sexta-feira, 6 de maio de 2016

DE UM ESTADO QUE NÃO FOSSE SEMBLÂNCIA


Engels, Freud, Nietzsche

José Paulo Bandeira
A máquina de guerra nietzschiana usa violência sem limite como a freudiana. O uso da violência na última significa felicidade, ou gozo absoluto, realização da satisfação do instinto de morte tendo como objeto a população. Uma e outra se constituem como significantes da cultura política universal?
A máquina freudiana está associada à cultura política freudiana da guerra. Em sua filosofia política econômica, Engels deixou um fragmento admirável sobre a guerra; “ a força de trabalho adquiriu então um valor. Porém, nem a própria comunidade nem o agrupamento de que fazia parte forneciam forças de trabalho disponíveis, excedentes. A guerra proporcionava-as, e a guerra era tão antiga como a existência de vários grupos de comunidades próximas. Até então não tinham sabido o que haviam de fazer com os prisioneiros, e por isso os matavam, e, em tempos anteriores, comiam-nos. Mas quando se chegou a esta fase da “situação econômica” os prisioneiros adquiriram um valor; por isso lhes foi concedido viverem, para se poder aproveitar o seu trabalho. Desta maneira, a violência, longe de dominar a situação econômica, foi posta, como se vê a serviço desta” (Engels: 53).
A existências de vários grupos de comunidade é condição de possibilidade da cultura política da guerra que tem como motor o narcisismo das pequenas diferenças: “ Em outras ocasiões, examinei o fenômeno no qual são precisamente comunidades com territórios adjacentes, e mutuamente relacionadas também sob outros aspectos, que se empenham em rixas constantes, ridicularizando-se umas às outras, como os espanhóis e os portugueses, por exemplo, os alemães do Norte e os alemães do Sul, os ingleses e escoceses, e assim por diante. Dei a esse fenômeno o nome ‘narcisismo das pequenas diferenças’, denominação que não ajuda muito a explicá-lo. Agora podemos ver que se trata de uma satisfação conveniente e relativamente inócuo da inclinação para a agressão, através da qual a coesão entre os membros da comunidade é tornada mais fácil. Com respeito a isso, o povo judeu, espalhado por toda parte, prestou os mais úteis serviços às civilizações dos países que os acolheram; infelizmente, porém, todos os massacres de judeus na Idade Média não bastaram para tornar o período mais pacífico e mais seguro para seus semelhantes cristãos. Quando o apóstolo Paulo postulou o amor universal de sua comunidade cristã, uma extrema intolerância por parte da cristandade para com os que permaneceram fora dela tornou-se uma consequência inevitável” (Freud: 136-137). Freud não conhecia conscientemente/formalmente/conceitualmente o significante máquina de guerra freudiana. Mas é claro e evidente que a destruição dos judeus na Idade Média é um significante-objeto da violência sem limite articulador da cultura cristã como  cultura política freudiana da guerra. Assim a Igreja articula-se (pelo princípio do narcisismo das pequenas diferenças fazendo pendant com o instinto de morte) como uma máquina de guerra freudiana!   
Por pensar neuroticamente a cultura política universal a partir do homo clausus (princípio da biografia subjetiva modernista), Freud não deu a atenção necessária ao conceito de cultura política da guerra historial universal a partir da trans-subjetividade das massas (princípio biográfico trans-subjetivo das massas sujeito zero) como interseção do princípio do narcisismo com o instinto de morte. Porém, a física freudiana retoma tal clareira freudiana!          
Grupos de comunidades estabelecem-se como máquinas de guerra freudianas. A máquina de guerra freudiana associa uma relação fatal entre massas comunitárias pelo princípio do narcisismo das pequenas diferenças. O assassinato do inimigo e o canibalismo constituem significantes da cultura da guerra freudiana, não por não saberem o que fazer com os prisioneiros, mas como parte do gozo comunitário articulado pelo princípio do narcisismo: felicidade.
Diz Freud: “ Por um lado, visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra ‘felicidade’ só se relaciona a esses últimos” (Freud: 94). A felicidade é um significante da filosofia política econômica freudiana: “ A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo” (Idem: 103). Pelo princípio do narcisismo freudiano, ela vai além da subjetividade, ela articula-se à trans-subjetividade das massas comunitárias.     
O instinto inibido em sua finalidade (Idem: 102, 122) de realização de satisfação da pulsão de morte define o princípio da realidade em uma transdialética com o princípio do narcisismo como felicidade. Assim, o assassinato das massas inimigas está proibido assim como canibalizar o próximo! Fim do gozo absoluto comunitário! Parece que esta verdade é desconhecida da oligarquia financeira internacional, pois, esta canibaliza os povos ao redor do planeta.        
Freud socorre-se em Plautus para definir o modelo da cultura política da guerra:
“ O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que pessoas estão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis, que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; ao contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa cota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. Homo homini lupus. Quem, em face de toda a sua experiência da vida e da história, terá a coragem de discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas brandas. Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando forças mentais contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta espontaneamente e revela o homem como sua besta selvagem, a quem a consideração para a sua própria espécie é algo estranho. Quem quer que relembre as atrocidades cometidas durante as migrações raciais ou as invasões dos hunos, ou pelos povos conhecidos como mongóis sob a chefia de Gengis Khan e Tarmelão, ou na captura de Jerusalém pelos piedosos cruzados, ou mesmo, na verdade, os horrores da recente guerra mundial, quem quer que relembre tais coisas terá de se curvar humildemente ante a verdade dessa opinião” (Idem: 133). Freud se refere a ação agressiva/mortífera do Estado moderno na I Guerra Mundial.                       
A cultura política da guerra será alterada pelo significante sublimação, por uma verdadeira cultura política sublimatória, ou seja, pelo significante sublimação do instinto de morte: “ A sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural; é ela que torna possível às atividades superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel tão importante na vida civilizada” (Freud: 118).   
A filosofia política econômica introduz a possibilidade do significante economia ter alterado a felicidade das massas comunitárias. Então, o princípio da economia é o princípio da realidade de contenção do gozo comunitário narcísico. Assim, Engels deixa de aparecer como uma subjetividade psicótica economicista que quer explicar tudo pela categoria de economia fática. A física de Marx e Engels não é a teoria do real (fatos econômicos), mas uma filosofia política econômica que tem a cultura política econômica como significante primordial. Com a filosofia política econômica lacaniana, a economia é o real da totalidade RSIcp (Real/Simbólico/Imaginário/cultura política) articulada pelo princípio da cultura política. 
Com o globalismo neoliberal, o Estado nacional foi tratado como um excrescência, ou então, como uma velha maquinaria inútil, obsoleta e incômoda. A cultura política nacional foi tratada como o inimigo do capital mundial. O capital esqueceu que as massas sujeito zero bárbaro vivem no território existencial nacional civilizadamente pacificado. O capital considerou estrategicamente que a lógica da ruína da trans-subjetivação nacional pós II Guerra Mundial significava a redução do Estado-Nação a simples ancilar da sua lógica globalista neoliberal. Não contou com a resiliência do Estado-Nação na transdialética envolvendo nações e capital.
Então, com a hegemonia do capital corporativo mundial digital no bloco-no-poder mundial, algo acontece com a trans-subjetivação das massas sujeito zero internacional nos EUA e na Europa da União Europeia. Poderosas forças políticas nacionais ameaçam a dominação sem Estado do capitalismo mundial. Nietzsche nos socorre.
“ Em segundo lugar, o que a inserção de uma população sem normas e sem freios numa forma estável, assim como tivera início com um ato de violência, foi levada a termo somente com atos de violência – que o Urstaat (o mais antigo Estado, em consequência, apareceu com uma terrível tirania (ditadura), uma maquinaria esmagadora e implacável, e assim prossegui seu trabalho, até que tal matéria-prima humana e semi-animal ficou não só maleável e dócil, mas também dotada de uma forma. Fiz uso da categoria “Estado”, pois, está claro a que me refiro. Trata-se de um bando de bestas louras, uma raça de conquistadores e senhores, que, organizada guerreiramente e com força para organizar, sem hesitação lança suas garras terríveis sobre uma população talvez imensamente superior em número, mais ainda informe e nômade. Deste modo começa a existir o Urstaat na terra. Penso haver-se acabado aquele sentimentalismo que o fazia começar com um “contrato”. Quem pode dar ordens, quem por natureza é master, quem é violento em atos e gestos nada tem a ver com contratos!” (Nietzsche. 1971a: 96).
Está muito claro que o Urstaat do bando de letras louras é a máquina de guerra nietzschiana que usa violência simbólica e/ou real sem limite para transformar uma massa populacional informe em uma forma política: povo, por exemplo. Tal máquina nietzschiana ex-siste na cultura política da guerra nietzschiana, que começa com o bando de bestas louras. Na civilização arcaica, tal máquina de guerra significa o trabalho do escultor (ditadura) sobre as massas informes (o mármore bruto) para produzir formas políticas. Isso é o Estado cultural político ditatorial na civilização arcaica. Portanto, a ditadura não é uma invenção da cultura política romana da antiguidade. Ela não se transformou em um significante universal com o cesarismo de Caio Júlio César. A ditadura é um significante verdadeiramente universal nietzschiano desde a história da cultura política universal da civilização arcaica com o Urstaat. Porém, isso não é o Estado moderno!
Para tornar mais complexo a relação da violência (instinto de morte) com a cultura política universal, Nietzsche pensa a ideologia em um contraponto com a vontade de potência em uma filosofia política econômica para almas fortes:
“ Segue-se que ‘justo’ e ‘injusto’ existem apenas a partir da instituição da lei (e não, como quer Dühring, a partir do ato ofensivo). Falar de justo e injusto em si carece de qualquer sentido; em si, ofender, violentar, explorar, destruir não pode naturalmente ser algo ‘injusto’, na medida em que essencialmente, isto é, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, não podendo sequer ser concebida sem esse caráter. É preciso mesmo admitir algo mais grave. Do mais alto ponto de vista biológico, os estados de direito só podem ser estados de exceção, como restrições parciais da vontade de vida que visa o poder, e cujos fins gerais se subordinam enquanto meios particulares, ou seja, como meios para criar maiores unidades de poder. Uma ordem de direto concebida como geral e soberana, não como meio na luta entre complexos de poder, mas como meio contra toda luta, mais ou menos segundo o clichê comunista de Dühring, de que toda vontade deve considerar toda outra vontade como igual, seria um princípio hostil à vida, uma ordem destruidora e desagregadora do homem, um atentado ao futuro do homem, um sinal de cansaço, um caminho sinuoso para o nada” (Nietzsche. 1971a: 83).
A filosofia política econômica pensa o direito como ordem geral e soberana como meio de luta entre complexos de poder que incluem homem e máquina de guerra nietzschiana movida pela vontade de potência que é o avesso de um princípio hostil à physis política. A cultura política da guerra nietzschiana faz pendant com uma nova metafísica que, por sua vez, faz pendant com uma filosofia política econômica, que por sua vez, faz pendant com uma física da cultura política universal. Mas o problema ainda era o homem como vontade de potência, e, não a máquina de guerra como significante que pode servir a tal vontade de potência.       
No livro “Assim falou Zaratustra”, Nietzsche avança uma filosofia política econômica da guerra na era do último homem:
“ Deveis ser aqueles cujos olhos estão sempre à procura de um inimigo – do vosso inimigo. Em alguns de vós, nasce um ódio logo ao primeiro olhar.
Deveis procurar vosso inimigo, deveis fazer a vossa guerra e fazê-la pelos vossos pensamentos! E, se vosso pensamento for vencido, que a vossa retidão lance, ainda assim, um grito de vitória!
Deveis amar a paz como meio para novas guerras. E mais a paz curta que a longa. A vós, não aconselho o trabalho, mas a luta. A vós, não aconselho a paz, mas a vitória. Que o vosso trabalho seja uma luta; e a vossa paz, uma vitória.
Só se pode ficar calado e tranquilo quando se tem o arco e a flecha. Senão vivesse em ociosas conversas e desavenças. Que a vossa paz seja uma vitória.
Não se diz que a boa causa santifica até a guerra? Eu vos digo -  boa guerra santifica qualquer causa” (Nietzsche. 1971b: 64-65).
A propósito, Nietzsche estabelece, assim, o significante máquina de guerra de pensamento fazendo pendant com a epistemologia política da guerra. Talvez, aí se tenha suprassumido a filosofia política econômica (metafísica em si) de Platão!          
No história da cultura política mundial, tal filosofia política econômica nietzschiana não despertou o desejo das massas sujeito zero social pelo Urstaat na Europa na I e na II Guerra Mundiais? A cultura política da paz europeia não se conciliou, finalmente, com a filosofia política da guerra de Nietzsche? A cultura política da guerra nietzschiana não faz das massas europeias sujeito zero bárbaro uma máquina de guerra nietzschiana possuídas pela poesia aristocrática da guerra? Máquina de guerra poética! O Estado moderno ainda era o Estado semblância nacional. Ele não é o Estado da trans-subjetivação do território existencial nacional pacífico das massas sujeito zero patriota.       
Pensando o Estado moderno em sua filosofia política econômica, Nietzsche cria um axioma terrível que se torna a verdade do capital mundial no fim do século XX:
“ Ainda há povos e rebanhos, em algum sítio, mas não entre nós, meus irmãos – aqui, há Estados.
Estado? Que é isto? Pois seja! Abri bem os ouvidos, porque, vou dizer-vos a minha palavra sobre a morte dos povos.
Chama-se Estado o mais frio de todos os monstros frios. E, com toda frieza, também mente; e esta mentira sai rastejando da sua boca – “Eu, o Estado, sou o povo”!
É mentira. Criadores, foram os que formaram os povos e suspenderam por cima deles uma fé e um amor; assim, serviram a vida.
Destruidores, são os que preparam armadilhas para muitos e as chamam Estado; e suspendem por cima deles uma espada e cem cobiças.
Onde existe um povo, este não compreende o Estado e o odeia como má sorte e uma ofensa aos costumes e à justiça.
Esta indicação eu vos dou: cada povo fala a sua língua do bem e do mal e não a entende o vizinho. Cada povo inventou a sua própria língua, segundo os costumes e a justiça. (Trata-se de uma língua literária política).  
Mas o Estado mente em todas as línguas do bem e do mal; e, qualquer coisa que diga, mente – e, qualquer coisa que possua, roubo-a.
Nele, tudo é falso. Morde com os dentes roubados, esse mordedor; falsa são até as suas estranhas.
Confusão de línguas do bem e do mal. Isso é a marca do Estado. Essa marca significa, com efeito, vontade de morrer. De fato, ele chama os pregadores da morte. (O Estado moderno é uma máquina de guerra freudiana)
Nasce gente demais; para os supérfluos, inventou-se o Estado” (Nietzsche. 1971b: 66-67).
A filosofia política econômica nietzschiana articula-se como falta de um significante. Como falta do capital moderno. Assim, ela se transformou na filosofia política do capital que é a vontade de se articular como falta de um significante: Estado em geral.  No entanto, Nietzsche fala uma semiverdade sobre o Estado moderno ao dizer que ele se articula no reino da aparência pelo significante semblância mentira.
Logo, o Estado nacional do século XXI tem que ser um Estado que não fosse semblância!                     
         

  
ENGELS, Friedrich. Temas militares. Lisboa: Estampa, 1976
FREUD, Sigmund. Obras Completas. O mal-estar na civilização. RJ: Imago, 1974
NIETZSCHE, Friedrich. La généalogie dela morale. Paris: Gallimard, 1971ª
NIETZSCHE, Friedrich. Ainsi parlait Zarathoustra. Paris: Gallimard, 1971b                                                         
         
            
                    

    

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