as relações de propriedade se haviam livrado dos marcos da comunidade antiga e medieval. A sociedade civil enquanto tal só se desenvolve com a burguesia; sem embargo, a organização social que se desenvolve diretamente baseando-se na produção e no intercambio, e que forma em todas as épocas a base do Estado e de toda outra suprstrutura idealista, se tem designado sempre, invariavelmente, com o mesmo nome”. (Marx e Engels. 1974: 38).

Antes de Marx e Engels, a história é aquela das superestruturas idealistas:

“este mínimo pressuporá sempre, necessariamente, a atividade da produção. Portanto, o primeiro em toda concepção histórica, é observar este fato fundamental em toda sua significação e em todo seu alcance e pôr, este fato, no lugar que o corresponde. Coisa que os alemães, como se sabe, não o fizeram, razão pelo qual a história jamais tem possuído na Alemanha um base territorial nem, por conseguinte, tem existido nunca aqui um historiador. Os franceses e os ingleses, ainda quando conceberam de um modo extraordinariamente unilateral o ponto de bifurcação deste fato com a chamada história, antes de tudo enquanto estavam prisioneiros da ideologia política, fizeram, sem embargo, os primeiros intentos encaminhados a dar à historiografia uma base materialista, ao escrever as primeiras histórias da sociedade civil, do comércio e da indústria”. (Marx e Engels. 1974: 28).

Os autores contrapõem a história das formas ideológicas [história idealista] à história das formas econômicas, isto é, história materialista. De um lado, a gramática de sentido idealista da história e, de outro lado, a gramática de sentido materialista da história. Lenin diz que a história é a luta do partido idealista com o partido materialista em filosofia. (Lenin: 266-267). Marx e Engels trazem esta luta para o campo de historiografia grega da Antiguidade. (Tucídides; 1986).

                                                                     2

A história do Estado é história idealista da ideologia; porém, ela pode ser a história materialista do Espírito, se este é uma tela gramatical da língua alemã:

“L’ intitule géné ral Constituition recouvre une théorie de l’Etat. Elle commence par poser que l’Etat est pour ainsi dire l1esprit de la loi”. (Tamaniaux: 57).        

Discípulo de Hegel, Marx cria o conceito de tela gramatical narrativa da sociedade, do capital da modernidade europeia. Em Hegel, o Estado é grande Outro simbólico, o Deus mortal. (Hobbes: 109-110). O capital é o grande Outro real da formação social nacional:

“C’est ici que s’entrevoit, dans le tissu même de la trame lourde, la lumière de la toile plus légére [...]. Si en effet le leucteur allemand  devait hausser les épaules de façon pharisaïque à propos de l’état du travailleur anglais, de la terre ou de l’industrie, alors, on l’a vu, <il  me faut lui crier: De te fabula narratur! [ Sur toi c’est ici rapporté!]>. (Faye: 150).

A transição do antigo e do feudal é aquela da gramática de sentido da proprietária comunitária, propriedade pública, para a propriedade privada do capital capitalista: De te fabula narratur! A tela gramatical do capital capitalista exige uma outra gramática de sentido comunitária. Esta é a gramática de sentido da comunidade psíquica de significante perversão.  O professor Eugène Enriquez fala do capital como CPS perversa, na medida que a mercadoria funciona como fetiche lógico e não como sintoma de um discurso do capitalista. (Enriquez:260).

Com grande Outro do real, das relações técnica de produção e sociedade de classes sociais, o capital é o real como essência da comunidade psíquica de significante do perverso da história da sociedade civil, da história da gramática de sentido da propriedade privada [do capital] que foraclui a propriedade comunitária, isto é,   o Estado como comunidade ilusória, comunidade dos jogos de caligrafia ideológicos - como protagonista da história da civilização universal.    

                                                                           3

O capital capitalista é o real que transforma o Estado lacaniano (Bandeira da Silveira. 2022a:capts 12, 13) em Estado burguês ou Estado liberal mínimo. Estado como aparelho de Estado e poder de Estado (Balibar: 94) do dominante, do capital europeu. Este Estado fiscal é uma ditadura do capital no que diz respeito ao monopólio da mais-valia pública, dinheiro fiscal, pelo próprio liberalismo do capital. Rigorosamente, não há democracia europeia no século XIX, pois, o dominado não participa da distribuição da mais-valia fiscal da economia pública. O Estado liberal não é um Estado democrático, do ângulo da democracia econômica. A “democracia liberal” é um fenômeno monstruoso, um xifópago, pois serve à ditadura econômica do capital liberal. O Estado liberal aparece como uma comunidade psíquica de significante perverso, por ser o Estado ideológico de propriedade do grande Outro perverso, real. O Estado liberal é o comitê do capital capitalista. Tal gramática de sentido é, também, a cópula do imaginário com o simbólico. (Lacan. S. 23: 117 ). E o fato Estado liberal?

Lacan:

‘O que é um fato? É justamente ele quem o faz. Só há fato pelo fato de o falasser o dizer. Não há outros fatos senão aqueles que o falasser reconhece como tais dizendo-os. Só há fato pelo artifício. E é um fato que ele mente, isto é, que ele instaura falsos fatos e os reconhce , porque tem mentalidade, isto é, amor-próprio. (Lacan. S. 23: 63-64).

No mundo do capital capitalista, O falasser é a tela verbal narrativa – do campo político - que diz que o Estado liberal é uma democracia. Essa mentira alimenta o campo de ideologias, principalmente, dos países subdesenvolvidos. O Estado lacaniano é a materialidade do mais-de-gozar, Mehrlust (Lacan. S. 16: 30), que na ciência política materialista e filosofia lacaniana do século XXI se transforma em mais-valia publica, dinheiro fiscal da economia pública.

                                                                4

O Estado liberal inglês se tornou o gramático proprietário econômico da mais-valia fiscal. A história desse efeito é a constituição de uma ditadura materialista do capital inglês. A gramática de sentido  do materialismo do capital é o partido materialista da sociedade civil burguesa. Um hegemonikon (Elorduy: 26) ou eu político estoico do capital é a estrutura de dominação liberal/representativa no campo da civilização universal europeia. A gramática de sentido do capital é civilização inglesa ou barbárie:

“D’autre part, il y avait le Matérialisme, ce produit essentiellement anglais, engouement des primaires de la première moitié du XIX siècle, de la philosophie du journalisme liberal, des reunions de masse et des écrivains marxistes et socio-étiques qi se prenaient pour des penseus et des oracles.”

“Son ideal étai L’UTILITÉ et rien que l’utilité. Tout ce qui était utile à <humanité> constituait un legitime él´rement de l aculture, ÉTAIT, en fait, lA culture. Le reste était luxe, superstition ou barbare”. (Spengler: 27).

                                                               5

Hannah Arendt usa a noção de campo político. (Arendt. 1988: 72). Com Marx, Engels e Hegel há o campo da história da civilização política universal. Koyré fala do conceito de campo:

Rappelons enfin que l’entité fondamentale de la Science contemporaine, le <champ>, est quelque chose qui possède lieu, extension, pénétrabilit´et insécavbilité...”. (Koyré: 165).

O conceito materialista de campo da história é composto por tela gramatical narrativa, tela ideológica, tela técnica, aparelho de Estado, mais-valia econômica e mais-valia pública ou mais-de-gozar.

Hegel fala da tela plástica da vida de Sócrates como obra de arte. (Hegel. 1955:47). O livro “O 18 do Brumário de Luís Bonaparte” aplica no campo histórico francês a ideia de Hegel de tela plástica e de tela de juízo:

“Pois bem, nos sofistas, o indivíduo mesmo era sua própria e última satisfação. Ao cocá-los todo em tela de juízo, o ponto fixo, para eles, era este: “O que me traço como fim é meu prazer, mina vaidade, minha fama, minha honra, minha subjetividade específica”. (Hegel. 1955: 27).

A tela gramatical do general intellect encontra-se em Habermas:

“Nos estudos preliminares à “Crítica da economia política” encontra-se uma versão, segundo a qual a história da espéci humana está comprometida com uma conversão automática de ciência natural e relação técnica de produção em uma autoconsciência do sujeito social (general intellect) que controla o processo da vida material”. (Habermas. 1982: 64).

Koyré fala da tela gramatical metafísica:

“Ainsi, sans l’action constante de <principes actifs>, c’est-à-dire, en dernière Analyse, sans l’action constante dans le monde du Dieu Omnhiprésent le monde ne saurait demeurer dans l’être. Aussi Newton poursuit [...]  et c’est l’action de ces príncipes ou, plus exactement, l’action de Dieu par le Moyen de ces príncipes, qui donne au monde son ordre et as structure, lesquels nous permettent de nous apercevoir que ce monde est le résuktat d’un choix, et non du hasard ou de la necessite. C’est ainsi que la philosophie naturelle – du moins la bonne, c’est-à-dire celle de Newton et non celle de Descarte – se transcende et conduit á Dieu”. (Koyré: 261-262).

O campo histórico/político tem na forma de governo presidencialista sua tela verbal narrativa metafísica:

“A Assembleia Nacional eleita está em relação metafísica com a nação ao passo que o presidente eleito está em relação pessoal com ela. A Assembleia Nacional exibe realmente, em seus representantes individuais, os múltiplos aspectos do espírito nacional, enquanto que no presidente esse espírito nacional encontra a sua encarnação. Em comparação com a Assembleia, ele possui uma espécie de direito divino; é o presidente pela graça do povo”. (Marx. 1974: 346).

                                                                                 6

Koyré fala do grande Outro da filosofia de Newton, mais uma vez:

“ – que la philosophie naturelle, ou tout au moins la sienne, conduit5 nécessairement non pas à nier, mais à afirmer l’existence de Dieu et son action dans le monde. [...]. D’autre parte, il afirme, bien entendu, que la structure efetive du monde (c’est-à-dire du système solar) est le résultat d’une choix conscient et inteligente”. (Koyré: 268-269).

O enunciado de Newton é uma concepção política de mundo deísta? Deslocando a proposição para o campo histórico/político, o campo é um efeito de uma tela metafísica inteligente e com consciência. Dou u exemplo brasileiro.

O campo político brasileiro liberal/pombalino do Brasil Independente é um efeito da tela metafísica narrativa que se atualiza na biografia plástica de D Pedro I. O campo bonapartista de Napoleão III é um efeito da tela do presidencialismo metafísico do0 grande Outro falso perverso que se atualiza em Luís Bonaparte:

“Victor Hugo limita-se à invectiva mordaz e sutil contra o responsável pelo golpe de Estado. O acontecimento propriamente dito aparece em sua obra como um raio caído de um céu azul. Vê nele apenas o ato de força de um indivíduo. Não percebe que engrandece, ao invés de diminuir, esse indivíduo, atribuindo-lhe um poder pessoal de3 iniciativa sem paralelo na história do mundo. Proudhon, por sua vez, procura representar o golpe de Estado como o resultado como o resultado de um desenvolvimento histórico anterior. Inadvertidamente, porém, sua construção histórica do golpe de Estado transforma-se em uma apologia histórica do seu autor. Cai, assim, no erro dos nossos historiadores pretensamente objetivos. Eu, ao contrário, demonstro como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que possibilitaram a uma personagem medíocre e grotesca desempenhar um papel de herói” . (Marx. 1974: 331).

O bonapartismo é o perverso verdadeiro, pois, faz do campo político um teatro movido pelo poder de um texto real e autêntico, que os franceses gramaticalizaram como tragédia do Segundo Império. Rosa Luxemburgo fala da relação do perverso Napoleão III com o grande Outro perverso do real, o capital francês liberal/mercantilista se constrói contra própria burguesia:

“Na França, os tratados que inauguraram o livre-cambismo pelas cláusulas preferenciais foram concluídos por Napoleão III sem a compacta maioria protecionista do parlamento, formada por industriais e agrários; até mesmo contra ela. O caminho dos tratados de comércio foi empreendido pelo Go9verno do Segundo Império como um recurso, e foi aceito pela Inglaterra, para ignorar a oposição regulamentar francesa e impor internacionalmente o livre-cambismo à revelia da corporação legislativa. O primeiro tratado básico entre França e Inglaterra foi uma grande surpresa para a opinião pública francesa. O antigo sistema protecionista (mercantilista) da França foi modificado, de 1853 a 1862, por 32 decretos imperiais, que logo tiveram, em 1863, uma confirmação negligente e <legislativa>. (Rosa: 394).

                                                                           9

A filosofia do A ‘República”, parte da gramática de sentido da realidade da forma de governo. A filosofia de Lacan parte da definição de real e realidade em relação à lógica de sentido. (Deleuze; 1974):

“Não estou certo de que a distinção do real em relação à realidade se confunda com o valor próprio que dou ao termo real. Sendo o real desprovido de sentido, não estou certo de que o sentido desse real não poderia se esclarecer ao ser tomado por nada menos que um sinthoma”. (Lacan. S. 23: 131).

Onde se localiza o sinthoma?:

Penso que não se pode conceber o psicanalista de outra forma senão como um sinthoma. Não é a psicanálise que é um sinthoma, mas o psicanalista”. (Lacan. S. 23: 131).

Então, por analogia podemos dizer que o real do campo político tem o político seu sinthoma. O real emerge na realidade política através do político como sinthoma. O real não é o inconsciente político (Habermas; 1992) ou um inconsciente particular de um político. Ele é o sinthoma como gramática de sentido do político, isto é, como sinthoma do real:

“Se cada ato de fala é um golpe de força de um inconsciente particular, está completamente claro que, como temos na teoria sobre isso, cada ato de fala pode esperar ser um dizer. E o dizer chega a isso sobre o qual há teoria, a teoria que é o suporte de toda espécie de revolução, a saber, uma teoria da contradição”. (Lacan. S. 23: 132).

O ato de falar ou dizer como golpe de força na conjuntura (Poulantzas:90) é a gramática de sentido dialético da revolução social. O problema consiste em saber de qual comunidade psíquica de significante é o ato de fala dialético. Como golpe de força revolucionário, o ato de fala ou dizer o fato revolução de Lenin se origina no inconsciente particular de Lenin vinculado à prática política do partido bolchevique. Trata-se de uma CPS- do verdadeiro perverso ou do falso perverso como Joyce? (Lacan. S. 23: 147).

O falso perverso não tem aparências de semblância, ele não faz da política uma gramática de sentido do mundo teatral, um mundo do homem como essência perversa e superfície dos fenômenos, do aparecer em autonomia relativa da essência. Como a CPS vive na superfície ele pode ser o efeito da essência perversa e ser um falso perverso como fenômeno político, como indiquei acima:

“Desde Heráclito, passando por Hegel, Marx e Lenin, e, em nossos dias, por Wittgenstein, tem havido filósofos admitindo que a contradição pode ser aceita em teorias e contextos racionais que expressam conhecimentos legítimos”. (Newton da Costa: 170).

O campo político conjuntural é um fenômeno paraconsistente. O inconsciente particular de Lenin era uma práxis individual. Contemporâneo de Lacan, Sartre vê na práxis individual o reino do serial em subsunção na práxis do soberano, o partido ou o Estado da URSS:

“Il semblerait donc, a priori, que la práxis souveraine forge l’unité au niveau même des dispersions sérielles et contre elles”. (Sartre: 134).

O ato de fala dialético de um golpe de força do inconsciente de Lenin [que diz que a revolução socialista é um fato da conjuntura]  necessita passar do real como sintoma da filosofia leninista para a gramática de sentido da realidade do partido/massa - no campo político da democracia russa socialdemocrata. Sem o golpe de força do dizer de Lenin a revolução russa aconteceria naquela conjuntura socialdemocrata?    

                                                                        10

Na forma de governo democracia representativa, o político é o sintoma logico formal do real:

“que tout chose doit nécessairement être affirmée ou niée, et qu’il est impossible qu’une chose soit et ne soit pas, en même temps, ainsi que toutes autres premisses de ce genre”. (Aristote: 129).

O político instaura uma comunidade psíquica de significante-homem civilizado em um contraponto ao escravo e o bárbaro:

“o homem é o único vivente <que possui logos>, esse meio de comunicação racional [...]. (Samaranch:192).

Para o brasileiro de hoje, o enunciado acima aparece como um absurdo devido a imagem textualizada construída do político pela tela jornalística. Todavia, a estrutura de poder político constitucional do regime de 1988, requer que o comportamento do presidente da Cãmara e do Senado, e, sobretudo, do presidente da República e juízes do STF tenham uma gramática de sentido lógico/formal, isto é, uma práxis individual que não seja determinada pelo princípio da não-identidade. Para o brasileiro parece absurdo falar da práxis, especialmente, do presidente da Câmara, como regulada pelo contrário da lógica do princípio da não-identidade. 

O presidente da Cãmara é claramente um político perverso na relação dele com o capital. Ele é a essência perversa do capital na grande política parlamentar. Na pequena política, ele é o homem aristotélico civilizado na relação com seus pares da Câmara. Assim, tal fato abre as comportas para a reflexão da forma democrática civilizada em um contraponto com a forma democrática bárbara:

“A polis é então autárquica no sentido de ser auto-suficiente: é a menor comunidade que basta para prover a todas as necessidades de seus membros. Toda necessidade sendo devida a uma carência, e a finalidade (a própria essência) de toda comunidade sendo a de preencher uma carência – pois não tem qualquer razão, com efeito, para se associar a outrem alguém que se baste a si mesmo – a comunidade perfeita é aquela que basta para preencher toas as carências: assim é a polis. A cidade é, portanto o fim, o acabamento, o termo do desenvolvimento ‘histórico’ que conduz os homens a se associar em comunidades”. (Wolff:69).

O real do capital capitalista é a desintegração da gramática de sentido comunitária. A gramática de sentido lógico comunitário é a do Bem, desse Bem a partir do qual advém e existem todos os seres (Aristote: 125) da prática política da forma de governo democrática do homem lógico/formal.

    Em contraposição à democracia civilizada temos a democracia bárbara da gramática de sentido particular de certos sofistas:

“O alcance da tese de Aristóteles é duplo: por um lado, a cidade visa o fim mais alto para o homem – enesse sentido, a tese se dirige contra aqueles, entre os sofistas, que pensam que a comunidade política não passa de um pis aller, uma simples garantia de sobrevivência individual”. (Wolff: 45).

A forma de governo democrática pode ser civilizada de gramática de sentido do homem lógico universal ou pode ser barbara da gramática de sentido particular da CPS-perverso:

“Mas já observamos o emprego propriamente aristotélico de ‘democracia’ para designar uma das duas espécies de regime popular, a espécie pervertida, por oposição à espécie ‘normal’, o regime constitucional. A ‘democracia’ ´então um regime no qual, de fato, ‘uma maioria de pessoas livres, mas pobres, são os donos do poder”. (Wolff: 132).

A democracia pode ser o efeito da CPS barbara do perverso ou da CPS- civilizado, do homem com logos. Do homem pobre civilizado!     

                                                                                11

A crítica da modernidade política tem a tese de que só existe democracia política combinada com democracia econômica do Estado lacaniano da mais-valia fiscal ou mais-de-gozar. A revolução permanente (Texier: 184) é o sintoma logico paraconsistente da filosofia de Marx e Engels, sinthoma revelado no conceito de democracia do general intellect (Bandeira da Silveira. 2022. Cap. 8, parte 5), como observou Habermas.

Ao real perverso do capital foraclusão da revolução permanente europeia corresponde o surgimento da forma de governo bonapartista. Forma de governo perversa, pois, teatraliza ser o Império de Napoleão III. Sua gramática de sentido perversa foi reconhecida e legitimada pelos franceses do alto e de baixo. Marx teria que <explicar> como o o presidencialismo falso perverso criou e recriou uma tela perversa verdadeira, isto é, o bonapartismo. Ora, ele é o efeito do sintoma do capital perverso francês, contra a burguesia francesa. Marx descobre e inventa a comunidade psíquica de significante do juízo de gosto no campo político europeu. O teatro imperial de Napoleão III é o teatro do0 barroco/iluminista perverso:

“A vida do homem consiste numa milícia contra a malícia do homem. A astúcia luta com estratégias de intenção. Nunca faz o que indica. Aponta para enganar, golpeia indiferente no ar e desfere o golpe, atuando sobre a realidade imprevista com dissimulação atenta. A fim de conquistar a atenção e a confiança dos outros, deixa transparecer um intento. Logo em seguida, porém, muda de posição e vence pela surpresa. A inteligência perspicaz previne-se da astúcia observando-a detidamente, espreita-a com cuidado, entende o oposto do que a astúcia quis que compreendesse e percebe de imediato as falsas intenções. A inteligência ignora a primeira intenção, aguardando a segunda, e até a terceira. A simulação cresce mais ainda ao ver seu truque descoberto e tenta enganar contando a verdade. Muda de jogo, engana com a aparente falta de malícia. Sua astúcia se baseia na maior franqueza. Mas a observação se adianta, discernindo através de tudo isso percebendo as sombras envoltas em luz. Decifra a intenção, que mais parece singela. Assim é a luta da astúcia de Pitão contra a franqueza dos penetrantes raios de Apolo”. (Gracián: 29).

O campo político barroco/iluminista é, ao mesmo tempo, opaco e translucido. Como a França fez desse campo um efeito da gramática de sentido lógica de uma CPS-de gosto verdadeiramente perverso?      

                                                                               12

O bonapartismo de Marx é a tela de juízo fazendo9 pendant com a tela gramatical lógico/política; é gramática de sentido da realidade na análise concreta de uma situação concreta”. (Lenin. Vol. 3: 20). Gramsci fez do texto de Marx o ponto de partida para a filosofia do marxismo ocidental. Assim, o bonapartismo francês sé um fenômeno nacional [associado aos fe3nômenos do cesarismo da antiguidade e da pré-modernidade política:

“Cesare, Napoleone, Napoleonqe III, Cromwell, ecc, Compilare un catagolo degli eventi storice che hanno culminato in uma grande personalità <heroica>. (Gramsci. 1977: 1619).

A gramática de sentido lógico/ideológica do cesarismo da civilização política diz:

“Pode-se afirmar que o cesarismo expressa uma situação na qual as forças em luta se equilibram de modo catastrófico, isto é, equilibram-se de tal forma que a cont5inuação da luta só pode com a destruição recíproca”. (Gramsci. 2014: 77).

O campo democrático representativo é o palco da crise catastrófica:

Mas o cesarismo, embora expresse sempre a solução ‘arbitral’, confiada a uma grande personalidade, de uma situação histórico-político caracterizada por um equilíbrio de perspecti8va catastrófica, não tem sempre o mesmo sentido9 histórico. [...]. O cesarismo é progressista quando sua intervenção ajuda a força progressista a triunfar, ainda que com certos compromissos e acomodações que limitam a vitória.; é regressivo quando sua intervenção ajuda a força regressiva a triunfar, também neste caso com certos compromissos e limitações, os quais, no entanto, têm um valor , um alcance e um sentido diversos daqueles do caso anterior. César e Napoleão I são exemplos de cesarismo progressista. Napoleão III e Bismark, de cesarismo regressivo. Trata-se de ver, na dialética revolução-restauração, é o elemento revolução ou o elemento restauração que predomina, já que é certo que, no movimento histórico, jamais se volta atras e não existem restaurações in totó”. (Gramsci. 2014: 77).

O cesarismo moderno se diferencia do cesarismo até aqui descrito por Gramsci, pois pode existir uma solução cesarista mesmo sem um César, sem uma grande personalidade histórica. No Brasil da Constituição de 1988, com o golpe de Estado contra a lulista Dilma Rousseff se iniciou um período heroico no campo político nacional? Bolsonaro é uma paródia de grande personalidade heroica. Ele aparecia como uma força regressiva do liberal/mercantilismo do governo do general Castelo Branco e Roberto Campos na versão do general Silvio Frota, um fascista declarado. Como força regressiva ele se preocupava em desintegrar o Estado territorial/nacional de 1988. Sua derrota para Lula em 2022, alterou a situação política.

Lula se apresentou na eleição como uma força progressiva em ruptura com o liberalismo puro de Bolsonaro e Paulo Guedes.   Ora, o cesarismo moderno:

“Todo governo de coalizão é um grau de cesarismo, que pode ou não se desenvolver até graus mais significativos (naturalmente, a opinião vulgar é a e que, ao contrário, governos de coalizão constituem o mais ‘sólido’ baluarte’ contra o cesarismo). [...]. bem como as transformações que se verificam na organização da polícia em sentido amplo, isto é, não só do serviço estatal destinado à repressão da criminalidade, mas também do conjunt5o das forças organizadas pelo Estado e pelos particulares para defender o domínio político e econômico das classes dirigentes. Neste sentido, inteiros partidos <políticos> e outras organizações econômicas ou de outro gênero devem ser considerados organismos de polícia política, de caráter investigativo e preventivo”. (Gramsci. 2014: 78-79).

Como a conjuntura catastrófica encontra-se em gramática de sentido conciliadora neobarroca do neoliberalismo com o lulismo?

Gramsci:

“chegar a uma fusão e assimilação recíproca após um processo molecular, o que de fato ocorreu, pelo menos em certa medida (mas suficiente para os objetivos histórico-políticos de pôr fim à luta orgânica fundamental e, portanto, de superar a fase catastrófica). O liberal/lulista Haddad faz o teatro da gramática de sentido governamental da conciliação barroca entre liberalismo e mercantilismo, uma vez que o mercantilismo/liberal/feudal da China é o paradigma do curso da nova economia mundial. A China é o maior parceiro econômico do Brasil.

Na política, ergue-se o Estado cesarista policial do governo e parlamento, com o partido do governo fazendo parte da prática política policial do sistema de partidos políticos formal e informal. No domínio informa, o grande jornal, a TV e o Youtube constituem parte do Estado policial/liberal/feudal da conjuntura de 2024.

                                                                 13

Marx foi buscar na sociedade francesa a gramática de sentido da perversão da práxis política de Luís Bonaparte:

“esse Bonaparte, que se erige em chefe do lumpen -proletariado , que só aqui reencontra, em massa, os interesses que ele pessoalmente persegue, que reconhece nessa escória, nesse refugo, nesse rebotalho de todas as classes a única classe em que pode apoiar-se, incondicionalmente,  é o verdadeiro Bonaparte, o Bonaparte sans phrase. Velho e astuto roué, concebe a vida histórica das nações e os grandes feitos do Estado como comédia em seu sentido mais vulgar, como uma mascarada onde as fantasias, frases e gestos servem apenas para disfarçar a mais tacanha vilania”. (Marx. 1974: 372).

Michel Foucault fez da gramática da perversão uma potentia de transformação da história política como significante <plebe>:

Il ne faut sans doute pas concevoir la pl<plebe> comme le fond permanent de l’histoire, l’objectif final de tous les assujettissements, le foyer jamais tout à fait éteint de toutes les révoltes. [...]. La réduction de la plèbe peut s’effectuer de trois façons: soit par son assujettissement effectif, soit par son utilisation comme plèbe (cf, l’exemple de la déliquence au XIX siècle)”. (Foucault: 421).

A plebe é um fenômeno da comédia histórica do homem perverso:

‘Só depois de eliminar seu solene adversário, só quando ele próprio assume a sério o seu papel imperial, e sob a máscara napoleônica imagina ser o verdadeiro napoleão, só aí ele se torna vítima de sua própria concepção do mundo, o bufão sério que não mais toma a história universal por uma comédia e sim a sua própria comédia pela história universal”. (Marx. 1974: 372-373).

O verdadeiro Napoleão é a frase da gramática de sentido da realidade como teatro de máscaras. Napoleão III é um verdadeiro perverso, pois, faz da política francesa aparências de semblãncia autêntica, sendo ele o Sol de Hannah Arendt:

“De acordo com a distinção de Portmann faz entre aparências autênticas e inautênticas, poder-se-ia falar de semblâncias autênticas e inautênticas. [...]. as primeiras, como o movimento do Sol levantando-se pela manhã para pôr-se ao entardece, ao contrário, não cederão a qualquer volume de informação científica, porque esta é a maneira pela qual a aparência do Sol e da Terra parece inevitável a qualquer criatura presa à Terra e que não pode mudar de moradia”. (Arendt: 31).

A comédia da perversão do bonapartismo tem em Luís o Sol, o Grande Outro perverso da política, isto é, a semblância autêntica da vida do II Império. A comédia verdadeiramente perversa, ao contrário do cinismo da falsa perversão, tem semblância autêntica. As escolas públicas francesas, até hoje, ensinam para as crianças que Luís Bonaparte foi um herói trágico parisiense. Marx fala de Luís como a obra-de-arte viva da grande comédia perversa francesa.      

 

 

ARENDT, Hannah. Da revolução. Brasília: UNB, 1988

ARENDT, Hannah, A vida do Espírito. RJ: UFRJ, 1992

ARISTOTE. La métaphysique. Tomo 1. Paris: J. Vrin, 1991

BALIBAR, Étienne. Cinq études du matérialisme historique. Paris: Maspero, 1974  

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Barroco, tela gramatical, ensaios. EUA: amazon, 2022a

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramática do general intellect. EUA: amazon, 2022b

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. SP: Perspectiva, 1974

ELORDUY, Eleuterio. El Estoicismo. Madrid: Gredos, 1972

ENRIQUEZ, Eugéne. Da horda ao Estado. Psicanálise do vínculo social. RJ: Zahar, 1991

FAYE, Jean Pierre. La raison narrative. Paris: Balland, 1990

FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits. V. 3. Paris: Gallimard, 1994

GRACIÁN, Baltasar. A arte da prudência. SP: Martin Claret, 2003

GRAMSCI, António. Quaderni del cárcere. V. 3. Torino:^Einaudi, 1977

GRAMSCI, António. Cadernos do Cárcere. V. 3. RJ: Civilização Brasileira, 2014

HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. RJ: Zahar, 1982

HEGEL. Lecciones sobre la historia de la filosofía. V. 2. México: Fondo de Cultura Económica, 1955

HEGEL. Filosofia da história. Brasília: UNB, 1995

HOBBES, Thomas. Leviatã. SP: Abril Cultural, ‘974

JAMENSON, Fredric. O inconsciente político. SP: Ática, 1992

KOYRÉ, Alexandre. Du monde clos à l’univers infini. Paris: Gallimard, 1973

LACAN, Jacques. O Seminário. O Sinthoma, livro 23. LACAN, Jacques. O Seminário. O Sinthoma, livro 23.  RJ; Zahar, 2007

LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 16. De um Outro ao outro. RJ: Zahar, 2008

LENIN, V. I. Materialismo y empiriocriticismo. Madrid: Grijalbo, 1975

LENINE. Oeuvres. Tome 3. Le développement du capitalisme en Russie. Paris: Editions Sociales, 1982

MARX. Pensadores. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. SP: Abril Cultural, 1974

MARX E ENGELS. La ideologia alemana. Barcelona: Grijalbo, 1974

NEWTON DA COSTA. Ensaio sobre os fundamentos da lógica. SP: Hicitec, 2008  

POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. SP: Martins Fontes, 1977

ROSA LUXEMBURG. A acumulação de capital. RJ: Zahar, 1970

SAMARANCH, Francisco. Cuatro ensayos sobre Aristóteles. México: Fondo de Cultura Económica, 1991

SARTRE, Jean-Paul. Critique de la raison dialectique. Tomo 2. Paris: Gallimard, 1985

SPENGLER, Oswald. L’homme et la technique. Paris: Gallimard, 1958

WOLFF, Francis. Aristóteles e a política. SP: Discurso Editorial, 1999

TAMINIAUX, Jacques. Naissance de la philosophie hégélienne de l’État. Paris: Payot, 1984

TEXIER, Jacques. Revolução e democracia em Marx e Engels. RJ: UFRJ, 2005

TUCÍDEDES. A guerra do Peloponeso. Brasília: UNB, 1986        

        

 

 

    

  

 

    

         

 

      

Nenhum comentário:

Postar um comentário