“Um menor de 16 anos, de
nacionalidade brasileira, foi detido em Santa Cruz de Tenerife (Ilhas Canárias,
Espanha) depois de ser acusado de ter matado seu pai, esquartejado o corpo e o
colocado em uma mala que jogou no mar. A prisão ocorreu na noite de terça-feira
em um bairro central da cidade” (El Pais).
O garoto brasileiro é um
psicopata. E daí?
Na defesa da tese de doutorado na
USP em novembro de 1964, Maria Sylvia de Carvalho Franco enfrentou como membro
da banca Sérgio Buarque de Holanda. O diálogo e confronto foi sobre o paradigma
homem brasileiro, ou melhor, sobre a trans-subjetividade do homem brasileiro definido
por Sérgio como homo cordialis.
Trata-se do capítulo V – O homem cordial do novamente livro atual Raízes do Brasil.
Sérgio pensa o Brasil pela
dialética ordem cultural política fundada em princípios abstratos (sociedade
moderna) e a outra ordem colonial fundada em laços de afeto e sangue (Holanda:
102-103). O homo cordialis é a
pessoalização das relações cultural-políticas e a modernidade a
despessoalização da cultura política. O homo
cordialis é persona, não é uma máquina de guerra psicótica (isso não é o
psicótico), ou seja, um psicopata. Tal tese historiográfica de uma ciência
política magistral se tornou o paradigma da trans-subjetividade brasileira
colonial e imperial, e adentrou na trans-subjetividade republicana. O livro de
Sérgio é da década de 1930.
Um fato intelectual
impressionante é o uso do significante psicopata por Holanda. Sergio introduziu
o objeto sociológico de Maria Sylvia do livro Homens livres na ordem escravocrata:
“Aos que, com razão de seu ponto
de vista, condenam por motivos parecidos os âmbitos familiares excessivamente
estreitos e exigentes, isto é, aos que os condenam por circunscreverem
demasiado os horizontes da criança dentro da paisagem doméstica, pode ser
respondido que, em rigor, só hoje tais ambientes chegam a constituir, muitas
vezes, verdadeiras escolas de inadaptados e até de psicopatas. Em outras
épocas, tudo contribuía para a maior harmonia e maior coincidência entre as
virtudes que se formam e se exigem no recesso do lar e que asseguram a
prosperidade social e a ordem entre os cidadãos” (Holanda: 105).
Hoje, o leitor pode se espantar
com a narrativa cultural política holandiana falando que a família é uma escola
de produção de psicopatas. Em 1964, Maria Sylvia partiu das ideias holandianas
ao criar o homo lumpesinalis.
Trata-se da trans-subjetividade psicopata do homem popular no Brasil colonial e imperial.
Sérgio falava da família
oligárquica da terra aristocrática que governou o pais imperial com mestria. O homo lumpesinalis nos remete para a
atual classe governante que ex-iste como oligarquia lumpesinalis. A classe
governante hoje é forjada pela cultura política lumpesinalis. Tal cultura
política popular nasceu no Brasil colonial. Hoje o Brasil é inteiramente a
trans-subjetividade saído do livro da nossa belíssima socióloga paulista
Sylvia.
Sérgio estava equivocado sobre a
família oligárquica. Era a escola da classe dominante rural de cultivo de
máquinas de guerra psicóticas, ou seja, de psicopatas, na narrativa do
Casa-Grande e Senzala, do nosso maravilhoso Gilberto Freyre. Oliveira Vianna
fala da máquina de guerra psicopática ao estabelecer o Brasil colonial e
imperial como articulado pelo estado de guerra oligárquico (anarquia branca) e
suas revoltas e revoluções.
Sylvia diz: “Um dos processos
examinados revela que na família, tal como nas relações de vizinhança e nos
grupos de trabalho, a solidariedade e a luta aparecem como anverso e reverso”
(Franco: 45). Isso é uma Banda de Moebius da física da geopolítica lacaniana.
Ela acrescenta: “A incorporação da violência como um modelo socialmente válido
de conduta pode ser também captada através da maneira inequívoca com que é
admitida em público” (Franco: 49). Ela está falando da violência do mundo
caipira marginalizado, ou seja, lumpesinal (Franco: 32). A violência é constitutiva
do mundo lumpesinal caipira:
“A análise das relações sociais
definidas no decorrer do mutirão confirma essa interpretação de que, na
cooperação fundada em vínculos comunitários, a tensão e as forças de ruptura
estão, de modo constitutivo, articuladas ao desempenho regular das atividades.
O recurso à violência aparece institucionalizado, como padrão de comportamento”
(Franco: 37). A máquina de guerra psicopática é um fenômeno regular da cultura
política caipira, ou então, da sociedade caipira lumpesinal.
Em um livro que merece ser lido (Linchamentos. A justiça popular no Brasil),
José de Souza Martins continua o debate Sérgio versus Sylvia. José narra a
ex-sistência da máquina de guerra psicopática linchamento popular. Em nenhum
trecho do livro o linchamento aparece como máquina de guerra psicopática, mas
como um fenômeno sociológico de reunião de pessoas (multidão) para linchar
pessoas. A visão cristã da pastoral da terra em Martins subsume a possibilidade
de ver o linchamento com máquina de guerra lumpesinal. A possibilidade de
passagem da sociologia para física geopolítica é inibida em sua finalidade.
Martins não é capaz de ver que a
multidão que lincha é uma máquina psicopática do estado de guerra lumpesinal
com suas máquinas de guerra psicóticas (privadas e estatais) que tornam a vida
(urbana e rural) um verdadeiro inferno. Ele prefere construir a semblância de
um mundo popular que faz justiça divina quando a justiça do Estado falta. Entre
nós, a semblância é um significante do Raízes
do Brasil:
“Nenhum povo está mais distante
dessa noção ritualística da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de
convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir
na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir
precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são
espontâneas no ‘homem cordial’: é a forma natural e viva que se converteu em
fórmula. Além disso, a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a
sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo
servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que
permitirá a cada qual preservar inatas sua sensibilidade e suas emoções”
(Holanda: 107).
A cordialidade colonial é o nosso
artefato trans-subjetivo civilizatório louvado pelos cronistas estrangeiros do
Brasil colonial e imperial. O homo
cordialis é a semblância civilizatória de uma cultura política bárbara – do
homo lumpesinalis governante do
século XXI.
A máquina de guerra psicopática
colonial usa naturalmente (espontaneidade) a semblância polidez que faz com que
ela seja vista como uma pessoa na pessoalização da sociedade brasileira dos
significantes bárbaros. A pessoalização da política é o último degrau da
semblância polidez dos políticos vestidos com terno italiano e gravata
americana. O corpo vestido no terno e gravata é o corpo cultural político
lumpesinal – homo lumpesinalis.
Trata-se do corpo de uma estética verdadeiramente bárbara colonial jamais
representado na cultura brasileira intelectual, pois, esta é também, até agora,
irreversivelmente bárbara.
Machado de Assis confeccionou um
discurso literário sobre a nossa trans-subjetividade bárbara. Leio Machado de Assis
desde minha adolescência sem jamais alcançar a etapa da trans-subjetivação da
epistemologia política dos 5 leitores machadianos. O que se pode ver na
trans-subjetivação machadiana? Não sei! Tenho dúvidas que algum brasileiro
tenha chegado nessa fase final da leitura do discurso machadiano.
Infelizmente, a querida ABL de
Machado de Assis funcionou como atractor witz do discurso machadiano na cultura
política intelectual brasileira.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho.
Homens livres na ordem escravocrata. SP: Ática, 1974
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes
do Brasil. RJ: José Olympio, 1988
MARTINS, José de Souza.
Linchamentos. A justiça popular no Brasil. SP: Contexto, 2015
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