terça-feira, 31 de maio de 2016

HOBBES (NAÇÃO, HEGEMONIA, MULTIDÃO)

            


O vocabulário das relações internacionais se referia a um mundo no qual a economia nacional e o Estado-nação eram a realidade interna de uma realidade externa que se caracterizava como as relações entre nações. Hoje, o capital mundial subverteu o par interno/externo e outros fenômenos tornaram pouco clara e distinta a palavra realidade interna, que caracterizava os países ou nações. No “Anti-Édipo”, Deleuze e Guattari não implodiram a dualidade interno/externo da realidade freudiana?   
Talvez, seja mais adequado pensar interno/externo como verso e anverso de uma Banda de Moebius. Transição do Anti-Édipo para a física geopolítica lacaniana.  Trata-se de superfícies contínuas, superfícies sem descontinuidade onde a economia nacional e o Estado nacional ex-istem também como fenômenos da superfície mundial. Por outro lado, o capital mundial ex-iste como fenômeno do território trans-subjetivo nacional. O mundo funcionando em redes digitais é territorialmente nacional e mundial, ao mesmo tempo. A trans-subjetivação digitalis das massas de internautas se realiza em línguas nacionais e em linguagens transnacionais.
Parto da visão de Hobbes para interpretar as relações internacionais. Há a crença intelectual de que Hobbes é um escritor   criador de uma ideologia absolutista, um formulador de um pensamento político ditatorial em uma época na qual a democracia representativa era apenas um esboço de filosofia política econômica. A linguagem de Hobbes foi, em geral, esconjurada pelo liberalismo clássico e pelas ideologias liberais do século XIX e XX. Contudo, nos estudos das relações internacionais, o realismo da linguagem hobbesiana seduziu gerações.
O pensamento político de Hobbes tem como ponto de partida a natureza humana, o homem. Trata-se do homem natural e do homem artificial. Tais significantes são culturais políticos? A ciência da política hobbesiana parte da percepção sensível para conceituar as coisas dando nomes consensuais a elas (Skinner: 398). Quem faz isso? Só a autointerpretação da cultura política intelectual pode ser definida como atividade de nomear consensualmente o significante. Logo, a cultura política intelectual é um campo de produção de significantes, um campo transdialético materialista, pois os significantes de outras superfícies (biológica, social, política, econômica, ou cultural como tal, ou estética, ou moral, ou ética, ou metafísica, ou filosófica) - pela ação do poder – deslizam para a superfície da cultura política.
Homem é um significante que vem de uma outra superfície para a superfície da cultura política artificialista da experiência hobbesiana, O pensamento do homem é parte da teoria das aparências, das semblâncias. O objeto hobbesiano é o segredo do conceito de máquina de guerra de pensamento para a física geopolítica lacaniana:
“No que se refere aos pensamentos do homem, considerá-los-ei primeiro isoladamente, e depois, em cadeia, ou dependente uns dos outros. Isoladamente, cada um deles é uma representação ou aparência de alguma qualidade, ou outro acidente de um corpo exterior a nós, o que comumente se chama objeto. O qual objeto atua nos olhos, nos ouvidos, e em outras partes do corpo do homem, e pela forma diversa com atua produz aparências diversas.
A origem de todas elas é aquilo que denominamos sensação (pois não há nenhuma concepção no espírito do homem, que primeiro não tenha sido originalmente, ou total ou parcialmente, nos órgãos dos sentidos), O resto deriva daquela origem” (Hobbes: 13).
Na política, o objeto exterior é a máquina de guerra. Esta produz a cultura política da sensação no homem, o mundo da aparência. No século XX, os pós-modernistas são a continuação do hobbesianismo com o conceito de homo simulacrum, que seria o modo mais eficaz de evitar o estado de natureza hobbesiano na nação e nas relações internacionais.           
O estado de natureza ou estado de guerra foi apropriado pela cultura política naturalista metafísica que define o estado de natureza como corolário de uma natureza humana. A interpretação freudiana do estado de natureza como articulado pelo instinto de morte seria uma aprofunda distorção do pensamento político de Hobbes, e, portanto, a própria ideia de uma natureza humana agressiva (Rosset: 205). A violência não seria um fato da natureza humana. O estado de guerra não se define pela natureza humana. O homo homini lupus (Plauto) não é uma lógica da natureza humana; a guerra de todos contra todos é obra do acaso, é o estado do acaso (Rosset: 199, 200). Hobbes é um físico geopolítico lacaniano antes de Montesquieu. Ele é o criador da ciência política do real como física da política.
O acaso articula um campo de poder real. Trata-se de um campo de forças arbitrárias em choque ao acaso e forças cultural-políticas na transdialética materialista historial , pois, são as forças máquinas de guerra como anverso da pessoa. Estado de natureza é o verso da máquina de guerra como anverso da pessoa. Contudo, a pessoa faz pendant com um animal artificial, um autômato, uma máquina:
“ Do mesmo modo que tantas outras coisas, a natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada pela arte dos homens também nisto: que lhe seja possível fazer um animal artificial. Pois vendo que a vida não é mais do que um movimento dos membros, cujo início ocorre em alguma parte principal interna, por que não poderíamos dizer que todos os autômatos (máquinas que se movem a si mesmas por meio de molas, tal como um relógio) possuem uma vida artificial? ” (Hobbes: 9).        
Deus é o RSIcp (Real/Simbólico/Imaginário/cultura política), ou melhor, a arte da natureza que faz e governa o mundo. Deus faz o estado de guerra como estado das máquinas de guerra animais (o animal que faz a guerra é um produto da arte de Deus, de uma cultura política RSIcp, governada pelo princípio do acaso, ou melhor, pelo princípio do real). A violência não é o que articula a máquina de guerra animal, mas o choque ao acaso de tais máquinas no campo de poder como estado de guerra arbitrária não governado por um poder soberano. Trata-se de um campo de poder absoluto, arbitrário, indeterminado, não sobredeterminado pelo poder soberano absoluto, ou Estado.
Leitor de Hobbes, na leitura da física geopolítica, Michel Foucault pensa o Estado como estatização do campo de poder (Deleuze: 77) das máquinas de guerra animais e artificiais. O campo de poder do ocaso é a produção das máquinas de guerra e da cultura política, pois, “não há fonte de poder, o poder é sua própria fonte, como é também a fonte de todas as realidades “físicas” e “intelectuais” (Rosset: 201). O campo de poder é a fonte de produção da máquina e da cultura política da máquina e do homem artificial. Baudrillard tentou dissolver o conceito de poder no hiperpoder, mas fracassou diante da investigação de Foucault, Deleuze e Lacan do campo de poder moderno tardio, que a física geopolítica lacaniana retoma como ponto de partida de tal significante na contemporaneidade.     
O que chamam natureza é o produto do acaso, ou seja, hábito de ordem física (Rosset: 202). Trata-se da física da máquina de guerra animal, do homo homini lupus. O que se designa como natureza humana é o produto da instituição social, ou seja, hábito de ordem sociológica (Idem: 202). Trata-se da máquina de guerra sociológica condensada na pessoa. A propósito, há no reino da máquina de guerra hegeliana de pensamento em uma contraposição entre acaso e liberdade (Rosenfield: 21-22).                      
A obra de Hobbes parte da associação civil nação como unidade política mínima da ciência política. Na leitura de Quentin Skinner, a nação não é uma pessoa, mas seus atos, seu comportamento soberano. A nação é uma prática trans-subjetiva RSIcp constituída de inúmeros atos e ações.  Não há subjetividade biográfica que condense a nação. Não existe pessoa moral, mas atos morais políticos. Trata-se da filosofia moral da política. O objeto de tal filosofia é a trans-subjetivação moral.
As virtudes hobbesianas indispensáveis à vida civil (modéstia, equidade, confiança, humanidade e misericórdia) não são propriedade da biografia individual subjetiva, mas da trans-subjetividade nacional (Skinner: 420-421). Isso é a constituição de uma classe governante civilizada como anverso da classe política lumpesinal bárbara. Mas a ruptura epistemológica política do pensamento hobbesiano se realiza em relação à cultura política retórica humanista.    
Hobbes pensa uma cultura política baseada no ensino da ciência política e não na retórica humanista. Trata-se de trans-subjetivar os significantes da ciência da política moderna, que ele cria. São significantes sem paixão (os significantes da retórica humanista são significantes apaixonados, ainda bárbaros não lumpesinais) que articulam a prática soberana dos atos civilizados. Os significantes civilizados não articulam a subjetividade biográfica do soberano, mas a prática absolutista trans-subjetiva do soberano da justiça em relação ao estado de natureza ou guerra.
O estado de guerra é antes de tudo um problema da linguagem avaliativa, ou seja, da linguagem civis da nação. Enquanto o bem e o mal nacional foram medidos pela mera diversidade dos desejos interpretativos atuais (estado de anarquia hermenêutica) e, portanto, por uma diversidade correspondente de parâmetros, os que agem dessa maneira descobrir-se-ão ainda vivendo no estado de guerra: na linguagem da barbárie. Encontrando a ciência do real que permita superar os problemas suscitados pela técnica da descrição retórica da doxa e, portanto, para estabilizar a linguagem da avaliação moral do comportamento político do soberano, ficaremos livres da anarquia política da linguagem, da anarquia no uso dos termos avaliativos (Skinner: 422).
A estratégia nacional é evitar a anarquia histérica oligárquica faccional (não-todo). A nação é uma totalidade do campo simbólico articulada pela ciência da política. Penetramos em uma discussão sobre o poder soberano nacional. Tal poder é o poder de uma multidão nacional encarnado no soberano. Trata-se da lógica da representação da multidão como corpo político. Soberano é a vontade representativa de tal corpo político trans-subjetivo: “ Decorre daí que o único meio através do qual um corpo de pessoas (biografias subjetivas) pode praticar o ato de convencionar algo é a concordância mútua (trans-subjetiva) – a de cada indivíduo com todos os demais – em aceitar os termos do pactum que os unifique a todos” (Skinner: 416).
Como se institui uma nação? :
“A doutrina de Hobbes, portanto, é que o ato de instituir uma nação ocorre quando todos pactuam com todos os demais, no sentido de abrir mão do direito do juízo particular em assuntos pertinentes à existência e ao bem-estar da nação, concordando em atribuir o exercício desse direito a um representante soberano. Tão logo tal soberano é escolhido, a nação é devidamente instituída sob a forma de um corpo único, unido por haver adquirido uma alma, ou anima, para agir em seu nome” (Skinner: 417). No século XXI, a nação ou será um RSIcp cultural político da tela digital, trans-subjetivação digitalis, homo digitalis, ou não será.     
Em Hobbes, o poder soberano nacional não faz um pacto trans-subjetivo com as massas sujeito zero soberano (súditos) ao se instalar (Idem: 416). A multidão tece um pacto trans-subjetivo que instala o poder soberano nacional como campo de poder nacional. A multidão aliena seu direito de derrubar o Príncipe soberano (um homem, uma assembleia) ao instalar a nação trans-subjetiva. Não existe o direito de depor o tirano (o ditador), pois, não ex-iste a distinção da cultura política antiga entre governo legítimo e ilegítimo (Idem: 419. Olhando mais de perto o absolutismo do campo de poder nacional alcançamos o fulcro do pensamento político de Hobbes: a natureza absolutista da linguagem política.
No entanto, de fato, a ideia de um espaço cultural político onde a linguagem hobbesiana substituiria a linguagem retórica humanista aponta para a hegemonia (com intelectual hegemônico ou magister ludi) soberana absolutista que rechaça a transdialética hegemonia versus contrahegemonia, que é a melhor articulação da democracia moderna para o século XXI. Em Hobbes, temos a ditadura com hegemonia na cultura política intelectual nacional. Já a liberdade da máquina de pensamento moderna foi pensada por Hegel como espaço público procedural?    
A linguagem nacional absolutista é a prática de inúmeros atos de fala do magister ludi absolutista para evitar a histeria oligárquica dos irmãos, da fraternidade hermenêutica. Hobbes pensa um campo de poder absolutista da linguagem política que evite a anarquia. Este é o uso da linguagem sem lógica da representação. Está perfeito! A ditadura/hegemonia hobbesiana da linguagem introduz o problema do espaço público procedural de Hegel: um espaço de fala onde há enfretamento - como diálogo e ataque. Rosenfield diz “a confrontação dialogo são as formas mesmas de produção do conceito” (Rosenfield: 23). Isso define a hegemonia como uma prática de inúmeros atos (como verbo e escritura), que persuade as massas sujeito zero ditatorial. Ela depende de uma interseção entre a subjetividade e a trans-subjetividade sustentada na sinceridade dos interlocutores.  
Hobbes pensa a hegemonia na superfície da linguagem política nacional em um campo de poder absolutista:
“Primeiramente, ele considera como agir nos casos em que há uma controvérsia quanto à definição correta de algum termo moralmente significativo. O único remédio possível é o soberano impor sua própria definição e usar sua autoridade para proibir qualquer discussão adicional. Em seguida, Hobbes propõe a mesma solução para o caso das controvérsias provenientes do uso de redescrições paradiastólicas. Ele reconhece que essas disputas não se darão em torno de definições, mas dirão respeito a saber “se alguém raciocinou corretamente’ na aplicação de determinado termo avaliativo. Mais uma vez, entretanto, o único remédio possível será que o soberano decida. Somente se ele impuser sua autoridade como árbitro final é que será possível evitar as discussões intermináveis que, de outro modo, haverá de seguir-se” (Skinner: 423).
Hobbes pensa uma comunidade intelectual absolutista e autotélica. Lacan implodiu tal concepção de cultura política intelectual ao asseverar que a cultura política intelectual ex-iste para as massas e as massas – ao metabolizaram trans-subjetivamente um discurso – decidem qual é a verdade produzida pelos embates e diálogos da comunidade política intelectual (Lacan: 13). Trata-se de um espaço público procedural que suprassume o conceito de espaço público de Habermas, que é ainda autotélico liberal.
O materialismo do espaço público procedural lacaniano foi retirado de Marx: a verdade está na prática: “As ideias jamais podem levar mais além de uma antiga ordem mundial; não podem fazer outra coisa que levar mais além dessas ideias dessa antiga ordem. Falando em termos gerais, as ideias não podem executar nada. Para a execução das ideias fazem falta homens que disponham de certa força prática” (Lenin: 29). Trata-se de massas intelectuais de homens!              
Para Hobbes é impensável o espaço público procedural como campo de poder onde a linguagem hegemônica enfrenta a linguagem contrahegemônica. Gramsci pensou tal campo procedural a partir de Hegel, como luta de classes. A cultura política moderna se define com um campo de poder que é o avesso da cultura política absolutista, da cultura política ditatorial. É possível evitar a histeria oligárquica da anarquia branca (não-todo colonial) através da hegemonia procedural Hegel/gramsciana. No século XXI, não se trata da hegemonia burguesa versus contrahegemonia marxista. Não se trata mais de um campo de luta de classes. Do que se trata?
O campo de poder mundial é um campo procedural cultural político. Ele se define pelo diálogo e ataque entre a cultura política do capital mundial e a física geopolítica lacaniana. Logo, permaneço na linhagem cultural política intelectual Hobbes/Hegel/Marx/Gramsci/Lacan. Quando, a física se tornar a teoria de uma prática (das massas transculturais políticas como força prática), o campo de poder mundial se tornará uma superfície articulada pela transdialética do antagonismo cultural político hegemonia do capital mundial versus física como praxis das massas sujeito zero ditatorial. Para não cair no anarquismo branco, é preciso que a lógica da representação estabeleça um soberano democrático que na transdialética materialista possa representar a multidão nacional. Um Estado nacional do século XXI só pode ser o Estado da praxis das massas nacionais digitalis!
Relações internacionais derivam de Estado-nação; relações entre nações. Não há quem fale em Nome-do-Pai, ou seja, não há representante do campo simbólico lacaniano (Deus/Pai), na totalidade RSIcp hobbesiana. Nas relações internacionais hobbesianas Deus não ex-iste, a não ser como acaso Talvez, agora, seja melhor pensar as relações internacionais como RSIcp (Real/Simbólico/Imaginário/cultura política) articulado pelo princípio do real – em determinadas épocas históricas – ou pelo princípio da cultura geopolítica lacaniana no século XXI, por exemplo. Então seria necessário pensar Deus como RSIcp cultural político.
A interrogação adequada é - o século XXI continua hobbesiano (princípio do real [acaso] articulando as relações internacionais) ou se articulará por um novo Deus – principio cultural político da física articulando as relações internacionais como RSIcp? 
O estado de natureza hobbesiano pode ser traduzido como cultura política da guerra, se ele jamais se articula pela realização permanente do instinto de morte no indivíduo isolado na liberdade de tal felicidade? Não há realização permanente da satisfação do instinto de morte, ou seja, uso da violência sem limite sobre os outros. O estado de guerra é um significante factual que faz pendant com a cultura política da guerra freudiana, cultura da máquina de guerra freudiana? Falo de um RSIcp articulado pelo real: relações internacionais hobbesianas ex-istindo no acaso dos choques das máquinas de guerra.
Franco Cardini diz que não há cinismo em sustentar que a guerra tem jogado na história um papel capital de um ponto de vista social, político, econômico, tecnológico, religioso, talvez literário e artístico: “Como o historiador, a antropologia sabe que existem civilizações inteiras fundadas na guerra e concebidas não somente por responder as necessidades que ela mesmo produz, mas também civilizações a fim de perpetuar a guerra” (Cardini: 9-10).
No século XX, as relações internacionais articuladas ao Estado-nação geraram a I e II Guerras Mundiais. Qual é a espécie de articulação de tal realidade dos fatos? A cultura política da guerra freudiana governou o planeta? Ou se trata de um choque ao acaso das máquinas de guerra planetárias? Do estado de guerra hobbesiano com tal?
O estado de natureza hobbesiano é o estado de barbárie da física geopolítica. Trata-se da transdialética civilização versus barbárie moderna: “A hipocrisia profunda e o barbarismo moderno inerente à civilização burguesa estendem-se sem disfarces diante dos nossos olhos, passando da sua terra natal, onde assume formas respeitáveis para as colônias, onde se apresenta sem disfarces” (Marx: 103). A barbárie moderna é a barbárie com semblância civilizada; a barbárie colonial moderna é barbárie sem semblância civilizada?
A barbárie colonial moderna é aquela da personificação hobbesiana, ou seja, a lógica da representação do autor no ator como princípio da semblância cultural política? Na cultura política grega o autor (as massas dos homens livres e normais) é o ator na Ágora, reduzindo, assim a semblância ao discurso sofístico. Isso não é uma condenação da retórica sofística. Também pode ser a ditadura das massas onde o poder comum do autor/ator substitui a lei, a moral civilizatória pela moral lumpesinal, e substitui a ética da politeia. A ditadura das massas é a ditadura das massas lumpesinais grau zero civilização. Trata-se da barbárie que se apossa da politeia. É o poder bárbaro, poder como grau zero de semblância; o real que não para de não se inscrever como princípio articulador do RSIcp.
Dando um passo à frente, o RSIcp bárbaro se articula pelo princípio do real (a trans-subjetivação cultural política impossível de ser suportada pela sociedade de significantes civilizada) pelo uso da violência sem limite contra o inimigo do povo lumpesinal. A ditadura leninista (ersatz social do proletariado) e, mais ainda, a stalinista (ersatz populista do povo russo) assim como a fascista alemã (ersatz étnico populista ariano do povo alemão) são ditaduras lumpesinais, ditaduras bárbaras.
As relações internacionais articuladas pela conjuntura fascista é o reino da barbárie hobbesiana, da RSIcp bárbara, articulada pela cultura política da guerra lumpesinal, pela soberania da violência sem limite entre os Estados—nação. O fascismo alemão tinha como utopia a instalação da ditadura lúmpen na cultura política mundial.
Tal configuração RSIcp sustenta a ditadura lúmpen como disposição que articula as relações internacionais entre Estados-nação que fazem pendant (laço cultural político) com a junção do capital monopolista de Estado com o capital transnacional.
Trata-se da transdialética amigo/inimigo do capital como RSIcp articulado pelo princípio do real que é o anverso do da política mundial RSIcp articulada como cultural política. Agora, não se trata de pensar o século XXI como substituição da totalidade RSIcp do capital por um Império Egípcio moderno (Weber: 541)), ou qualquer outra espécie de império territorial geográfico. O império atual é o império trans-subjetivos das massas da ordem digitalis mundial!  
O RSIcp contemporâneo é uma totalidade imperial digital/digitalis que reterritorializa o território trans-subjetivo nacional depois da ruina do Estado-nação do século XX. O Estado-nação do século XXI é o Estado-nação digital/digitalis.                   
Não é possível o estado de natureza hobbesiano sem a distinção entre pessoa e máquina de guerra:
“Uma pessoa é aquela cujas palavras ou ações são consideradas quer como suas próprias quer como representando as palavras ou ações de outro homem, ou de qualquer outra coisa a que sejam atribuídas seja como verdade ou por ficção.
Quando elas são consideradas como suas próprias ele se chama uma pessoa natural. Quando são consideradas como representando as palavras e ações de um outro, chama-se-lhe uma pessoa fictícia ou artificial.
A palavra “pessoa” é de origem latina. Em lugar dela os gregos tinham prósopon, que significa rosto, tal como em latim persona significa disfarce ou a aparência exterior de um homem, imitada no palco. E por vezes mais particularmente aquela parte dela que disfarça o rosto, como máscara e viseira. E do palco a palavra foi transferida para qualquer representante da palavra ou da ação, tanto nos tribunais como nos teatros. De modo que uma pessoa é o mesmo que um ator, tanto no palco como na conversação corrente. E personificar é representar, seja a si mesmo ou a outro; e daquele que representa outro se diz que é portador de sua pessoa, ou que age em seu nome (sentido usado por Cícero quando diz: Unus sustineo três Personas: Mei, Adversarii, e Judicis – Sou portador de três pessoas; eu mesmo, meu adversário, e o juiz). Recebe designações diversas, conforme as ocasiões: representante, mandatário, lugar-tenente, vigário, advogado, deputado, procurador, ator, e outras semelhantes” (Hobbes: 100). A persona deslizou para a cultura política se transformando em transpersona. Este problema tratarei em outro texto.             
A persona ex-iste nas palavras e ações que constituem uma prática: “Quanto às pessoas artificiais, em certos casos algumas de suas palavras e ações pertencem àqueles a quem representam. Nesses casos a pessoa é o ator, e aquele a quem pertencem suas palavras e ações é o autor, casos estes em que o ator age por autoridade” (Hobbes: 100). Há duas espécies de prática: autor e ator.   
A lógica da representação que se articula pela personificação do autor no ator combina desigualmente verdade e ficção (semblância). A pessoa natural (prática) é a pessoa sem semblância, sem ficção, a ditadura das massas ou a politeia sem os sofistas; parece uma impossibilidade cultural política como grau zero da retórica. Hobbes pensou uma cultura política moderna sem semblância retórica, uma cultura política articulada como RSIcp a partir da ciência da política como ciência do real, como física da política.
A leitura da obra de Hobbes feita por Locke (e Rousseau) subverteu pelo avesso o projeto de ciência do real hobbesiana (Rosset: 205). O leitor pode ler em Marcel Merle uma interpretação – pelo discurso da universidade - de Hobbes que é o avesso da verdadeira interpretação de Hobbes das relações internacionais (Merle: 11-19). O discurso da universidade quer Hobbes com semblância liberal!
A teoria da semblância em Hobbes sustenta o significante semblância até no mundo-da-vida; ela define a pessoa como artifício inclusive no mundo-da-vida “de modo que uma pessoa é o mesmo que um ator, tanto no palco como na conversação corrente. E personificar é representar seja a si mesmo ou o outro”.
O discurso do direito hobbesiano estabelece o significante autoridade pela lógica da personificação. A lógica da personificação é ficcional e ela só existe através de um Estado civil:
“Poucas são as coisas incapazes de serem representadas por ficção. As coisas inanimadas, como uma igreja, um hospital, uma ponte, podem ser personificadas por um reitor, um diretor, um supervisor. Mas as coisas inanimadas não podem ser autores, nem, portanto, conferir autoridade a seus atores. Todavia, os atores podem ter autoridade para prover a sua conservação, a eles conferidas pelos proprietários ou governadores dessas coisas. Portanto essas coisas não podem ser personificadas enquanto não houver um Estado de governo civil” (Hobbes: 101). Um escravo é como uma coisa inanimada? Isso é o grau zero da escravidão. Todavia, o escravo é o animal vocal fora de qualquer lógica da representação trans-subjetiva nacional. A nação escravocrata é da ordem da barbárie colonial.  O escravo é o significante da barbárie na era moderna.
Quando Marx fala da escravidão do proletariado moderno, ele está dizendo que a sociedade capitalista é a civilização mesclada com a barbárie moderna. O proletariado do século XIX só era um homem livre e normal como semblância liberal (direito moderno) de uma sociedade de significantes colonial do discurso da servidão voluntária. O escravo não é uma pessoa natural ou artificial, mas ele pode se tornar uma máquina de guerra psicótica na ditadura lumpesinal das massas.          
A personificação depende da definição de ator em pleno uso da razão. Hobbes esgrima um conceito de loucura mais lacaniano que o próprio conceito de loucura lacaniano:
“De maneira semelhante, as crianças, os imbecis e os loucos, que não têm o uso da razão, podem ser personificados por guardiães ou curadores, mas não podem ser autores (durante esse tempo) de qualquer ação praticada por eles, a não ser que, (quando tiverem recobrado o uso da razão) venham a considerar razoável essa ação. Mas, enquanto durar a loucura, aquele que tem o direito de governá-los pode conferir autoridade ao guardião. Mas também isto só pode ter lugar num Estado civil, porque antes desse Estado não há domínio de pessoas” (Hobbes: 101). A relação do louco com a modernidade é um problema de cultura política que articula o Estado civil.
A era moderna está contemplada entre as culturas políticas civis, assim, ela pode ser estudada como transdialética materialista entre máquinas de guerra e pessoas. Ao contrário, o discurso do direito moderno faz o direito para pessoas, ele quer julgar homens, mulheres, crianças, imbecis, loucos e máquinas de guerras pelo paradigma da pessoa do Estado moderno civil.        
A loucura existe como prática de inúmeros atos não regidos pela razão; não existe o louco, mas o estar louco em um surto psicótico. Fora desse estado, o psicótico é um civil. A era moderna transformou o psicótico em um objeto de dispositivos de saber/poder. A Razão disso é considerar o psicótico como igual à máquina de guerra psicótica = psicopata. A psiquiatria do século XX desvinculou psicótico e psicopata absolutamente não entendendo jamais que o psicopata é máquina de guerra psicótica. O psicopata pode ser a personificação do psicótico em um direito das máquinas de guerra? O psicanalista psicopático pode representar o psicótico para si mesmo?   
Sobre o RSIcp hobbesiano há uma diferença na religião entre os deuses pagãos e Deus (de Platão ou cristão). Só a relação da religião com o Estado estabelece a lógica autor/ator para o paganismo. Trata-se de uma cultura política religiosa como tal sem personificação, sem lógica da representação. É a religião como princípio anárquico do RSIcp:
“Um ídolo, ou mera ficção do cérebro, pode ser personificado, como o eram os deuses dos pagãos, que eram personificados pelos funcionários para tal nomeados pelo Estado, e tinham posses e outros bens, assim como direitos, que os homens de vez em quando a eles dedicavam e consagravam. Mas os ídolos não podem ser autores, porque um ídolo não é nada. A autoridade provinha do Estado, portanto, antes da instituição do governo civil os deuses dos pagãos não podiam ser personificados” (Hobbes: 101). 
Hobbes pensa a cultura pagã como o grau zero da cultura política em um campo de poder. E a cultura cristã como cultura política a partir da inscrição dela no campo do poder de Estado romano. Esses são prolegômenos para a leitura da cultura política como tradição religiosa ou laica.    
A Nação não pode nascer da religião pagã, pois, só Deus como RSIcp cultural político articula a sociedade dos significantes pelo Nome-do-Pai. Cristo não falava em seu próprio nome, mas em nome do Pai:
“O verdadeiro Deus pode ser personificado. Conforme efetivamente foi, primeiro por Moisés, que governou os israelitas (que não eram o seu povo, e sim o povo de Deus) não em seu próprio nome, com Hoc dicit Moyses, mas em nome de Deus, com hoc decit Dominus. Em segundo lugar, pelo filho do homem, seu próprio filho abençoado salvador Jesus Cristo, que veio para submeter os judeus e induzir todas as nações a entrarem no reino do pai, não em seu próprio nome, mas em nome do pai. Em terceiro lugar pelo Espírito Santo, ou confortador, que falava e atuava nos apóstolos. O qual Espírito Santo era um confortador que não veio por si mesmo, mas foi mandado pelos outros dois, dos quais procedia” (Hobbes: 101-102). Tal prosa parece ser algo sem sentido para a cultura política laica moderna?        
O significante pessoa é a condensação da multidão em Nome-do-Pai, do Filho e do Espírito Santo, ou melhor, pelo RSIcp:
“Uma multidão de homens é transformada em uma pessoa quando é representada por um só homem ou pessoa, de maneira a que tal seja feito com o consentimento de cada um dos que constituem essa multidão. Por que a unidade do representante, e não a unidade do representado, que faz que a pessoa seja una. E é o representante o portador da pessoa, e só de uma pessoa. Esta é a única maneira como é possível entender a unidade de uma multidão”. (Hobbes: 102). A multidão russa é personificada primeiro em Lenin, depois, em Stalin. Trata-se de uma multidão ditatorial como contrário da multidão da politeia. O problema cultural político do século XXI não é encontrar uma multidão grega antiga que faça parte da cultura política representativa moderna?        
A multidão pode ser articulada como RSIcp (princípio do real) ditatorial, ou pessoa natural, ou como RSIcp cultural político pessoa natural = politeia. Ela pode ser articulada como pessoa artificial RSIcp democracia representativa. Nesta a multidão é muitos representados por uma única pessoa, como muitos autores:
“Dado que a multidão naturalmente não é uma, mas muitos, eles não podem ser entendidos como um só, mas como muitos autores, de cada uma das coisas que o representante diz ou faz em seu nome. Cada homem confere a seu representante comum sua própria autoridade em particular, e a cada um pertencem todas as ações praticadas pelo representante, caso lhe haja conferido autoridade sem limites. Caso contrário, quando o limitam quanto àquilo em que os representará, ou até que ponto, a nenhum deles pertence mais do que aquilo em que deu comissão para agir” (Hobbes: 102). Na lógica da representação personificada, o ator nunca é responsável sozinho por suas ações; seus atos também são da responsabilidade do autor. Há uma autonomia absoluta da ação do representante em relação ao representado; o ator não pode ser responsabilizado por seus próprios atos, ele são da responsabilidade do autor personificado no ator.               
A modernidade articula a interseção das biografias subjetivas das pessoas com a trans-subjetivação cultural política das massas sujeito zero antiguidade. Isso define uma atitude moderna a partir das massas/autores. Com a Ordem Mundial Digitalis ex-istem as massas digitalis que podem se conduzir para a constituição da Nação digitalis. Trata-se de uma articulação em superfícies contínuas: nacional e mundial. Na internet, a multidão de autores ainda não encontrou a sua personificação em uma única pessoa: magister ludo digitalis onde se estabeleceria a transdialética digitalis hegemonia e contrahegemonia. Ela ainda não ex-iste como espaço público procedural digitalis nacional/mundial.     
Quando isso se tornar um fato, um outro RSIcp das relações internacionais (relações mundiais) poderá aflorar a partir do significante pessoa/massas digitalis na transdialética hegemonia e contrahegemonia, narrativa hegemônica e contranarrativa hegemônica.

CARDINI, Franco. La culture de la guerre. Paris: Gallimard, 1982
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma, e poder de um Estado eclesiástico e civil. Pensadores. SP: Abril Cultural< 1974
DELEUZE, Gilles. Foucault. Paris: Les Éditions de Minuit, 1986
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 18. De um discurso que não fosse semblante. RJ: Zahar, 2009
LENIN. Cuadernos filosóficos. Madrid: Editorial Ayuso, 1974
MARX E ENGELS. Sobre o colonialismo. V. 1. Lisboa: Estampa, 1978
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ROSENFIELD, Denis L.. Política e liberdade em Hegel. SP: Brasiliense, 1983
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