José Paulo
Com o colapso da civilização democrática dos oradores
(sofistas e retóricos), Platão pensa a prática política de uma nova
civilização:
“O furto dos bens não é civilizado, o roubo escancarado é
vergonhoso; nem um nem outro dos filhos de Zeus os praticaram extraindo prazer
na fraude ou na violência. Que ninguém portanto se deixe enganar com respeito a
isso ou seja persuadido por poetas ou por quaisquer perversos criadores de
mitos da crença segundo a qual furtar e roubar nada está fazendo de vergonhoso,
mas simplesmente o que os próprios deuses fazem. Isso é tanto improvável quanto
falso; e quem quer que assim agir ilegalmente não é em absoluto um deus e nem
um filho de deus; e isso o legislador, como lhe cabe, conhece melhor do que
todo o conjunto dos poetas”. (Platão. 2010: 473).
Os poetas criaram e recriaram a prática política mitológica.
Esta vangloria o roubo no Estado, a fraude; ela é um modo de ser psíquico do falso
perverso. O legislador é a fratura com tal prática política falsa perversa, ele
é o início e o motor da civilização do homem normal:
“Deste modo, se alguém for condenado por furto de qualquer
item do patrimônio público numa corte, sendo ou estrangeiro domiciliado ou
escravo, a corte decidirá que punição ele deverá sofrer ou qual a multa que
deverá pagar. Mas, no caso de um cidadão, que recebeu a formação que devia
receber – se for condenado por roubar e violentar sua pátria, tenha sido
apanhado em flagrante ou não, será punido com a morte, como sendo praticamente
incurável”. (Platão. 2010: 473-474).
A Paidéia ((Jaeger; 1986) faz do cidadão um modo de ser
psíquico civilizado, isto é, sendo o contrário do falso perverso. Como a
pólemos (a guerra entre povos e Estados) é um fato natural da vida dos povos da
antiguidade, Platão se põe e repõe o problema da gramática de sentido da vida
militar - como significante da cadeia de significantes que tem na
<anarquia> o seu modo de ser psíquico falso perverso:
“A organização militar é tema de muita consulta e de muitas
leis apropriadas. O fundamento principal é o seguinte: que ninguém, homem ou
mulher, jamais seja deixado sem controle e que nem possa alguém, seja por
ocasião do trabalho, seja nos momentos de diversão, devotar-se ao hábito mental
de agir por si só e por sua própria iniciativa, devendo viver sempre, tanto na
guerra quanto na paz, com seus olhos fixados constantemente no comandante e
seguindo sua liderança; e deveria ser guiado por ele mesmo nos detalhes mais
ínfimos de suas ações, por exemplo, deter-se por uma palavra e comando, marchar
executar exercícios, lavar-se e comer, despertar à noite para montar a guarda
ou levar uma mensagem, e em momentos de perigo aguardar o sinal do comandante
de perseguir ou dar retirada diante do inimigo; e, numa palavra, ele deverá instruir
sua alma pelo hábito de evitar qualquer pensamento ou ideia de fazer qualquer
coisa separado do resto de sua companhia, de modo que a vida de todos deverá
ser vivida em conjunto e em comum; pois não há e nunca haverá nenhuma regra
superior a essa, ou melhor ou mais eficiente para garantir a segurança e a
vitória na guerra. Este hábito de comandar e ser comandado por outros tem que
ser praticado pacificamente desde a mais tenra infância; porém a anarquia
precisará ser inteiramente eliminada das vidas de toda a humanidade, e
inclusive das vidas dos animais que estrão submetidos ao ser humano”. (Platão.
2010: 474).
O comandante é a metonímia da gramática da civilização que se
deve reconhecer e seguir para evitar a anarquia militar; o falso perverso
segue, em geral, a sgrammaticatura, a anarquia. (Gramsci. 1977: 2341,
2343).
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VIVE-SE a época da
estrutura de dominação das relações técnicas de produção cibernética, do
capital cibernético no ocaso dele. Em poucos anos a estrutura de dominação das
relações técnicas de produção da <inteligência artificial> inaugurará uma
nova época - como capital-IA.
Espera-se uma revolução verdadeira no campo das ideologias,
gramáticas, gosto instituições, na sociedade e no Estado. A IA proverá os povos
de gramáticas de sentido hoje inimagináveis e de modos de ser psíquicos
virgens. Isso é a utopia retórica do capital feudal-IA.
As relações técnicas de produção epocal IA desenharão o campo
das relações internacionais a partir da grande potência territorial IA. Países
proprietários das relações técnicas de produção do capital IA ocuparão, em uma
hierarquia quase militar, o lugar de hegemonia/dominação na vida planetária. O
subdesenvolvimento será redesenhado pelo desenvolvimento desigual e combinado
daqueles proprietários do capital IA e os dependentes dessas relações técnicas
de produção. O que é, então, a revolução do capital-IA?
É uma revolução nas relações técnicas de produção que criara
e recriará, então, novas gramáticas de sentido para os povos na medida em que a
IA se torne o espaço do último laço social da verdade do capital feudal IA. A
propósito, o capital-IA tomará o lugar do discurso científico do homem e,
portanto, assim, a universidade terá que se reorganizar a partir da ciência
política ultramaterialista do capital_IA.
3
Haverá uma profunda transformação na prática política da
grande potência do capital feudal-IA? Um poder tutelar desse capital sobre a
prática política da grande potência é um fenômeno possível? Platão fala de um
poder tutelar da nova civilização da antiguidade:
“Falemos dos reparadores que examinarão a gestão dos diversos
magistrados (...). Quem terá competência par como reparador relativamente aos
magistrados em tela? (...) não é de modo algum fácil encontrar um magistrado
dos magistrados, que a todos suprem em virtude, mas de qualquer modo é preciso tentar
descobrir alguns reparadores de uma qualidade divina”. (Platão. 2010: 478).
O capital feudal da IA aparece como o reparador-IA com
qualidade divina e ele abole o problema humano da virtude como necessidade do
governo dos homes e máquinas:
“Ora, no que se refere à preservação ou à desintegração e o
desaparecimento de uma Constituição política, o cargo de reparador representa
um tal fator crítico, e dos mais sérios, pois se aqueles que atuam como
reparadores dos magistrados são melhores homens do que eles, e se agem
irrepreensivelmente mediante justiça irrepreensível, então todo o Estado e
território florescem e são felizes; mas se a reparação dos magistrados é
realizada de maneira diversa, então o elo de justiça que congrega todos os elementos
políticos de uma unidade é desintegrado, e consequentemente as magistraturas se
rompem entre si, deixando de se dirigir ´para a mesma meta, e assim, de um
Estado eles fazem muitos eo tornando palco de conflitos de facções rapidamente
o conduzem ao colapso”. (Platão. 2010: 478).
Ora, o campo político não desaparece como prática política na
grande potência do capital feudal-IA. Isso de desparecer é uma ilusão de
futuro. O poder tutelar do capital em tala aparece como uma estrutura de
dominação do Estado territorial; este também não desaparece. A crise consiste
em fazer do Estado territorial muitos Estados com propriedade privada de
facções políticas feudais/mafiosas:
“A crise catastrófica é àquela da foraclusão da estrutura de
dominação do hegemonikon do campo político. a curto prazo e da cultura política
nacional/popular democrática a longo prazo; a crise se atualiza com a classe
dominante mafiosa em aliança com classes médias mafiosas pós-modernas querendo
governar somente pela tela gramatical do aparelho de Estado/legislação penal:
dominação puro sangue”. Bandeira da Silveira. 2024: 418).
O poder tutelar
feudal/mafioso-IA elimina o hegemonikon, ou eu ´político da classe política do
homem, na prática política em geral. O capital feudal-IA poderá vir a criar uma
crise do conceito de prática política em geral:
“Os fenômenos monstruosos abririam as comportas sujas do
mundo para a existência de uma realidade heteróclita, que fascina os mass medea
e políticos”. (Bandeira da Silveira. 2024: 418).
A relação entre o poder do capital feudal-IA e a prática
política será regulada, articulada e funcionará pela gramática de uma autonomia
relativa entre elas?
4
Na civilização democrática em colapso, a guerra civil
gramatical ideológica entre os sofistas/retóricos e Sócrates, aqueles aparecem
como proprietários privados da gramática de sentido da prática política da
velha civilização:
“Eis que não apenas Sócrates os condenava a serem
consequentes, mas ainda a pesarem as suas contradições e a calarem-se. quando
todas as saídas estivessem fechadas. Parecia-lhes que isto era u atentado à
liberdade. Num sentido, não é falso, se meditarmos no juízo de Fénelon: na
cidade ruidosa de Atenas, sofistas e retóricos formavam o groso do grupo d
oradores; se era preciso arranjar um emprego, ganhar uma causa, estabelecer
laços matrimoniais, tinha de se passar por intermédio dos metres da palavra e
nada de importante se fazia sem recorrer aos peritos da gramática>
(Philonenko: 64).
A anarquia na prática política e na polis parecia
irrevogável:
“Por um lado, pode acontecer que a desordem econômica e
política da Cidade, esgotada pela guerra do Peloponeso e que, por outro lado, o
gosto inato ático pela <conversa> em geral, ao juntarem-se, tenham criado
esta situação que não imaginamos sem esforço. O que há de comum aos sofistas e
retóricos, é que se vangloriavam de obterem nestas coisas um bom resultado por
meio de um salário elevado – salário que aumentou com os seus êxitos e os
<professores. Já eram altamente pagos. De facto, foi perante esta anarquia
que Sócrates se elevou, cuja acção contra o sindicato dos oradores todos julgam
conhecer a razão. Seguido, pouco a pouco, por alguns discípulos zelosos,
pregando uma moral simples e verdadeira, teria sabido, mesmo ao servir-se dos
seus próprios métodos, derrotar ricos oradores, habituados a triunfarem perante
as multidões, perdendo, ao mesmo tempo, a simpatia dos concidadãos e, o que
contava ainda mais, dinheiro, que Sócrates desprezava, Diz-se que dinheiro não
deita cheiro; porém muitas vezes engendra vinganças que deitam. Os “memoráveis
de Xenofonte que seguiu, quando muito jovem (e demasiado jovem) a acção
reflectida de Sócrates, informa-nos sobre um certo número de factos deste
género”. (Philonenko: 64-65).
5
O declínio do império inglês do capital liberal faz pendant
com o novo mercantilismo europeu do final do século XIX e início do século XX.
Os fascistas e Gramsci viram nascer aí o Estado mercantilista integral. Este se
define por polos contraditórios, ele é hegemonia com a couraça de coerção:
Estado e sociedade; ditadura e hegemonia; aparelho de coerção e aparelhos de
hegemonia; governo como Estado em sentido estreito e Estado integral; Estado
como aparelho de poder e como organizador do consentimento; dominação e
direção. (Buci-Glucksmann: 114).
A civilização é um fenômeno que contém as várias gramáticas
de Estado, e não só a gramática do Estado mercantilista europeu:
“Será isto a que se chama uma civilização? Sem dúvida , e tal
como todos sabem, uma civilização é composta quer de doçura, quer de regras de
justiça, que visam castigar e punir os delinquentes. (Philonenko: 90).
A civilização é princípio de prazer e princípio de realidade
[coerção, repressão] com o aparelho de Estado penal. (Platão. 1989: 155). É
baseada na afecção vaidade que cria e recria a economia do Estado lacaniano que
cria e recria a cidade obra-de-arte, o luxo, o capital capitalista do modo de
produção especificamente capitalista, cria e recria as relações técnicas de
produção do capital feudal-IA. Como o capital feudal-IA, o problema que se põe
e repõe hoje é o da direção do Estado e da sociedade, da dominação e hegemonia.
O capital feudal-IA criaria uma classe dirigente que seria o efeito da
gramática civilizatória combinada do princípio de prazer com o princípio de
realidade? O filósofo-rei/IA substituiria o homem puramente político como
classe dirigente?
Gadamer:
“En voyant en tel homme celui qui serait le plus apte à
diriger les affaires publiques. Platon dévoile du même coup quelle séduction
est inhérente à l’exercice du pouvoir: ne vouloir que soi-même”. (Gadamer: 68).
O exercício do poder da época do capital feudal_IA pode ser
realizado por um filósofo-rei/IA?. Ou por <guardiões>/IA?
Gadamer:
L’éducation des gardiens a pour tâche d’immuniser contre
cette séduction. Ici s’indique le point médien visé par Platon: comme la Cité
doit-elle être organiséé en ce qui concerne l’exerice du pouvoir souverais, a
fin que celui soit exercé comme une function et non convoité comme une
opportunité de satisfaire ses propres interérêts”.
Como poder soberano, os guardiões do capital feudal/IA
eliminariam a corrupção do homem político no exercício do poder. Utopia?
Gadamer:
‘En d’autres termes: c’est loin d’être là un jugement
seulement négatif sur la relation de la <philosophie> et de la politique,
et l’on peut à bom droit reconnaître dans l’exigence platonicienne
l’instituition de la moderne function publique et de son ideal du fonctionnaire
incorruptible”. (Gadamer: 69).
O capital feudal/IA é a promessa de criar uma burocracia pública/IA
[de guardiões weberianos] incorruptível?
6
O capital feudal/IA aparece como poder tutelar da classe
política dos guardiões weberianos. Esse poder tutelar põe e repõe o problema da
liberdade do homem do novo fascismo mundial. Um caso é o problema da liberdade
de Bolsonaro; esta exige o direito do mais forte à anarquia no subgoverno e na
subpolítica; o direito da miais forte à anarquia requer a foraclusão do
aparelho de Estado como justiça penal. (Kelsen: 158-159). Trata-se de uma
concepção política de mundo do poder de governar apropriado para países
subdesenvolvidos. A relação da liberdade bolsonarista com o capital feudal/IA
pode ser adiantada agora?
O capital feudal/IA agiria estruturando a plurivocidade de
gramática do mundo; O logos/IA requer que na grande potência a liberdade
fascista esteja sob o poder tutelar do capital feudal/IA como governo
planetário. Assim, o subdesenvolvimento terá estruturas de dominação distinta
dos países desenvolvidos. A gramática do Bem comum do capita feudal l/IA torna
a anarquia fascista um fenômeno arcaico. Todavia, a prática política do capital
feudal em tela gramatical do bem perbólica, um teatro do mundo político como
perversão verdadeira:
“et la place <hiyperbolique> du bien (...) pour
signaler la philosophie comme celui qui voit le beau lui-même, loin de
confondre pêle-mêle avec les nombreuses choses belles qui en
<participent> (...)’. (Gadamer: 90).
Uma filosofia do capital feudal/IA se construirá fora do
campo estético da época que fará a subsunção do mercantilismo do capital
cibernético. A relação entre o Estado territorial e o capital feudal-IA de
governo põe o problema do Estado como aparelho de Estado da violência
organizada por uma gramática de sentido do bem. Platão:
‘Chegou mesmo a ocasionalmente admitir que o verdadeiro
Estado só poderia ser erigido com o emprego da violência – ou seja, pela via de
uma ditadura. É ademais, na Constituição desse Estado, concentra uma tal gama
de poder no governo, que este só pode ser o de um monarca, o que, no contexto
efetivo da Grécia, só poderia ser o de um ditador, de um tirano”. (Kelsen:
155).
O governo tirânico é parte do Estado como ditadura; esta tem
como movimento inercial se expandir até desintegrar a democracia. Assim as
força e práticas democráticas vivem uma guerra civil aberta ou não para manter
o Estado como integral;
“Afinal, nas repetidas vezes em que diz que o verdadeiro
Estado tem de ser governado pelos filósofos e que o <poder político e a
filosofia devem se tornar uma única coisa>, a filosofia que Platão tem em
mente é apenas a sua própria, e nenhuma outra. Os filósofos que devem conduzir
o governo no Estado virtual/ideal são formados exclusivamente na filosofia
platônica do Bem, somente possível através da doutrina platônica das ideias”.
(Kelsen: 162).
A filosofia do capital feudal/IA é a do filósofo-rei, o
Estado do capital feudal/IA aparece como a última versão do Estado de Platão na
história da espécie humana - na época da soberania do capital feudal/IA de
governo mundial.
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Ciência política
materialista. EUA: amazon, 2024
BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Gramsci et l’État. Paris: Fayard,
1975
GADAMER, Hans-Georg. L’idée du bien comme enjeu platônico-aristotélicien.
Paris: J. Vrin, 1994
GRAMSCI. António. Quaderni del Carcere. v. 3. Torino:
Einaudi, 1977
JAEGER, Werner. Paidéia. Brasília: UNB, 1986
KELSEN, Hans. A ilusão da justiça. SP: Martins Fontes, 1995
PHILONENKO, Alexis. Lições platónicas. Lisboa: Instituto Piaget,
1997
PLATÃO. Górgias. RJ: Bertrand Brasil, 1989
PLATÃO. AS LEIS. SP: EDIPRO, 2010
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